A ideia do Governo é lançar o debate sobre alterações à lei laboral, mas há parceiros sociais que não querem ouvir falar no tema — pelo menos, para já. “Não simpatizamos com a ideia de, no meio de uma pandemia, estar a promover alterações significativas na legislação do trabalho“, diz ao Observador João Vieira Lopes, líder da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal. Ainda assim, quatro meses depois do prazo que estabeleceu (novembro), o Governo apresentou o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, um documento com orientações gerais que servirá como guia a futuras alterações à lei laboral. São futuras porque o Executivo não se comprometeu com qualquer data, ainda vai levar o Livro Verde à discussão durante o mês de abril na concertação social e colocar o documento em consulta pública.
Um dos temas centrais, e o que colhe mais opiniões formadas, é o teletrabalho — que foi tornado obrigatório até ao final do ano nos concelhos de maior risco, sem que o Governo tivesse clarificado uma série de aspetos que têm sido apontados pelos parceiros sociais e por advogados especialistas em direito do trabalho. O Executivo já disse que não quer fazer grandes alterações à lei e vem agora adiantar que vai esperar pelas medidas aprovadas pelos deputados — onde estão a ser entregues propostas para regular o trabalho à distância.
Se vai mudar a lei só depois da pandemia, como pedem os patrões? A bola está agora no Parlamento. “Claramente temos um regime de 2003 que precisa de ser aperfeiçoado. É nesse sentido que essa discussão será feita com os parceiros, naturalmente que depois alimentando a alteração que for assumida em sede de Assembleia da República. Também é no Parlamento que esta alteração tem de ser feita”, afirmou a ministra do Trabalho Ana Mendes Godinho, após a reunião da concertação social desta quarta-feira.
Ao Observador, Sérgio Monte, secretário-geral adjunto da UGT, diz que, nalguns aspetos, o Governo vai “no bom caminho”. Mas há preocupações que a central sindical não vai deixar de endereçar — desde logo, quanto ao teletrabalho. A UGT quer regulamentar o trabalho à distância, mas com uma premissa essencial no horizonte: de que tem de haver acordo do trabalhador.
Sérgio Monte teme que as empresas sigam exemplos como o da Liberty Seguros, que em comunicado anunciou que vai colocar os trabalhadores, em vários países como Portugal, em teletrabalho “de forma definitiva” (com um acréscimo remuneratório de 660 euros anuais). “Eu pergunto: como pode fazer isso se ultrapassa o regime voluntário? Para nós é fundamental o acordo escrito do trabalhador”, defende, pedindo uma clarificação à lei para evitar estas “lacunas”. Ao Observador, já depois da publicação deste artigo, a Liberty esclareceu que o regime definitivo de teletrabalho é opcional e que quem quiser pode, depois de levantadas as restrições da pandemia, regressar ao regime presencial.
A posição é partilhada pela CGTP. Em declarações ao Observador, a secretária-geral da intersindical, Isabel Camarinha, aponta que “tem sempre de haver acordo do trabalhador, que pode opôr-se se não tiver as condições necessárias para a prestação do trabalho”. Para a central sindical, é ainda necessário que a decisão possa sempre ser reversível por uma das partes e nunca definitiva.
O Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho defende a salvaguarda do “princípio basilar do acordo entre empregador e trabalhador” para “assegurar a voluntariedade das partes“. O Governo admite mesmo o alargamento das situações em que o teletrabalho pode ser imposto pelo trabalhador sem necessidade de acordo do empregador (atualmente, tal só é permitido aos trabalhadores com filhos até aos 3 anos), uma intenção positiva para as centrais sindicais, embora não se saiba ainda em que termos vai ocorrer.
A UGT vai ainda defender um sistema híbrido de teletrabalho, em que o trabalhador possa alternar entre o trabalho presencial com teletrabalho se o entender. Mas no curto prazo, até por uma questão de adaptação após longos meses de trabalho remoto. “Muitos trabalhadores que estiveram grandes período em teletrabalho depois têm dificuldade, quando retomam a atividade presencial, em se adaptarem”, argumenta Sérgio Monte.
Outro tema em que os sindicatos vão fazer finca-pé é nos custos do teletrabalho. Na conferência de imprensa após a reunião da concertação social, Ana Mendes Godinho remeteu para a negociação coletiva o cálculo das despesas ligadas ao teletrabalho. Segundo a ministra do Trabalho, a realidade entre setores e funções de atividade é muito diferente, pelo que deve ser feita uma análise “caso a caso”.
Livro Verde. Teletrabalho sem acordo com empresa deve ser alargado
“A nossa opção é que as matérias sejam o mais possível reguladas em sede de negociação coletiva, nomeadamente regulando até aspetos diferentes em setores de atividade completamente diferentes, têm tipos de funções completamente diferentes e, portanto, devem ser situações que quanto mais analisadas setorialmente ou em termos das funções concretas devem ser aferidas de forma diferente”, adiantou Mendes Godinho.
A UGT considera que a lei tem de ser explícita quanto aos custos que estão incluídos, mas concorda que a definição dos cálculos das despesas possa ser “afinada” na negociação coletiva. “Entendemos que o papel do legislador deve ser o de definir os critérios, assegurar o direitos de privacidade, o direito a desligar, o direito à segurança e saúde no trabalho, o direito de propriedade dos instrumentos de trabalho, o direito de ser ressarcido das despesas. Mas há aqui um espaço que não pode ser tirado à negociação coletiva. A negociação coletiva pode descer ao setor e regulamentar de forma mais fina e pormenorizada“, considera.
É, por exemplo, em sede de negociação coletiva que deve poder ser desenhada uma proposta que a UGT tem feito — o pagamento de um subsídio aos teletrabalhadores pelos custos de trabalharem em casa. Além disso, e embora a Autoridade para as Condições do Trabalho já tenha determinado que o subsídio de refeição tem de ser pago ao trabalhador mesmo em teletrabalho, “há empresas que não estão a pagar”. “Estas lacunas têm de ser regulamentadas“, pede Sérgio Monte.
São reivindicações que já constam, em grande parte, na legislação específica aprovada por Espanha em finais de Setembro (consultar Caixa).
A nova regulamentação do Teletrabalho que Espanha aprovou em Setembro
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O Real Decreto que regula o teletrabalho em Espanha, aprovado em setembro do ano passado, estabelece regras claras para os empregadores e os funcionários em trabalho à distância, remetendo alguns artigos para lei gerais ou para o Estatuto dos Trabalhadores (legislação que aplica transversalmente em Espanha). Ainda assim, este decreto aplica-se a relações de trabalho fora do atual contexto de obrigatoriedade causada pelas medidas de combate à pandemia.
Em primeiro lugar, o decreto indica que estas disposições se aplicam a atividades laborais desenvolvidas à distância “com caráter regular”, ou seja um mínimo de três meses, com um mínimo de um terço do tempo da jornada laboral. Ou então, uma percentagem equivalente, mas proporcional à duração do contrato de trabalho. E define três tipos de trabalho: à distância, teletrabalho e presencial. O trabalho à distância é aquele que é realizado em casa do trabalhador (ou qualquer local que esta tenha escolhido), enquanto o teletrabalho é o que se realiza exclusivamente com uso de meios e sistemas informáticos ou de telecomunicações.
Quanto a direitos, o Real Decreto espanhol especifica que estes três tipos de trabalhadores têm exatamente os mesmos direitos, “incluindo o direito de adaptação à jornada [de trabalho], a fim de que o trabalho não interfira com a vida pessoal e familiar”. Em matérias mais concretas: têm o direito a receber, “no mínimo, a remuneração total definida para o seu grupo profissional, nível, posto e funções”, “bem como os complementos estabelecidos para os trabalhadores que apenas prestem serviços de forma presencial”. Ou seja, os subsídios que uns têm (alimentação ou deslocação), os outros também terão.
E “não poderão sofrer qualquer tipo de prejuízo nem modificação das condições acordadas, especialmente em matéria de tempo de trabalho ou de remuneração”, devido às dificuldades, técnicas ou outras, não imputáveis ao trabalhador. Traduzindo: se o “sistema” estiver a dar problemas e isso afetar o trabalho de alguém em teletrabalho, o trabalhador não poderá ser prejudicado por causa disso.
A adesão ao teletrabalho é voluntária (tanto para o trabalhador como para a empresa) e requer a assinatura de um contrato de trabalho à distância (sem prejuízo de outros direitos que possam existir mediante negociação coletiva). Caso um trabalhador se recuse a fazer teletrabalho isso não constitui justa causa para a extinção do posto de trabalho (nem uma alteração substancial das condições de trabalho). Mais: a decisão de estar em teletrabalho pode ser revertida, tanto por parte do trabalhador como da empresa.
E qual é o conteúdo do acordo de trabalho à distância (que, no caso espanhol, inclui disposições especiais para o teletrabalho)? Tem, no mínimo, 12 disposições claras:
1. É obrigatório fazer-se um inventário dos “meios, equipamentos e ferramentas essenciais para a realização do trabalho” à distância, incluindo “consumíveis”, bem como a vida útil ou um prazo máximo para a sua renovação.
2. Os gastos que o trabalhador faz por ter de prestar o trabalho à distância têm de ser claramente enumerados, bem como a forma de quantificar a compensação que a empresa terá, obrigatoriamente, de prestar.
3. Tem de constar o horário de trabalho do trabalhador e, se for caso disso, as regras de disponibilidade. Ou seja, a “adaptabilidade” ou a “isenção de horário”.
4. Caso se aplique, a percentagem e distribuição entre trabalho presencial e à distância.
5. Caso se aplique, o local de trabalho para o serviço presencial.
6. O local de trabalho da pessoa que trabalha à distância.
7. Prazos de pré-aviso para reverter o teletrabalho.
8. Os meios de controlo empresarial da atividade. Ou seja, que meios a empresa vai querer usar para controlar se o trabalhador está mesmo a fazer o que se exige dele.
9. Procedimentos a seguir caso haja dificuldades técnicas que impeçam o normal desenvolvimento do trabalho à distância.
10. Instruções acordadas entre a empresa e o representante legal dos trabalhadores em matéria de proteção de dados, que especificamente sejam aplicáveis ao trabalho à distância.
11. Instruções claras, nos mesmos termos, sobre segurança da informação.
12. Duração do acordo de trabalho à distância.
Por outro lado, e precisamente para evitar os problemas técnicos, os trabalhadores em teletrabalho têm direito – ao abrigo da lei espanhola – à manutenção por parte da empresa de todos os equipamentos que usa para trabalhar, bem como atendimento específico (por parte de help-center) em caso de dificuldades técnicas. Isto é especialmente relevante para quem está em teletrabalho (na definição espanhola do termo, como já descrevemos acima).
Em termos gerais, o decreto espanhol insiste que “o desenvolvimento do trabalho à distância deverá ser suportado ou compensado pela empresa” pelo que explicita que o “trabalhador não poderá assumir gastos relacionados com os equipamentos, as ferramentas e os meios vinculados à execução da sua atividade laboral”. Mas sobre horários, garante ao trabalhador em teletrabalho a possibilidade de flexibilizar o horário de prestação do serviço, respeitando sempre os tempos de “disponibilidade obrigatória” e o “tempo de descanso”. Também dispõe sobre o direito a um “registo horário adequado”, estabelecendo uma hora de início e outra de fim do trabalho.
Num outro ponto, mais polémico, as empresas espanholas têm, de facto, – como já tinham – a possibilidade de usar meios tecnológicos para controlar a atividade dos seus trabalhadores. O novo decreto também dispõe sobre isso, remetendo para uma Lei-Geral, de dezembro de 2018.
Os empregadores (incluindo na Função Pública) podem usar as imagens captadas por câmaras para o exercício desse controlo, mas têm de informar previamente, e de forma claro, que estão a usar esses meios de controlo por videocâmara. O mesmo acontece para programas informáticos ou sistemas de geolocalização. Têm de informar que estão a usar esses meios.
A CGTP também insiste que não haja acréscimo de despesas para os trabalhadores — e que a fatura deve estar a cargo do empregador, mesmo nos casos da água e da eletricidade. “É preciso garantir que o trabalhador tenha garantidos os necessários equipamentos de escritório e todo o tipo de consumireis que precise de gastar.”
Patrões querem deixar alterações para depois
No lado das confederações patronais, o pedido é de “bom senso”. À Rádio Observador, o presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP) diz que os tempos atuais são difíceis e exigem “ponderação” e “mais do que nunca, bom senso”. “O teletrabalho carece de uma alguma análise, porque a pandemia veio trazer dimensões que é necessário avaliar à luz desta nova realidade.”
Patrões concordam que empresas e sindicatos decidam quem paga custos do teletrabalho
António Saraiva considera “um exagero” algumas reivindicações. “Querer que as entidades patronais suportem custos de energia e água…E depois? Íamos descontar os custos de transportes que deixam de ser feitos. E no caso de estarem marido e mulher em casa, de empresas diferentes, como se faz a repartição?”. Em declarações ao Observador, o vice-presidente da CIP, Armindo Monteiro, vai um pouco mais longe: se por um lado há que ter precaução nas alterações, por outro lado é preciso ver que o Teletrabalho está a ser regulado atualmente por uma lei de 2003 (alterada em 2009). “É preciso regulamentar à luz da nova realidade, para evitar abusos de parte a parte”, disse.
Ainda sem grandes conclusões sobre o Livro Verde — que só foi enviado aos parceiros sociais na terça-feira à noite, com a apresentação das linhas gerais a acontecer na manhã de quarta-feira — a Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP) também já sabe que não quer o Governo a legislar a quente sobre o teletrabalho, um regime massificado mas que a confederação patronal acredita que deixará de o ser quando a pandemia terminar.
“Não simpatizamos com a ideia de, no meio de uma pandemia, estar a promover alterações significativas na legislação do trabalho. Há um conjunto de situações que são meramente conjunturais“, como o elevado número de trabalhadores à distância. “Mais tarde, estamos abertos para discutir. Não queremos discutir sob pressão, com forças políticas com um pensamento eleitoral.”
A UGT reconhece que é “preciso alguma calma” para legislar, embora haja “lacunas” que devam ser clarificadas rapidamente — como o pagamento do subsídio de refeição.
Plataformas digitais com proposta no “curto prazo”
A regulação do trabalho nas plataformas digitais, como a Uber ou a Glovo, é assumida como uma “prioridade” pelo Executivo. Tanto que foi o único tema sobre o qual o Governo estabeleceu algum horizonte temporal — ainda que pouco concreto. “Idealmente aqui seria obtermos o maior nível de consenso possível com os parceiros sociais, na iniciativa legislativa que o Governo assumirá em curto prazo”, avançou Ana Mendes Godinho.
No Livro Verde, este é um tema recorrente, com o Governo a estabelecer que deve ser criada uma “presunção de laboralidade” para estes trabalhadores e um sistema contributivo e fiscal “adaptado a esta nova realidade”. A ideia é que seja clarificada a distinção entre trabalhador por conta de outrem e trabalhador por conta própria, uma questão que tem surgido nos últimos tempos e que levou o Reino Unido a enquadrar estes trabalhadores numa categoria híbrida — de assalariados.
Segundo o Livro Verde, o enquadramento contributivo e fiscal destas atividades deve ser melhorado, “tanto na ótica da clarificação e efetividade das obrigações dos empregadores como do acesso a mecanismos contributivos e direitos por todos os trabalhadores das plataformas”. Estes trabalhadores devem ter acesso garantida a proteção social adequada, “mesmo nos casos em que a relação de trabalho não seja qualificada como trabalho dependente”.
A CCP, que representa algumas destas plataformas digitais, diz que ainda vai analisar o que está em cima da mesa. Mas mostra abertura em debater e garante estar a “perceber quais são as necessidades”.
Já a UGT revela dúvidas sobre alguns dos conceitos enunciados pelo Governo — como o de “presunção da laboralidade”. “Queremos saber o que é. Implica um contrato de trabalho, mas queremos saber o que significa, estamos à deriva”. Deve, segundo Sérgio Monte, ser dada prioridade a que estas atividades tenham um enquadramento legislativo que lhes assegure “direitos básicos”, como férias, proteção social, o pagamento do subsídio de Natal e de férias.
“Em Portugal, hoje, os trabalhadores das plataformas não têm vínculo laboral reconhecido em relação às plataformas, mas com os operadores (que firmam contrato com a Uber). Há aqui uma discrepância na legislação que é o facto de trabalhador apenas ter vínculo ao operador e ser a plataforma, no algoritmo, que avalia e faz as decisões sobre a prestação de serviço”, considera.
A CGTP, por sua vez, não vê como necessária a criação de um regime contributivo e fiscal adaptado para estes trabalhadores, considerando que as formas de vínculo previstas na lei “já garantem o que é necessário”. É preciso é efetivá-las e dar proteção aos trabalhadores, aponta.
Numa análise geral, Isabel Camarinha considera que, embora as intenções do Governo sejam “positivas”, “os caminhos não dão a resposta necessária”. A secretária-geral da CGTP insiste com a necessidade de acabar com a precariedade e retoma uma reivindicação da central sindical e dos partidos de esquerda: revogar a norma da caducidade dos contratos.
Artigo atualizado com declarações da Liberty sobre a possibilidade de os trabalhadores regressarem ao escritório uma vez levantadas as restrições