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IGOR MARTINS / OBSERVADOR

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As noites em que o Porto voltou a render-se às Viagens de Pedro Abrunhosa

À quarta data na Super Bock Arena, o músico regressou ao disco em que a história começou: foi tudo o que o público queria e foi tudo o que o artista quis dar, entre a música, a política e a cidade.

Comecemos pelas ruas do Bonfim, pelos cafés onde soa o jazz português, pelas escolas que acolhem o conceito “underground”. Da pequena esplanada da roulotte improvisada nos dias de concerto, ao tasco que tem os clientes assíduos à hora de jantar, as pessoas falam de política, do jogo, do clássico que se segue — que arremessa o cunho das “rivalidades” Porto e Lisboa — ou do imparcial em relvado colorido com verdes e brancos e que, curiosamente, entra em campo no mesmo dia. Mas nenhum destes dois acontecimentos impede que o recinto da Super Bock Arena – Pavilhão Rosa Mota permaneça esgotado num final de tarde de domingo.

Depois de três noites lotadas, a leitura daquele que parecia ser o último dia de concertos desta série de Pedro Abrunhosa no Porto só pode fazer-se à luz deste ambiente que resgata um álbum com 30 anos e que, mais do que pensar sobre o passado, renasce com um presente que o artista portuense quer adotar no futuro.

Pedro Abrunhosa com 63 anos e mais de metade destes de carreira, os tais que assinalaram o discurso de Nélson Mandela pela primeira vez como presidente da África do Sul, um ataque que marcou um dos mais violentos massacres do cerco da Bósnia, a morte de Kurt Cobain, dos renomados Nirvana, ou até mesmo o penálti falhado de Roberto Baggio contra a seleção do Brasil, garantindo a esta o título mundial. Estes foram alguns dos episódios noticiados, que abriram o concerto e que fazem parte da coleta de 30 notícias exibida, em grande escala, no cenário que marca o início de um dos concertos mais esperados da noite.

Pelas 18 horas já se ouviam alguns murmurinhos sobre mais uma data que o artista português avançou na noite anterior: 16 de novembro para mais um concerto no Porto, naquele mesmo local, para Viagens 3.0, uma revisitação do álbum de 1994 (mas não só), uma visita ao universo musical que transformou o país, sem nunca deixar de ter os olhos no que realmente conta. Pedro Abrunhosa prometeu-o: “celebrar o espanto da vida”.

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Os monólogos de Abrunhosa, ao longo das canções, são testemunhos "do mundo, não daquele em que deveríamos viver, mas no que queremos viver”

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

O artista sabia que a forma como explorava a voz na segunda metade dos anos 1990 traria qualquer coisa de novo. E esse momento foi revisitado em palco. A entrada, um a um, dos Comitê Caviar — a banda que sucedeu aos Bandemónio — e dos músicos que se juntam e acompanham o artista, dá início àquela que é uma tela ainda em branco. Todos vestidos da cor neutra são inundados de azuis fortes. Ouvimos os primeiros acordes de Viagens. O público reconhece de imediato. Começam os primeiros trauteares até que surge um coro intenso, coro este composto por mais de quatro mil pessoas na plateia.

De uma assentada, três temas do álbum que (re)lançou o groove do disco de rock “cheio de jazz e vida”. Deixa Cair o Teu Véu e Sou Só Uma Ilusão antecederam o tão esperado cumprimento: “Boa noite, Porto”. Paulo Gravato, o saxofonista, avançou com um pequeno solo que transcendeu uma imagem atrás de si: Maceo Parker (que faz parte de Viagens), uma participação metafísica e que remarca a empatia de Pedro Abrunhosa, que haveria de perdurar até ao fim do espetáculo. Seguem-se os vermelhos. As luzes que pintaram a noite da desforra cercaram uma nova linguagem que abraça o público. Se o contexto intimista já vinha a ser destacado, pouco a pouco, foi a partir desse exato momento que fomos remetidos para um set de estúdio. Um semicírculo mostra-se nas mais diversas perspetivas. É anunciada a proeza: “pela quarta vez conseguimos encher este palco”, diz Pedro Abrunhosa. Ao longo de um minuto e meio as palmas não pararam, nem quando o artista pediu. Olhava-se em redor e a emoção era clara: as pessoas estavam ali para regressar.

Entram novos acordes. Foram desde logo reconhecidos pelas gerações que completavam o público. Mas foi um casal que se encontrava do lado direito e que se fazia sobressair pelas mãos dadas e a cabeça encostada ao peito que avançou de imediato: “Socorro, estou apaixonado”.

Os monólogos de Abrunhosa, ao longo das canções, são testemunhos “do mundo, não daquele em que deveríamos viver, mas no que queremos viver”, prossegue. E se o artista foi sempre o piloto nestas viagens, é ao público que agradece por o ter acompanhado sempre no “lugar de passageiro”. O pequeno discurso chuta em grande escala a palavra “Paz”. “Este é um concerto que celebra a paz”. A primeira paragem foi em Vamos Fazer O Que Ainda Não Foi Feito. O público coopera. Grita em alto e bom som cada palavra que o instrumental lança. Com as mãos suspensas, Abrunhosa pede que as pessoas aplaudam. Revigora-se. Há quem se levante. A energia que aquele espaço emana preenche todos os espaços vazios da grande arena.

Os concertos de Abrunhosa dançam entre a disciplina profissional coreografada e um improviso constante que elege a dedo quem avança e quem recua

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

Com centenas de pequenos retângulos, cada pedaço do cenário procura estar no ritmo que o artista marca. É, diria, uma fração de liberdade que representa cada um dos que ali se sentou e que, por sua vez, acompanha o músico, já ao piano. O momento acaba com um lance vermelho – a urgência. “Porque amanhã é sempre tarde de mais”, as palavras que avançam com a música que tem o mesmo título, e que remonta para um dos muitos momentos altos do concerto. Abrunhosa intriga-se: “como é possível dizer que se vai dar o salto com o rabinho sentado na cadeira?”. A plateia levanta-se e ouve-se Rei do Bairro Alto, um tema que desafia todos aqueles que resistiam sentados até então. Dança-se, assobia-se, grita-se “obrigada, Pedro”. As pessoas do Porto são calorosas e o artista orgulha-se. A Baixa, os arredores, diz que tudo é casa. “E onde queremos viver?” No mesmo lugar que o artista, que no início dos anos 1980 fundou a Escola de Jazz do Porto com os irmãos Barreiros. No mesmo lugar onde a música saía para a Praça. No mesmo lugar onde se cantava a democracia, a revolta, o desânimo. Abrunhosa volta a perguntar: “onde queremos viver?”.

Esta é a questão que lança Talvez Foder e que traz parte das declarações mais fortes. É enquanto se pronuncia sobre “as crianças assassinadas em Gaza, no Líbano e mortas pelo Hamas” que recorda “o silêncio é o caos”. E Pedro Abrunhosa não quer “fazer parte desse silêncio”. “E o caos é o caos.” Um rasgo de luz vermelha volta a exalar-se. É no solo elétrico da guitarra de Bruno Macedo que se dilui. Os concertos de Abrunhosa dançam entre a disciplina profissional coreografada e um improviso constante que elege a dedo quem avança e quem recua. O guitarrista termina e segue de novo o saxofonista. Por mais estável que se pareça, os momentos musicais são um trabalho artístico que trespassa qualquer tempo, espaço ou sujeito. São os dedos entrelaçados entre o rock, o jazz e o funk, mais do que nunca. Não estamos numa jam, mas é como se estivéssemos.

O artista decide falar sobre a importância da praça, da cidade, “dos sítios de coletividade”, razões válidas para apresentar Vem Ter Comigo Aos Aliados. “É uma história de amor. Ela do FC Porto e ele do SL Benfica. Ela do Porto. Ele de Lisboa. Os filhos são do Sporting”, conta. Quatro cadeiras ao lado, um casal beija-se. Talvez se tenham apaixonado na praça, nos Aliados. Ou talvez representassem o Norte e o Sul. Abrunhosa escolhe ao pormenor fazer perguntas para lhes responder com a canção que se segue: Não Te Ausentes De Mim. Os diálogos entre as duas canções completam um manifesto. A primeira, que interpreta poucas vezes, onde recorda o seu irmão Paulo e a que, tantas questões responde, com a segunda. Este é um momento de clímax do concerto. O desenho de luz exalta, as pessoas cantam de peito cheio. Emocionam-se.

Abrunhosa senta-se ao piano para protagonizar canções de tempos distintos; ou passa o foco a Paulo Praça, na hora de prestar homenagem a Gisberta

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

Com os olhos lacrimejados, Pedro Abrunhosa senta-se ao piano. “Um grande amigo meu perdeu a sua filha e, nos seis meses seguintes, não lhe consegui dizer nada.” Foi então que lhe decidiu enviar uma canção depois desse tempo ao qual deu o nome Leva-me Para Casa. A composição é uma conversa e as vozes de Patrícia Silveira e Patrícia Antunes transformaram-na num hino. Tomaram a atenção da cada pessoa que completava o público, compunham uma harmonia perfeita que ultrapassa cada fibra da pele humana e que, por sua vez, atinge um novo momento alto no concerto quando tudo isto se reúne com um novo solo de Bruno Macedo. O artista mal sai do seu local. Dá uns passos para a frente confrontando-se com um novo foco de luz. De olhos fechados, era como se estivesse numa outra dimensão.

Estarão os 30 anos de trabalho de Abrunhosa resumidos nesta canção? Que “o amor te salve nesta noite escura”, canta olhando para o guitarrista. Fala-nos da composição feita e cantada com Sara Correia que finaliza um novo lugar no espetáculo de comemoração: a Balada de Gisberta, cantada por Paulo Praça. Submergindo num retrato da mulher trans violada e morta no Porto em 2006, Paulo Praça faz jus às palavras de Abrunhosa com uma interpretação única e que alerta, mais uma vez, para uma perseguição e violência de géneros em Portugal, energia sentida no público. Mas recuperam-se consciências e novos lugares seguros no palco. Abrunhosa volta a pedir para que as pessoas se levantem e, é certo, que uma nova energia chega àquela sala. Numa mão cheia, e antes de prosseguir para o encore, o artista atira alguns dos seus clássicos mais reconhecidos, como Se Eu Fosse Um Dia O Teu Olhar ou Lua.

O concerto estava quase dado como terminado, até que Pedro Abrunhosa surge de novo ao piano. Depois de todos os artistas que o acompanharam prosseguirem com os seus solos, arrancou com Ilumina-me. Volta a emocionar desmedidamente o público. Depois de uma tela em branco, este transformou-se um quadro perfeito que finalizou com Tudo O Que Eu Te Dou. Não há quem não se abrace e, isso, também fez parte destes 30 anos das Viagens de Pedro Abrunhosa.

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