Um dia depois de ter chegado de férias, António Costa tem mais um problema em mãos para resolver. A catástrofe de Pedrógão Grande e o assalto a Tancos empurraram os ministros da Administração Interna e da Defesa para a corda bamba do Executivo. A demissão dos três secretários de Estado que viajaram a convite da Galp durante o Euro 2016 deixa agora o líder socialista perante mais uma crise aguda que o seu Governo tem de enfrentar.
A saída dos três está a ser entendida junto de algumas fontes do Governo como uma oportunidade para António Costa de fazer uma “remodelação cirúrgica” do Executivo. Mas parece garantido que o primeiro-ministro não vai afastar nenhum dos ministros fragilizados em função destas exonerações, embora não esteja afastada a hipótese de serem substituídos outros secretários de Estado. Para já, as saídas de Jorge Costa Oliveira, Fernando Rocha Andrade e João Vasconcelos são politicamente sensíveis: são três dos mais fiéis colaboradores de António Costa, tinham um peso político determinante no Governo socialista e o seu afastamento acontece a poucos dias do debate sobre o Estado da Nação.
O amigo que contratou o filho de Lacerda Machado, um anjo de marido e um delfim?
Amigo que contrata o filho do meu amigo, meu amigo é. Olhando para o perfil dos três, é possível perceber a relação próxima que mantinham com António Costa. Jorge Costa Oliveira, secretário de Estado para a Internacionalização — que estava na dependência do ministro dos Negócios Estrangeiros –, tinha estado bem longe dos radares da oposição até ao “Galpgate”. Depois de anos a desempenhar altas funções em Macau, regressou para fazer parte da equipa de António Costa e prolongar uma relação que já dura há décadas. O líder socialista sempre lhe gabou a criatividade e a capacidade de “pensar fora da caixa”. Manteve-o sempre perto, mesmo quando Jorge Oliveira vivia fora do país. Quando regressava a Lisboa, de tempos a tempos, faziam questão de almoçar juntos, em serões onde participava também Eduardo Cabrita, hoje ministro-adjunto, outro velho conhecido e amigo do líder socialista.
Durante este ano e meio que esteve em funções, e à exceção natural do “Galpgate”, Jorge Costa Oliveira não mereceu mais do que uma ou duas notas de rodapé em termos de polémicas. E a primeira aconteceu ainda antes de tomar posse: o secretário de Estado para a Internacionalização foi o único dos 41 secretários de Estado escolhidos por António Costa para integrar o novo Governo, que não tomou conseguiu tomar posse no dia reservado para o efeito: estava fora do país e não conseguiu chegar a tempo da cerimónia no Palácio Nacional da Ajuda.
A segunda chegou mais tarde, em maio de 2016, quando é tornado público que Jorge Costa Oliveira tinha contratado o filho de Diogo Lacerda Machado, melhor amigo e consultor de António, em Dezembro como técnico especialista da Secretaria de Estado da Internacionalização. O caso não mereceu grande atenção mediática e o gabinete do secretário de Estado acabaria por justificar a contratação de Francisco Lacerda Machado, de 28 anos, pelas qualidades pessoais e currículo adquirido.
O anjo da guarda dos negócios da sua mulher. Socialista da mesma geração do deputado Sérgio Sousa Pinto e do secretário de Estado da Defesa, Marcos Perestrello — outro dos delfins de António Costa –, João Vasconcelos era o diretor executivo da Startup Lisboa antes de assumir o cargo de secretário de Estado da Indústria, no Ministério da Economia. Mantém há muito uma relação estreita com o líder socialista e era o principal rosto das políticas públicas de promoção do empreendedorismo tecnológico, conduzindo a estratégia Startup Portugal e o programa Indústria 4.0. Foi o grande responsável por acompanhar a organização da Web Summit.
Além do caso Galp, não se lhe conhecem polémicas enquanto governante. A única em que se viu envolvido nasceu com uma notícia da revista Sábado: João Vasconcelos era um business angel que foi sócio da empresa de capital de risco Go Big or Go Home. Em dezembro de 2010, a sua empresa investiu 400 mil euros na Eco Choice – uma empresa que tinha como acionista e administradora a sua mulher, Isabel Domingues dos Santos. Mais: cerca de dois terços desse investimento, 260 mil euros, fora financiado por fundos comunitários ao abrigo do programa FINOVA, gerido pela entidade pública PME Investimentos. Na altura, contactado pela revista, Vasconcelos garantiu que não existia qualquer conflito legal ou ético no negócio. O assunto passou à margem da agenda mediática e política.
O jovem delfim que cresceu com Costa. Com Rocha Andrade é diferente. A própria relação entre António Costa e o até agora secretário de Estado dos Assuntos Fiscais é de outra natureza. Mesmo tendo dez anos de diferença, tornaram-se próximos a partir de 1995, quando Costa chegou a secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares do Executivo de António Guterres e o chamou para o gabinete, vindo diretamente da JS e da Faculdade de Direito de Coimbra. António Costa chegou a considerá-lo “o jurista mais qualificado” da sua equipa.
Apesar de ser, na prática, um delfim do primeiro-ministro, Rocha Andrade, que antes tinha sido subsecretário de Estado da Administração Interna do mesmo Costa (2005-2008), sempre foi tratado de igual para igual. Respeitam-se intelectualmente. São frontais e dizem o que pensam, às vezes de forma desconcertante para quem assiste às conversas. Se António Costa é direto, Rocha Andrade ainda é mais. Não consta que precisem de falar muito para se entenderem e para se fazerem entender. Partilha com o líder socialista uma forma de ver o mundo semelhante e comungam, segundo chegou a contar um amigo de ambos ao Observador, de uma certa síndrome de filho único. Rocha Andrade é-o de facto. António Costa só teve um meio-irmão já com sete anos de idade, o que fez com que cultivasse um certo “egoísmo” e “egocentrismo”. Um traço de personalidade que sempre influenciou a sua forma de estar na vida e na política. A sua saída traz um problema acrescido: Rocha Andrade tinha em mãos a revisão dos escalões do IRS, um dossier sensível que o Governo socialista tem de negociar à esquerda.
Rocha Andrade: um atiçador de polémicas
Quando era subsecretário de Estado da Administração Interna viveu uma das suas primeiras polémicas: a compra de seis helicópteros de combate a incêndio Kamov. O negócio envolveu 42,1 milhões de euros pagos à Heliportugal e foi sempre muito questionado pela oposição. Em 2014, foi o Tribunal de Contas a apontar diretamente o dedo ao subsecretário de Estado: Rocha Andrade não tinha acautelado “o interesse público de exigência do cumprimento integral dos contratos de fornecimento, tendo, ao invés e numa altura de incumprimento contratual, que não podia desconhecer, aligeirado os requisitos de entrega das aeronaves e flexibilizado as condições de fornecimento e de pagamento”.
Depois, o SIRESP. Ainda durante esse período, aquele que foi até agora o responsável pela máquina fiscal de António Costa, geriu um dossier bastante delicado e que recentemente voltou a fazer correr muita tinta: a adjudicação do contrato de gestão da rede de telecomunicações de emergência ao consórcio liderado pela Sociedade Lusa de Negócios (agora Galilei, e que detinha o BPN).
O processo fora iniciado ainda durante o Governo de Pedro Santana Lopes, pelo então ministro da Administração Interna, Daniel Sanches. Com a transição de Governo, em 2005, António Costa decidiu pedir um parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República para saber se o concurso era válido, por ter sido adjudicado quando o Executivo PSD/CDS se encontrava em gestão. A PGR concluiu que o negócio era nulo e que não podia ter sido concluído naquelas circunstâncias.
António Costa e Rocha Andrade tomaram então conta do processo, anularam a adjudicação e decidiram renegociar o contrato com o consórcio liderado pela SLN — isto apesar de terem uma proposta alternativa (e aparentemente mais vantajosa) que nunca consideraram. Em dezembro de 2006, o Tribunal de Contas apontaria várias fragilidades ao negócio e concluía que foram “claramente violadas as normas” do contrato de adjudicação, uma violação que era “suscetível de se repercutir negativamente no resultado financeiro do contrato”.
Costa não reabriu concurso do SIRESP mesmo com proposta mais barata da Optimus
Fernando Rocha Andrade acabaria por deixar o Governo de José Sócrates em 2008 — um ano depois de António Costa se mudar para a Câmara de Lisboa. Mas não sem uma nova polémica no currículo: segundo notícias da época, terão sido as altas patentes das Forças Armadas a travar a nomeação de Rocha Andrade para secretário de Estado da Defesa. Em 2007, o então subsecretário de Estado da Administração Interna tinha conduzido o processo de revisão dos estatutos da GNR — uma ambição antiga de António Costa — em que alterava o nível de estrutura de comando da GNR, criando uma subcategoria profissional de oficiais generais. O diploma acabaria por ser vetado por Cavaco Silva, mas os militares dos vários ramos das Forças Armadas terão feito pressão impedir a ascensão de Rocha Andrade, que já estaria em rota de colisão com o sucessor de Costa na Administração Interna, Rui Pereira. Tudo somado, o socialista acabaria por deixar o Executivo de José Sócrates.
Anos depois, nesta nova reencarnação e já depois de ter estado no centro do “Galpgate”, Rocha Andrade viu-se envolvido em novo caso: na declaração de rendimentos e património entregue no Tribunal Constitucional depois de assumir funções como secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, no final de 2015, o jurista assumiu ter ações do BCP e da EDP, sendo que a energética mantinha (e mantém) quatro diferendos com Autoridade Tributária (tutelada pelo até agora secretário de Estado).
A polémica — nascida ainda no rescaldo das viagens pagas pela Galp — provocou um novo rombo no porta-aviões de Rocha Andrade. Ele que, segundo informações avançadas na altura, chegou a colocar o lugar à disposição e foi segurando por António Costa. Desta vez, no entanto, o assunto acabou por perder gás. Do gabinete do Ministério das Finanças chegou apenas uma garantia: o secretário de Estado não transacionou nem vai transacionar nenhuma ação”enquanto assumir o cargo.
Habituado a estar na linha da frente do combate político — até pelo cargo que ocupa — Rocha Andrade foi travando outras batalhas com dimensões diferentes. Como quando teve de gerir o impacto da medida que acabaria por ficar conhecida como “IMI do sol e das vistas” — ou “Imposto Mariana Mortágua”. O Bloco de Esquerda antecipou-se ao Governo socialista e ao PS e lançou a confusão. O PS recuou e o Governo desdobrou-se em explicações. A oposição exigiu a reapreciação parlamentar do decreto-lei do Governo e a medida acabou por ser redesenhada.
O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais voltou a estar no olho do furação mediático noutras circunstâncias. Por exemplo, quando respondeu pelo Programa Especial de Redução de Endividamento ao Estado (PERES), um “perdão fiscal” que permitiu que cinco das 20 empresas cotadas em bolsa evitassem juros e custas de 35,5 milhões. Mais recentemente, quando foi chamado a esclarecer os contornos do “apagão fiscal” que permitiu transferências para offshores na ordem dos 10 mil milhões de euros sem qualquer tratamento por parte da Autoridade Tributária. O processo — até pela cronologia dos acontecimentos — prometia chamuscar o anterior Governo e o seu antecessor, Paulo Núncio, mas acabou por obrigar Rocha Andrade a explicar, nos parlamentos português e europeu, a decisão de retirar os territórios de Uruguai, Jersey e Ilhas de Man da lista negra dos paraísos fiscais. O processo está longe de estar enterrado, mas já não será Rocha Andrade a responder politicamente por eles. E sai sem conseguir cumprir a ambiciosa reforma fiscal a que se propunha o Governo socialista.
Vítor Escária: o economista discreto de São Bento que também caiu
Além dos três secretários de Estado, António Costa vê-se agora privado da colaboração de Vítor Escária, assessor do primeiro-ministro e que também viajou para França a convite da petrolífera. O responsável já foi ouvido pelo Ministério Público e foi constituído arguido, deixando as funções que ocupava até agora.
Professor auxiliar do ISEG, investigador e especialista em políticas de emprego, Vítor Escária tinha um papel decisivo no Governo de António Costa. Antigo assessor de José Sócrates, amigo pessoal de Mário Centeno, a estratégia económica do Executivo passava, em grande parte, por ele. A título de exemplo, Escária tinha neste momento a coordenação das negociações para a solução do crédito malparado que o Governo está a preparar.
Com uma ascendência muito grande sobre os governantes, este economista já tinha estado entre os principais negociadores do programa de intervenção da troika. Mais tarde, foi um dos 12 sábios escolhidos por António Costa para desenharem o programa macroeconómico do PS — que serviria depois como base ao programa eleitoral. Discreto e sem grande visibilidade pública, a saída de Escária tem um peso expressivo na máquina montada por Costa.