Prólogo. “Cold Heart (Pnau remix)”, 2021

Então, muitos parabéns

Alguém mais distraído, arrisca chegar ao fim desta prosa suspeitando que Elton John morreu no século passado. Em termos criativos, essa discussão pode até parecer oportuna. Mas é injusta. Ouvir álbuns deste milénio como The Road to El Dorado (2001) ou The Peachtree Road (2004) dão-nos duas impressões imediatas: a primeira é que Elton gosta muito estradas; a segunda é que, a partir de certa altura ele e Bernie Taupin, parceiro artístico de sempre, desistiram da procura obsessiva de êxitos (causa das maiores azeitadas que semearam a partir dos idos de 80) e retomaram um certo gosto de tecer canções com o mesmo ímpeto que os fez criar a sua melhor obra (sobretudo nos idos de 70). A razão para esta viagem pelo século passado é outra.

A questão é que a vida de Reginald Kenneth Dwight já era uma novela antes mesmo de ele se transformar em Elton Hercules John e torna-se difícil escolher os melhores episódios para ilustrar 60 anos de carreira. O que aqui propomos é apenas uma dúzia deles, exemplares do talento que permitiu construir um cancioneiro invejável e fazer dele o artista solo mais bem sucedido da história do rock, medido por números astronómicos de vendas e registos históricos dos principais tops. São 300 milhões de discos vendidos e mais de 50 canções colocadas na UK Singles Charts e na Billboard Hot 100, incluindo nove primeiros lugares em cada uma delas, além de sete álbuns consecutivos no top máximo dos Estados Unidos. São episódios que vão mostrando também como a vertigem do estrelato e a tradicional receita de sexo, drogas e rock’n roll transformaram um miúdo acanhado dos subúrbios de Londres num dos mais exuberantes artistas da história da música popular. E que, inevitavelmente, nos remetem para as décadas de 70 a 90.

A verdade é que, já depois de 2000, o homem editou um total de dez álbuns de estúdio, entre os quais também não fica mal recomendar Songs From the West Coast (2001) ou The Captain and the Kids (2006), trabalhos em John e Taupin se desimportaram com o sucesso comercial e perseguiram sem vergonha as referências perdidas dos seus anos dourados e com os quais recolheram merecido aplauso crítico. Mas mesmo quanto a sucessos, podíamos referir The Lockdown Sessions, o álbum lançado ainda em setembro passado, resultado de uma série de colaborações com outros músicos durante o confinamento. “Cold Heart (Pnau remix)”, o dueto com Dua Lipa que serviu de single ao disco e aqui temos em escuta, chegou ao número 1 da UK Singles Chart. Foi o décimo single seu a consegui-lo e, a partir desse dia, Elton tornou-se no primeiro artista a ter canções colocadas no top 10 dos Estados Unidos e de Inglaterra em seis décadas diferentes. Portanto, não, o homem não morreu. Nasceu a 25 de março de 1947. E está de parabéns.

“Come Back Baby”, 1965

A vida e morte de Reginald Kenneth Dwight (1947-1967)

Elton John nasce no céu. O jovem pianista dos Bluesology, grupo de rhythm & blues que funciona como banda de suporte do cantor Long John Baldry, sonha com uma carreira rock n’roll, e lá entende que Reginald Dwight não é nome que cole. Estamos em 1967, os Beatles prosseguem as suas experiências em estúdio com The Magical Mystery Tour, Frank Zappa subvertem os limites da música popular com os The Mothers of Invention, os The Who ficcionam uma emissão de rádio pirata no álbum Sell Out. Conspira-se a mudança do mundo e o jovem Reg, vinte anos irrequietos, ouvinte compulsivo do seu tempo, continua a tocar “Let The Heartaches Begin” duas por vezes por noite. É então que toma a decisão. Nesse voo de regresso de um concerto na Escócia comunica aos companheiros a sua saída do grupo e, antes mesmo de aterrar, inventou já outro nome para si, inspirado noutros passageiros: Elton, de Elton Dean, o saxofonista dos Bluesology; John, de Long John Baldry. Resultado: Elton John. Mas recuemos um pouco antes de avançar.

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Reginald cresceu na Inglaterra cinzenta, conservadora e deprimida do pós-Guerra. Em Pinner, no Middlesex, subúrbio do noroeste de Londres, viveu sempre com a mãe, a avó e, a espaços, também com o pai, militar da Royal Air Force, umas vezes ausente por destacamento profissional, outras por dissentimento conjugal. Os Dwight acabariam por divorciar-se, era Reg adolescente. De um e de outro, Elton John dirá mais tarde que recebeu uma educação bipolar, feita de humores imprevisíveis, regras confusas e um ou outro par de latadas nem sempre compreensíveis. Nas primeiras vinte páginas de Me, a autobiografia que lançou em finais de 2019 (Eu, Elton John, Porto Editora) esse tempo é esmiuçado e servirá, ao longo das trezentas outras páginas que se lhes seguem, para justificar a contínua propensão para relações tóxicas e para fundamentar o seu prestigiado mau feitio. Mas nelas se descreve também uma infância razoavelmente feliz, o contacto permanente com a música, o piano da casa onde começou a demonstrar talento precoce, os novos discos de 78 rpm que a mãe comprava todas as sexta-feiras, e o dia em que Elvis levou o miúdo à descoberta salvífica do rock. Bipolar é, portanto, o termo.

Reg começou as aulas de piano aos sete, entrou na Royal Academy aos 11, onde terá sido um aluno mediano e desenquadrado, mas adquiriu uma sólida formação clássica. E foi mais ou menos por essa altura que ouviu Little Richard cantar “Tutti Frutti” e pela primeira vez sonhou com o que queria fazer: cantar rock desbragado sentado ao piano. Aos 15 anos, fundou então os Bluesology, com o seu vizinho Stewart “Stu” Brown, guitarrista com boa voz. Era 1962, e a banda já frequentava o circuito dos clubes londrinos, com um repertório à base de Muddy Waters, Jimmy Witherspoon, Memphis Slim e outros nomes do rhythm & blues, e logo em 1965 conseguiu segurar dois contratos: um com um agente que os pôs a servir de banda de suporte para estrelas norte-americanas em tours inglesas, como Major Lance ou Patti LaBelle; outro com a Fontana Records, que lhes permitiu gravar uma demo. E aqui chegamos, enfim e depois de muitos rodeios, à primeira canção desta lista. Chama-se “Come Back Baby”, foi o primeiro single dos Bluesology, e o primeiro single escrito, composto e cantado por Reginald Dwight. A música é uma balada rockabilly que dá pistas sobre as suas influências, e o texto choninhas torna evidente que Elton John pode até ter nascido nas nuvens, mas quem caiu do céu foi Bernie Taupin, o homem que seria o parceiro letrista da sua vida.

“Your Song”, 1970

Bernie, a relação de uma vida

Reza a lenda que bastou o tempo de pequeno-almoço para que a canção fosse concebida. Bernie Taupin escreveu o texto à mesa (a folha original, conta ele, ainda tem nódoas de café) e Elton John demorou 20 minutos a colocar-lhe música. Foi há mais de meio século e esta acabaria por ser a primeira canção da dupla a trepar aos tops. Escrito com uma candura desarmante (Taupin era então um rapazinho de 17 anos), o texto vai perorando sobre as várias formas de arte com que o narrador gostaria de expressar o seu amor, assim tivesse talento para isso. Conclui que apenas tem jeito para a música e por isso fez esta singela canção (“my gift is my song and this one’s for you”) que, apesar de se lado B para o single “Take Me to the Pilot”, acabaria por ser a preferida dos djs e fazer furor em ambos os lados do Atlântico. Alcançou a 8.ª posição na Billboard Hot 100 e a 7.ª na UK Singles Charts. E no fim acabou eternizada no Grammy All of Fame como uma das canções que ajudou a moldar a história do rock.

Em rigor, “Your Song” foi gravada primeiro pelos Three Dog Night, em março de 1970. Por essa altura, Elton John fazia as primeiras partes dos concertos da banda norte-americana e permitiu que incluíssem a canção no álbum It Ain’t Easy. Em seguida, ele próprio registou o tema em Elton John, o LP lançado nesse mesmo ano e que chegaria às posições 4 e 5, respetivamente, nas tabelas de mais vendidos nos Estados Unidos e no Reino Unido. Mas de repente já vamos no segundo álbum de estúdio e o melhor é voltarmos um pouco atrás.

Quando, ainda em 1967, Reginald adotou o nome Elton John, imaginou-o como parte de uma dupla compositora de canções que então começava a nascer: Elton John e Bernie Taupin. Os dois tinham respondido a um anúncio da Liberty Records, publicado na New Musical Express, em busca de novos talentos. Reginald tentou a sorte, foi lá, ainda gravou uma demo com algumas canções, mas não era o que eles procuravam. Mas alguém simpatizou com o rapaz e, como ele insistia que também tinha jeito para compor, mas não para escrever, entregou-lhe um envelope com letras que tinha sido enviado para lá por outro gaiato que dizia não saber compor, mas gostava de escrever.

Nascia naquele momento uma das mais produtivas duplas da história da música popular. Logo em 1968, Taupin e John conseguiram um contrato como compositores residentes para a independente DJM Records e durante dois anos entretiveram-se a treinar baladas easy listening para serem propostas a outros artistas. Mas não estava fácil. Entre os primeiros resultados, conta-se “I Can’t Go On (Living Without You)”, canção com que a cantora Lulu tentou representar o Reino Unido no Festival da Eurovisão de 1969 e defrontar Simone de Oliveira com a sua “Desfolhada Portuguesa”. Mas nem sequer venceu o festival britânico, ficando em sexto entre seis concorrentes. Em 2020, a canção apareceria incluída como raridade na coletânea Elton: Jewel Box, numa versão gravada pelo próprio em 1968. Mas se calhar já estamos a derivar demasiado.

Juntos, Taupin e John assinaram trinta álbuns, dos quais venderam 255 milhões de exemplares, colecionaram trinta hits consecutivos na U.S. Top 40, e mantêm o recorde do Guiness para single mais vendido de sempre, com as 33 milhões de cópias de “Candle In the Wind ’97”, que ouviremos lá mais adiante. Na sua autobiografia colorida, Elton escreve sobre Bernie: “a mais importante relação da minha vida”. Nada menos.

“Rocket Man” (1972)

Um castelo em França e a conquista da América

Em 1972, Reginald Kenneth Dwight adopta oficialmente o nome de Elton Hercules John. Na sua autobiografia, ele explica que esse foi um momento simbólico, que lhe permitiu assumir-se plenamente como a “pessoa que era suposto ser”. Mas logo a seguir admite que também lhe dava um jeito: “estava cansado que as pessoas reconhecessem a cara mas não o nome que estava escrito no livro de cheques.” Por esta altura, o dinheiro começa a rolar bem e Elton começa a dar largas à sua lendária extravagância. Já lá iremos.

É também esse dinheiro que lhe permite concretizar a vontade de fazer um álbum que não fosse gravado em estúdio com músicos de sessão, mas antes numa residência artística com a sua banda. O destino escolhido é o Château d’Hérouville, um castelo de século XVIII onde Chopin viveu, que Van Gogh pintou, e estava agora transformado num estúdio residencial. Foi aí que, um ano antes, os Grateful Dead fizeram uma célebre festa/concerto aberta ao público, que incluiu enfiar LSD nas bebidas de toda a gente sem avisar ninguém, e com isso chamaram a atenção de Elton. E foi também aí que, também em 1971, foram gravados três álbuns históricos da música popular portuguesa: Cantigas do Maio, de José Afonso, Mudam-se os Tempos Mudam-se as Vontades, de José Mário Branco, e Os Sobreviventes de Sérgio Godinho (que, já em 1972, ali voltaria para gravar o seu segundo disco, Pré-Histórias). Mas isso são outros contos.

Iluminemos então o caminho até aqui. Na sequência do seu álbum homónimo, Elton John tinha dado o primeiro concerto nos Estados Unidos logo em 1970, em Los Angeles, e o sucesso foi assinalável. Tumbleweed Connection, o muito recomendável e conceptual terceiro álbum, foi lançado em outubro desse mesmo ano e também chegou à posição 5 dos mais vendidos nos Estados Unidos (n.º 2 no Reino Unido). Logo em seguida, Elton deu um concerto direto para a rádio WABC-FM, de Nova Iorque, a partir dos históricos estúdios da A&R Recordings, e guardado no álbum 17-11-70 (11–17–70 para o mercado norte-americano). Seguem-se, em 1971, a banda sonora para o filme “Friends”, escrita por John e Taupin, e Madman Across the Water, o quarto álbum de estúdio, já completamente impregnado do imaginário da costa oeste dos Estados Unidos, que chegou à posição 8 da Billboard e incluía os singles “Levon” e “Tiny Dancer”. A América estava, pois, quase conquistada. Quase.

E o quase que faltava foi selado em França. Lançado ainda em 1972, Honky Château tornou-se no primeiro de sete álbuns consecutivos de Elton John a atingir o primeiro lugar  da Billboard (no Reino Unido não conseguiu suplantar Bolan Boogie, colectânea dos T Rex, e ficou-se pelo n.º 2). E é também o álbum em que Elton se afasta definitivamente do estilo mais songwriter baladeiro, ao jeito de James Taylor ou Leon Russell (para citar dois rapazes da mesma geração), e se aproxima definitivamente do registo rock, que se tornará progressivamente evidente nos álbuns seguintes. Tirando uma preciosa prestação do violinista Jean-Luc Ponty em dois temas, calam-se as cordas que acamavam os discos anteriores.

E é aí que se guarda “Rocket Man”. Baseada no conto homónimo de Ray Bradbury e com óbvias ressonâncias na Space Oddity que David Bowie tinha lançado três anos antes, mantém-se como uma das suas melhores canções de sempre e serviu de título ao biopic musical sobre a vida de Elton John, estreado em 2019. Em cima, podemos assistir à canção visualmente reinterpretada num filme animado pelo cineasta e refugiado iraniano Majid Adin. Uma peça notável que mostra que para ser extraterrestre não é preciso sair do planeta e que Elton John acolheu como vídeo oficial da canção em 2017.

“Crocodile Rock” (1973)

Continuamente no top

Os anos 70 são consensualmente reconhecidos como o período artístico mais relevante na carreira de Elton John. Entre 1972 e 1975, ele consegue então a proeza de colocar sete álbuns seguidos no n.º 1 de vendas dos Estados Unidos. Depois de Honky Château, seguiram-se Don’t Shoot Me I’m Only the Piano Player e Goodbye Yellow Brick Road (ambos de 1973), Caribou e a colectânea Elton John Greatest Hits (1974), Captain Fantastic and the Brown Dirt Cowboy e Rock of the Westies (1975). Foi mais um feito para a vasta coleção de números extraordinários que ajudaria a Billboard a elegê-lo, anos mais tarde, como o maior artista a solo na história dos tops norte-americanos, e o terceiro na lista geral, suplantado apenas pelos Beatles e pelos Rolling Stones.

1973 é especialmente intenso. Logo no início desse ano, Elton lança Don’t Shoot Me I’m Only the Piano Player, um álbum de orientação mais pop onde se guardam outros dois dos seus singles mais célebres. O primeiro é “Crocodile Rock”, canção inspirada na sua descoberta da banda australiana Daddy Cool, que foi lançada como single ainda no final de 1972 e se transformou no seu primeiro n.º 1 na Billboard Hot 100; o segundo é “Daniel”, a balada sobre o regresso de um jovem veterano do Vietname a casa, que meses depois se ficou pelo n.º 2 da mesma lista, atrás apenas de “My Love”, de Paul McCartney e dos Wings.

“Goodbye Yellow Brick Road” (1973)

A extravagante estrada amarela

É também em 73 que Elton John parece alcançar o auge da extravagância em palco — que há-de perdurar nas décadas vindouras. O concerto esgotado no Hollywood Bowl, em setembro desse ano, tem por base Don’t Shoot Me I’m Only the Piano Player e serve para apresentar já parte de Goodbye Yellow Brick Road. Mais que o alinhamento, porém, esse concerto é exemplar da sua obsessão crescente por espectáculos espalhafatosos e exuberantes entradas em cena. Ao fundo do palco, vemos um retrato gigante do próprio Elton John, de cartola na cabeça, rodeado de dançarinas. Em frente, estende-se uma escadaria tapeada de luzes e ladeada de palmeiras, por onde começa um desfile de imitadores de grande figuras públicas, anunciadas por um speaker: primeiro, Linda Lovelace, a maior atriz porno do seu tempo, depois, por ordem, a raínha de Inglaterra, Batman e Robin, o monstro de Frankenstein e o Papa. Finalmente, Elton John, o próprio, descendo triunfal ao som do tema da Twentieth-Century Fox, numa fatiota coberta de penas. Cá em baixo, cinco grandes pianos de cauda abrem-se à sua chegada, cada um mostrando uma letra escrita no tampo: no conjunto, lê-se “E L T O N”. Quem ache isto tudo um exagero, fique sabendo que o plano inicial era que saíssem daqueles instrumentos 400 pombas a voar.

Mas voltemos aos discos. Depois de uma mal sucedida tentativa de gravar no Dinamic Sounds, na Jamaica, o histórico estúdio do reggae, de onde saíram muitas gravações de Bob Marley e onde os Stones tinham gravado Goats Head Soup (álbum lançado também nesse ano), Elton e a banda acabariam a gravar novamente no Château d’Hérouville, em França. Em Kingston, esbarraram com os trabalhadores do estúdio em greve e acabaram por passar o tempo entre a piscina do hotel e aquilo que Elton descreveria mais tarde como uma “espécie de tentativa de bater algum recorde de consumo de marijuana”. Esses dias, admitiria, deixaram a sua marca indelével em Goodbye Yellow Brick Road. Foi aí, em três dias no hotel Pink Flamingo, que Elton compôs grande parte da música e Bernie terminou ainda algumas letras.

Quando chegaram a França, explica na sua biografia, tinham tanta música escrita que o álbum acabou por ter de ser duplo. Talvez por isso, também, o resultado é uma obra mais escura que as anteriores, atravessado por canções de tristeza e desilusão, uma balada eterna por Marilyn Monroe, crónicas sobre alcoólicos, prostitutas e uma jovem homosexual de 16 anos que acaba morta no metropolitano. Mas foi dessa caldeirada de 17 canções que se fez uma obra maior, onde além da faixa título se incluem “Candle in the Wind”, “Saturday Night’s Alright for Fighting”, “Funeral for a Friend / Love Lies Bleeding”, “Harmony” e “Bernie and the Jets”, o segundo single da dupla a atingir o primeiro lugar da Billboard Hot 100.

“Lucy in the Sky With Diamonds”, 1975

John Lennon e a linha branca no horizonte

Pode soar estranho que se inclua um cover nesta história, mas justifica-se pela importância simbólica. Este é o momento em que Elton se torna mais próximo de John Lennon, acontecimento que, ainda hoje, descreve como “ponto alto” da sua vida. Mas comecemos um pouco atrás.

Elton John e companhia passam as primeiras semanas de 1974 a gravar no Caribou Ranch, um estúdio nas Rocky Mountains, Colorado. O lugar acabaria por dar nome ao álbum seguinte, Caribou. Gravado em apenas nove dias, sob pressão de uma digressão agendada para o Japão a começar ainda nesse janeiro, o disco que guarda os singles “Don’t Let the Sun Go Down on Me” e “The Bitch is Back” não foi recebido pela crítica com o mesmo entusiasmo dos anteriores. Em rigor, à data, a Rolling Stone classificou-o mesmo como um fiasco. Mas os resultados comerciais falaram diferente e este acabaria por ser mais um álbum (o quarto consecutivo) a alcançar o cume de vendas e airplay nos Estados Unidos.

Na autobiografia de Elton, é por esta altura que a palavra cocaína surge pela primeira vez — há-de surgir outras 38 depois disso. Antes, há referências a canabinóides, barbitúricos, muito álcool e valiums à mistura, e a certeza de que até então o homem nunca tocou ou gravou o que quer que fosse de cabeça completamente limpa. Mas é aqui que, confessa, a cocaína entra, para apenas sair de cena vinte e tantos anos mais tarde. O consumo de cocaína será o traço comum às histórias mais doidas que Elton John tem para contar — como a vez que ele e John Lennon estavam em casa a aspirar gramas e se recusaram a abrir a porta a Andy Warhol, com medo que ele usasse a máquina polaroid que trazia sempre consigo para registar provas do acontecimento; ou quando, numa festa insana na sua mansão de Los Angeles, se indignou porque um dos jardineiros estava a comer e a beber à mesa, não reconhecendo que se tratava de Bob Dylan. Mas a cocaína será, inevitavelmente, também o acelerador meteórico da decadência pessoal.

O ano de 1974 é também o ano em que se fortalece a amizade e o intercâmbio artístico com John Lennon. Elton tem a ajuda de Lennon para criar o seu cover de “Lucy in the Sky with Diamonds”, que é lançado como single com “One Day at a Time”, outra canção do ex-Beatle, no lado B, e chega a n.º 1 nos Estados Unidos. Em sentido contrário, Elton grava com Lennon “Whatever Gets You Thru the Night” para o álbum Walls and Bridges, que também será também n.º 1 da Billboard Hot 100. Em setembro desse ano, Lennon subirá a palco durante o concerto de Elton no Madison Square Garden para interpretar esses dois êxitos em dueto, mais uma versão de “I Saw Her Standing There”, naquela que ficaria para a história como a última grande aparição do ex-Beatle em palco.

Someone Saved My Life Tonight, 1975

Uma biografia em disco

É também por causa de Lennon que o disco seguinte é maioritariamente composto em alto mar. Elton é padrinho de baptismo de Sean Lennon, filho do ex-Beatle com a sua primeira mulher Cynthia, e boa parte das canções de Captain Fantastic and the Brown Dirt Cowboy foram compostas a bordo do SS France, na última viagem daquele cruzeiro transatlântico entre a Europa e os Estados Unidos. Elton fazia então companhia a Cynthia e a Sean que ia visitar o pai à América e aproveitava as horas livres de almoço no salão de música para ir compondo música para os textos que Taupin lhe tinha dado. Não tinha gravador, limitava-se a tomar notas e a memorizar.

O disco reconta, de forma cronológica, a história da vida artística de Elton John (“Captain Fantastic”) e de Bernie Taupin (“the Brown Dirt Cowboy”) até então. É um álbum conceptual, autobiográfico, por assim dizer, em que Taupin vai recordando como a dupla chegou até ali. Uma colecção de canções sobre tentativas de escrever canções, canções sobre canções falhadas que ninguém quis, uma sobre uma tentativa mais encenada que falhada de suícidio de Elton em 1968, outra sobre o amor mais ou menos fraternal entre ele e Taupin (“We All Fall in Love Sometimes”). E outra ainda, este “Someone Saved My Life Tonight”, sobre quando quase casou com Linda Woodrow aos 21 anos, mas foi aconselhado por Long John Baldry, que era abertamente gay ao contrário de Elton, a pensar melhor na vida e nas suas escolhas.

Nos Estados Unidos, o álbum foi certificado com ouro antes ainda do seu lançamento e na primeira semana chegou ao n.º1 1 da US Billboard 200, onde permaneceu por sete semanas consecutivas. Estima-se que tenha vendido 1,4 milhões de cópias nos primeiros quatro dias.

“I’m Still Standing”, 1983

Sem Taupin não é top

Elton John acelera o metrónomo até aos 180 e investe de frente contra a adversidade. “I’m Still Standing” é um cântico de resistência de quem apanhou pancada de criar bicho, entoado na cara de quem o deu como derrotado antes do tempo. Foi, claro está, escrito na ressaca de uma separação (não de Elton, de Bernie Taupin), mas serve genericamente para cantar triunfo sobre infortúnios de qualquer espécie e para anunciar o regresso do artista à sua melhor forma. Está incluído no álbum Too Low for Zero, de 1983, e é o seu primeiro êxito considerável em vários anos. Mas para perceber isso temos de voltar um pouco atrás.

Em novembro de 1977, Elton John anunciou que se ia retirar dos palcos. Bernie Taupin foi à sua vida, começou a colaborar com outros músicos (Alice Cooper foi um deles), e só voltariam a juntar forças criativas no limiar da década de 80. São anos de relativa pobreza criativa na carreira de Elton, que agora se limitava a “apenas” um álbum por ano. São desse período alguns dos seus trabalhos menos interessantes, sem aplauso da crítica ou entusiasmo do público, como A Single Man (1978), com letras de Gary Osborne, ou Victim of Love (1979), um álbum de inspiração disco sound que registou a sua pior performance nos tops desde o início da carreira. Mas a sua popularidade não parecia abalada por isso.

A retirada dos palcos, como se adivinhava, não passou de frescura, e Elton continuou sempre na estrada. Em 1979 deu oito concertos esgotados na ex-União Soviética, quatro em Moscovo, quatro em São Petersburgo (ainda Leningrado). No ano seguinte, alcança outro marco de glória, quando, vestido de Pato Donald, consegue reunir 400 mil pessoas num concerto em Central Park.

John mantinha o ritmo de edição anual: 21 at 33 (1980), The Fox (1981), Jump Up! (1982), todos com resultados artísticos medíocres, apesar de algum êxito pontual. Foi o caso de “Little Jeannie”, com letra de Osborne, que interrompeu a sequência de quatro anos de singles fora dos tops e que em 1980 alcançou nº3 na Billboard Hot 100. Taupin voltara a colaborar com Elton, a espaços, a partir 1979, mas foi só em 1983 que a dupla de refez num álbum completo. E o resultado viu-se.

Too Low For Zero (1983) marca o reencontro criativo de uma das mais produtivas parcerias da história da música popular, mas também o regresso da banda que fez estrada com Elton John no brilhante início da década de 70: Dee Murray (baixo), Nigel Olsson (bateria), Davey Johnstone (guitarra), Ray Cooper (percussões), e Kiki Dee, a voz com que tinha selado o seu último number one hit (tanto nos Estados Unidos como em Inglaterra) “Don’t Go Breaking My Heart”, incluído no álbum Blue Moves, de 1976.

E é aqui encontramos este “I’m Still Standing”, o segundo single do álbum. O primeiro foi “I Guess That ‘s Why They Call It the Blues”, composto pelo guitarrista Davey Johnstone e que tinha Stevie Wonder na harmónica.

Nikita, 1985

A sexualidade atrás da cortina

Nikita, em russo, é nome masculino. Elton John sabe disso, como sabiam os pais de Nikita Khrushchev e toda a gente no lado de lá da Cortina de Ferro. Mas nesta altura, apesar de já se ter confessado bisexual numa entrevista à Rolling Stone em 1976, e da infindável sequência de relações, mais ou menos indiscretas, com outros homens, Elton mantém ainda a cortina de fumo que durante anos lhe valeu críticas abertas da comunidade gay. Por estes dias, de resto, vive com Renate Blauel, a engenheira de som alemã com quem casou no dia de São Valentim de 1984.

Tudo isso ajuda a perceber o videoclipe de “Nikita”. Nele, descobrimos Elton John apaixonado por uma deslumbrante guarda fronteiriça da ex-RDA, lamentando a impossibilidade de um amor interrompido pelo muro. Destroçado, o melhor que o pobre rapaz pode fazer é observá-la de longe através da sua Nikon, sentado no banco de trás do seu Bentley Continental vermelho, discretamente vestido de vermelho também, e insuspeitamente disfarçado com um chapéu de palha e óculos escuros roxos. A canção é single para o seu 19.º álbum de estúdio, Ice on Fire, lançado em finais de outubro de 1985. Quando o Natal chega, é já n.º1 em Portugal e em pelo menos mais dez países. As segundas vozes estão a cargo de George Michael e a guitarra nas mãos de Nik Kershaw.

É só em 1992 que, em nova entrevista à Rolling Stone, Elton John assume, plena e tranquilamente, a sua orientação sexual e se confessa “muito confortável em ser gay”, numa altura em que tudo na sua vida parece caminhar para uma inédita sobriedade — mas já lá vamos. No ano seguinte, enamora-se de David Furnish, publicitário e cineasta canadiano. Em 2005 juntam-se em união de facto, assim que a lei norte-americana o permite, e em 2014 casam em Windsor, logo após a aprovação britânica de casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Têm dois filhos. Estão juntos há 29 anos.

“Sacrifice”, 1990

Rei no Reino Unido

No limiar dos anos 90, sucedem-se os singles, mas escasseiam os álbuns que possam ombrear com os saudosos anos 70. Em 1986, há uma versão orquestral ao vivo de “Candle in the Wind” que chega a n.º 6 da Billboard, em 1988 “I Don’t Wanna Go on with You Like That” sobe à segunda posição, no mesmo ano, há um novo primeiro lugar na tabela norte-americana, com “That’s What Friends Are For”, uma colaboração com Dionne Warwick, Gladys Knight e Stevie Wonder que angariou fundos para a pesquisa médica no tratamento do HIV/Sida.

Mas é em 1990 que este “Sacrifice” se faz ouvir. Incluído em Sleeping With the Past, um álbum em que John e Taupin procuram recuperar uma certa estética r&b dos anos 60, que tanto admiravam em músicos como Otis Redding, Marvin Gaye ou Sam Cooke, “Sacrifice” é um hino à dor de quem decide pôr fim à relação de uma vida, coisa que pode soar estranha na voz de quem até aqui sempre saltitou de aventura em aventura e se apaixonou para a vida a um ritmo semanal. Mas é, sobretudo, um marco na sua carreira: é apenas a segunda vez, ao fim de 22 álbuns de estúdio, que ele alcança o n.º 1 da tabela de singles do Reino Unido, depois de em 1976 lá ter chegado com “Don’t Go Breaking My Heart”. Logo depois, Elton John entra em reabilitação.

“The One”, 1992

O primeiro disco sóbrio

O nome de Elvis surge 32 vezes em Eu, Elton John, uma autobiografia absolutamente divertida, ainda que fatalmente ensimesmada. Três delas são importantes. A primeira refere-se a esse dia, nos idos de 1956, quando Reginald escutou “Heartbreak Hotel” num vinil trazido pela mãe e descobriu um novo mundo. A segunda fala de quando, vinte anos depois, Elton conheceu Elvis nos bastidores de um concerto em Maryland, nos Estados Unidos, e ficou impressionado com um rei decadente e com a imensa corte que vivia à conta e o seguia por toda a parte, um ano antes da sua morte. A terceira quando, anos mais tarde, já em inícios de 90, finalmente admite que precisa de ajuda para vencer a dependência da cocaína e, contemplando a vida de excessos e extravagâncias em que tinha mergulhado, diz reconhecer em si o mesmo alheamento toxicodependente e, à sua volta, o mesmo género de bolha degenerada e de séquito oportunista. E é nesse momento que estamos.

Editado em 1992, The One é reconhecido por Elton como o seu primeiro disco composto e gravado em sobriedade. “Estava 100% limpo de álcool e drogas. Portanto foi duro”, confessa no livro. Artisticamente, não é o melhor cartaz para dissuadir o consumo de drogas: comparado com os seus melhores trabalhos, invariavelmente propulsionados a combustíveis ilícitos, fica muito aquém. O próprio Elton sabe-o. “Apesar de tudo, consegui uma boa canção”, defende. Refere-se a este “The One”, que dá título ao disco.

“Candle in the Wind”, 1997

Apesar do vento, a vela ainda arde

Por três vezes, “Candle in the Wind” chegou aos tops. Primeiro, em 1974, quando apareceu em Goodbye Yellow Brick Road e foi lançado como single do álbum em Inglaterra (nos Estados Unidos, foi preterido por “Bernie and the Jets”). Depois, em 1986, numa versão orquestral ao vivo gravada num espectáculo em Sidney, Austrália, com a Orquestra Sinfónica de Melbourne (nessa altura já figurou em 6.º da Billboard). E por último em 1997, quando John pede a Bernie que rescrevesse aquela ode memorial, originalmente pensada para Marilyn Monroe, de forma a servir de homenagem a Diana, Princesa de Gales, falecida a 31 de agosto desse ano. E aí é que a coisa pega fogo.

Numa entrevista em setembro de 2020, Bernie Taupin explicou à American Songwriter que a transformação do texto foi simples e natural porque, desde o início, a canção procurou um sentido universal, maior que a personagem que evocava. Dizia o letrista que o texto produzido sobre Norma Jean podia facilmente ter tido como personagem James Dean, Montgomery Clift ou Jim Morrison. A ideia central, concretizava, era evocar o desperdício que é alguém ser levado ainda no auge, sem explorar todo o seu potencial nem chegar a ser compreendido.

Certo é que, quando foi acesa para iluminar a memória de Diana, “Candle in the Wind” ganhou contornos milionários e tornou-se numa espécie de cúmulo dos números extravagantes que descrevem os 60 anos de carreira de Elton John. Tornou-se no single mais vendido de todos os tempos, despachando mais de 33 milhões de cópias. É o maior best seller de sempre, tanto na história da UK Singles Chart, como na da Billboard norte-americana. Nos Estados Unidos é, também, o único single certificado com diamante, depois de ultrapassar os 11 milhões de exemplares vendidos. As receitas geradas pelo single, na ordem dos 55 milhões de libras (uns 66 milhões de euros, ao câmbio atual) foram canalizadas para as obras sociais criadas pela Princesa de Gales. Elton, que era amigo pessoal de Diana, tocou a canção por uma única vez, na cerimónia fúnebre na Abadia de Westminster.