Por entre as fitas coloridas que enchem o Largo da Graça, os manjericos de papel que esvoaçam aqui e ali, as luzes penduradas de umas fachadas às outras, os cartazes de um vermelho vivo que não deixam dúvidas de qual é a marca de cerveja que aqui serve de patrocínio, Pedro Laginha destaca-se mais do que é habitual — ou, pelo menos, mais do que quando era adolescente e lhe apontavam o dedo nesta mesma zona da cidade. Tudo à sua volta é colorido, mas ele está vestido de preto da cabeça aos pés, uma imagem de marca que só abandonou uma vez quando uma personagem começou a passar do ecrã para a vida real sem ele dar conta.
Aos trabalhos em cinema, televisão, teatro, e até a voz de uma personagem no jogo The Last of Us, o ator soma agora a narração de Matar o Papa, o novo título dos Podcast Plus do Observador.
“Nunca tinha feito nada do género, portanto foi um desafio fantástico”, explica. Este ano já fez teatro e uma série, em outubro fará uma peça no Teatro da Trindade, encenada por Ricardo Neves-Neves, mas, antes disso, os próximos meses passam por feiras medievais. “É uma coisa que adoro. Ao fazer recriação histórica, estou a mostrar um pouco da nossa cultura, da nossa identidade, estou a recriar histórias da nossa História, o que é muito engraçado.”
Sempre devorou livros de História — além de gostar de Filosofia, Esoterismo e Psicologia — e é fã de romances históricos, “até mesmo aqueles romances de fantasia histórica de Marion Zimmer Bradley ou Bernard Cornwell”.
São temas que lhe enchem a imaginação desde que se lembra. Da própria infância — nasceu em São Jorge de Arroios, agora só Arroios, e cresceu na zona da Penha de França e na Graça, onde ainda vive — tem outra memória que lhe regressa à cabeça com frequência, uma imagem isolada que guarda com carinho. “Na Costa da Caparica havia uma casa de férias que era dos meus avós. Lembro-me de, durante a minha sesta, a minha avó entrar para me dizer olá e de eu estar acordado. É só isto, mas devia ter uns três ou quatro anos.”
As férias do verão eram quase todas passadas ali, com os irmãos. Pedro, nascido em 1971; Nuno, de 1972; e João, de 1974; três rapazes que, por vezes, enlouqueciam a mãe. “Os meus irmãos mais do que eu, que sempre fui tranquilo”. Inventava jogos e lia livros e, aos seis anos, estreou-se numa peça como Menino Jesus. Os pais pertenciam a um grupo de teatro amador católico e levavam os três filhos para os ensaios. “Na altura, era só uma brincadeira”.
Com a adolescência chegou o punk e os Joy Division. “Quando comecei a vestir-me de preto e a usar crista, éramos muito poucos em Lisboa e lembro-me perfeitamente que as pessoas apontavam e nos chamavam tudo e mais alguma coisa por sermos diferentes.” A mãe fazia de conta que nem via, já o pai era mais expansivo: “Dizia-me que assim não saía comigo à rua”.
Muitos dos dias de Pedro Laginha eram passados a desenhar. Era fácil e dava-lhe prazer. Quando chegou o momento de ir para a faculdade, o plano era seguir Arquitetura. “Tentei entrar e, no primeiro ano, não consegui. Concorri uma segunda vez e nada e então pensei que se calhar não era por ali. Experimentei outras coisas, até que comecei a fazer teatro profissional. Surgiu a oportunidade e gostei muito. A representação foi uma experiência até perceber que não havia outro caminho.”
Os pais é que não aceitaram logo a ideia de ânimo leve. Apesar de serem apaixonados por teatro, para eles não era “uma forma séria de pagar contas”, até porque sabiam como era “uma vida frágil e incerta”. “Foi a minha primeira guerra lá em casa. Mas impus-me e disse: ‘É isto que eu quero e vocês têm que aceitar, porque é realmente isto que eu quero’”.
Na altura, ainda vivia em casa dos pais e demorou algum tempo a provar que tinha razão — só aos 30 conseguiu ser financeiramente independente para pagar uma renda, apesar de ser ator profissional desde os 19. “Estreei-me n’O Leão Enganado, do La Fontaine, no Teatro Ibérico. Era uma peça infantil.”
Nenhum dos irmãos seguiu representação, mas os três tiveram uma banda até aos 20 e poucos anos da qual Pedro era o vocalista. O nome? “Os Três Irmãos, porque éramos mesmo só os três.” Juntaram-se entretanto um baterista e outro guitarrista. “Tocavamos covers em bares de praia e chegámos a fazer casamentos”, recorda. Apesar de ter atualmente uma banda de originais — Mundo Cão, que criou em 2001, tem estado praticamente parada, mas há um concerto agendado para julho, em Idanha-a-Nova —, sempre soube que não podia viver apenas da música.
“Um músico tem de se desdobrar. Mesmo todos os músicos que conheço que conseguem viver da música, têm vários projetos, fazem diversos trabalhos ao mesmo tempo, nem que seja jingles para publicidade, gravação de outras bandas, acabam por tentar montar um estúdio para poderem ir buscar mais algum dinheiro ali.”
A verdade, reconhece, é que enquanto ator também tem de se desdobrar em mil. É por isso que se imagina a trocar Lisboa por uma vida mais tranquila, mas nunca se afastando muito da cidade para estar perto do trabalho. “Ainda não tenho condições para o fazer, mas gostava de investir em algo mais simples. Gosto muito da zona oeste, qualquer coisa a meia hora daqui.”
Os filhos são outro dos motivos pelos quais ainda não está preparado para sair da capital. Afonso tem 21 anos, Eva tem 11 e Alice quatro. O primeiro é também ator, apesar de ter “sempre rejeitado essa ideia”. “O Afonso acompanhava-me para os ensaios quando era pequeno, porque muitas vezes não tinha com quem o deixar. Quando chegou ao 11.º ano, estava completamente descontente, mas estava naquela fase em que queremos ser tudo menos parecidos com os nossos pais. Andava no Liceu Camões, no curso de Ciência e Tecnologia, mas lá há dois grupos de teatro, um em português e outro em inglês, há grupos de fotografia, de cinema. Disse-lhe para experimentar, não tinha nada a perder.” Afonso experimentou e apaixonou-se pelo teatro. “Chegou a casa e disse: ‘Pai, é isto que quero fazer para o resto da vida’. E eu pensei: ‘Pronto, lá vou ter de trabalhar até aos 80 anos’.”
Reconhece que, em alguns aspetos, aproveitou melhor a paternidade com as filhas. “O primeiro filho é sempre um filho de descoberta. Preocupamo-nos com uma data de coisas que, percebemos depois, são mais intuitivas do que parecem.” A vida ficou em suspenso quando, aos 11 anos, Afonso teve um problema grave de saúde. “Andava encurvado e pensávamos que era um problema de coluna mas depois num exame detetaram uma mancha na zona do pulmão que tinha de ser caracterizada.” Uma ressonância revelou um tumor “quase do tamanho de uma manga”. Toda a gente ficou em pânico, incluindo os médicos. “Sabiam que tinha de ser visto para ontem e tinha que ser tirado para ontem, porque era uma massa que podia ser cancerígena ou benigna, era um 50/50.”
Afonso foi operado e o tumor retirado revelou células cancerígenas que não chegaram a metastizar-se. No entanto, as prioridades na cabeça de Pedro Laginha mudaram. “A possibilidade de veres o teu filho partir à tua frente é destruidora.” Foi uma tomada de consciência, admite, mas não ficou com um medo constante a pairar-lhe sobre a cabeça — pelo contrário. “Acabo por usufruir muito mais, dou valor e gozo o tempo com os meus.” É por isso que continua muito próximo dos irmãos. É neles que encontra conforto e segurança depois da morte dos pais, nenhuma delas fácil de digerir.
O pai morreu em 2020, durante a pandemia, apesar de não ter sido devido ao vírus. “Os últimos oito meses de vida dele foram num lar. O meu pai sofria de depressão profunda e nem sequer podia ter contacto com a única coisa que o agarrava à vida, que eram os filhos. Sabíamos que ele estava a afundar-se e não podíamos dar-lhe a assistência que dávamos antes. Foi muito marcante.” Com a mãe, o pilar da família, o choque não foi menor. “Diagnosticaram um cancro à minha mãe e em três meses ela faleceu. Foi um abanão enorme na vida de todos nós.”
Na altura, em 2008, estava em cena no Teatro Maria Matos, com Cabaret. Antes de uma das sessões esteve com a mãe e sentiu que “ia ser naquela noite”. No entanto, foi para o teatro, ligou para o hospital no intervalo e estava tudo bem, voltou a telefonar no final da atuação e disseram-lhe que a mãe estava tranquila. No dia seguinte, acordou com a notícia de que não tinha resistido. “O Diogo Infante, que era o encenador e estava à frente do Maria Matos, cancelou a peça durante uma semana. Mas, mesmo assim, retomar o trabalho foi estranho. Era difícil desligar-me da vida real, apesar de às vezes ser a única forma de lidar com a perda, fazer o nosso trabalho e deixar o resto lá fora.”
Fazer o caminho inverso e desligar-se das personagens é uma coisa que, com mais de 30 anos de carreira, consegue agora com alguma naturalidade, mas nem sempre foi assim. “Às vezes adotamos coisas para nós mesmos sem percebermos, como maneiras de falar ou olhares.” Foi o que aconteceu quando protagonizou Alta Fidelidade (2000), um telefilme de Tiago Guedes e Frederico Serra. “O Nuno era um DJ que se vestia de forma particular, com roupas largas e coloridas. Eu, que sempre fui um gajo do preto, de repente andava a experimentar outras coisas e a sentir-me bem, até dei oportunidade à música que ele ouvia. Foi na altura em que surgiu o drum’n’bass e o jungle. Até ia curtir para o Captain Kirk, no Bairro Alto.”
Só quando deu por si a falar com expressões em calão, percebeu que a personagem lhe tinha invadido a vida. O drum’n’bass foi ficando para trás, mas cada papel que faz tem uma banda sonora ou pelo menos uma música que o ator ouve para entrar na personagem. “Oiço muitas vezes aquela música específica quando vou a caminho das filmagens e isso acaba por me influenciar depois na representação.”
Quando interpretou Dom Pedro [em Pedro e Inês, 2005], um dos papéis que mais o marcou, ouvia em modo repeat Funeral of Hearts, dos HIM. “Colocava-me naquele sítio emocional que eu precisava para a personagem.”
Em teatro entrou em projetos como Pêssegos, A Filosofia de Alcova ou Deixa-me Rir. Em televisão estreou-se em Médico de Família, para lhe juntar produções como Os Nossos Dias e Circo Paraíso. No cinema, soma créditos em Linhas de Sangue, Incógnito e é a voz inconfundível de algumas personagens de animação, como Alex nos filmes Madagáscar ou Ralph em Força Ralph e Ralph vs Internet.
Em Cidade Despida, uma série policial da RTP de 2010, interpretou um agente da Polícia Judiciária. Aprendeu a disparar uma arma, acompanhou uma médica forense e procurou estar confortável com aquele ambiente. “Nós, enquanto personagens, temos de ser capazes de responder a todas as perguntas. Porque é que ele reage assim, porque se retrai, de onde é que isto vem… Não posso entrar numa morgue enquanto PJ e ficar incomodado com um cadáver ali. A composição da personagem é fundamental.”
Aos 53 anos, desdobra-se em prazeres simples: ir ao ginásio, ir buscar as filhas à escola e levá-las ao Miradouro da Graça, e sobretudo estar com as pessoas que têm significado para ele. Não pensa abrandar ou reformar-se da vida de ator tão cedo. “Enquanto me der prazer, vou continuar. Quando já não me acrescentar nada, vou fazer outra coisa.”
Essa outra coisa pode passar pelo campo e pelo Alentejo, de onde a mãe era natural. “Eu e os meus irmãos temos um monte no Alentejo e estamos a tentar adquirir algum terreno para cultivo, talvez azeitona, mirtilos. Sempre fantasiei um bocado sobre isso, ter a minha horta.”