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Albano Jerónimo e José Condessa, dois dos nomes principais do elenco de "Rabo de Peixe"
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Albano Jerónimo e José Condessa, dois dos nomes principais do elenco de "Rabo de Peixe"

Albano Jerónimo e José Condessa, dois dos nomes principais do elenco de "Rabo de Peixe"

Augusto Fraga, o realizador de publicidade que escreveu "Rabo de Peixe" para nos vender "uma grande série"

É o "showrunner" da segunda série portuguesa na Netflix (estreia-se esta sexta, 26). Em entrevista, fala da infância nos Açores, da carreira na publicidade e daquilo que só vê através das câmaras.

Quem nunca se sentiu aborrecido durante a pandemia e decidiu escrever uma série para entrar num concurso da Netflix, que atire a primeira pedra. Augusto Fraga, nome de currículo sólido no mercado da publicidade, estava cansado de não gostar de assistir a séries portuguesas. Resolveu fazer uma. Fez o pitch para um concurso da Netflix em Portugal e ganhou. Quem arrisca, petisca, mas tempos houve em que o realizador saía para o mar com os amigos de Vila Franca, na ilha de São Miguel, Açores, a sentir o sal na pele, e só voltava quando a obrigação familiar chamava. Não é que goste de arriscar, mas nunca tinha pegando nesta missão de escrever um guião de uma série para uma das maiores plataformas de streaming do mundo. Pegou em João Tordo e Hugo Gonçalves para a escrita, em Patrícia Sequeira para a realização e em André Szankowsi (“Glória”) para a direção de fotografia. A história saíu do baú: meia tonelada de cocaína foi dar à costa em Rabo de Peixe em 2001 e um grupo de miúdos, com sonhos americanos mais altos do que a própria ilha, encontraram ali o que julgaram ser a oportunidade certa para uma vida melhor.

Augusto Fraga nunca olhou para Rabo de Peixe como o resto do país olha: distante, pobre, sisudo, preso à memória daquela história tornada mito em que a cocaína até para panar o peixe servia. A memória dos seus Açores, que largou quando foi estudar Comunicação Audiovisual para o Minho — e logo depois Barcelona e Nova Iorque, sempre sozinho, sempre com a corda na garganta — é outra. Feliz, cheia de cor, de vida e de uma população de bem receber. Um observador privilegiado de uma gente que carrega um estigma que não sai. Fez-se realizador de publicidade nos quatro cantos do mundo, acabou membro do Directors Guild of America, mas, no início dos inícios, tinha era vontade de estar ao lado dos melhores guionistas, que conhecia da sua atividade predileta: devorar livros de arte e cinema. Isso levou-o até Manhattan, quando viveu no Spanish Harlem, ao restaurante cubano que o recebeu, todos os dias, quando preferia estar bem acompanhado em vez de só.

Cita Steven Spielberg e Paul Thomas Anderson como exemplos que tem seguido na relação que tem com a câmara. Ela é outra personagem principal, outra ferramenta que puxa — e se puxa em “Rabo de Peixe”, para o bem e para o mal — pela vida da série. Defensor do lado científico da arte, não fosse filho de pais de físico-química, acredita que o estado do audiovisual português pode estar a caminho de um ponto de ebulição. Basta que a divisão entre público e criador acabe, de vez. Eis Augusto Fraga, numa longa conversa com o Observador, o realizador de publicidade que nos quer vender “uma grande série”. “A arte é uma doença e o cinema também. São doenças incuráveis. O cinema não precisa de muito para se aprender. A realização é fácil, o difícil é ter algo para contar que seja relevante. Demorou-me muitos anos.” o resultado estreia-se esta sexta-feira, 26 de maio, na Netflix: “Rabo de Peixe”.

[o trailer oficial da série “Rabo de Peixe”:]

O que é que há do jovem Augusto em “Rabo de Peixe”? Há memórias de outros tempos nesta série?
As memórias que tenho são de liberdade associada à natureza. Ir nadar para o Porto, ter uma relação com o mar sem grande proteção. As crianças iam juntas nadar, atirávamo-nos das rochas. Depois, era tudo muito feito nos campos. Todos os meus amigos tinham cavalos, vacas, eram pescadores. A relação era muito forte com a natureza. Em paralelo, havia uma relação de viagem, de sonho americano. Existiam os barris, umas prendas que os imigrantes enviavam em forma de barril, cheias de roupa, comida, rebuçados. Vinham dos EUA e do Canadá. Tive vários amigos, sobretudo na primária, em que a cada ano mais familiares tinham emigrado. Perdíamos essas relações. Conheci a família da Nelly Furtado e toda essa imagem da pessoa bem sucedida na América acabou por marcar o que também é esta série. Sonhar com tudo em grande, os centros comerciais, essas coisas claramente marcaram a minha infância. Era parte do nosso imaginário.

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O Eduardo, personagem principal desta série, quer o sonho americano. O Augusto também queria?
A minha família não era de pescadores ou lavradores. Vinha de outra área, não estava tão marcada por essa ideia de sair de uma realidade dura. A minha era outra, mais privilegiada. Mais tarde, o sonho como realizador está nos Estados Unidos. Tenho bases em Los Angeles, faço parte da América, será que tem a ver com essas memórias? É possível. Tenho família em Toronto, no Brasil, na Califórnia. Nesse lado do mundo. Conto uma pequena anedota: os verões eram marcados pela chegada dos “calafonas”, os imigrantes da Califórnia, com roupas caras, motas de água, o que, para nós, que vivíamos numa vila pequena, era incrível. As nossas primeiras namoradas eram descendentes de norte-americanas. Não era um sonho. Quem caminhar hoje em São Miguel e perguntar onde é Lisboa relativamente a Vilar de Mouros, vai encontrar gente que não sabe. Mas se perguntar a distância de Boston para Providence, sabem. Há uma diferença grande para o continente. Depois lá percebi o que era o “continente”, mais tarde, quando vim. Vivíamos muito ligados a essa influência. Não era só o sonho, estava ligado à emigração. Depois começa a aparecer essa realidade no cinema. Eu encontrei.

"Em São Miguel havia exibição de filmes, havia cineclubes em Vila Franca. Vi muitos filmes americanos e europeus. Ir ao cinema era um evento social. Toda a gente ia. Havia peripécias das fitas chegarem tarde, atrasava a sessão, porque tinha vindo da Ribeira Grande para a Vila Franca. Ou da Lagoa para outra zona da ilha."

Quando é que se deu esse encontro com esse cinema?
Em São Miguel havia exibição de filmes, havia cineclubes em Vila Franca. Vi muitos filmes americanos e europeus. Ir ao cinema era um evento social. Toda a gente ia. Havia peripécias das fitas chegarem tarde, atrasava a sessão, porque tinha vindo da Ribeira Grande para a Vila Franca. Ou da Lagoa para outra zona da ilha. Lembro-me perfeitamente dessas histórias, que, na altura, eram irrelevantes. O cinema para mim era estar com os amigos. Havia cinema ao ar livre, também.

É aí que percebe que essa experiência social também podia ser a sua profissão? Ou só quando vem estudar para o Minho?
Comecei muito cedo, sem saber que era uma profissão, a estar apaixonado pela imagem. É um cliché, bem sei, mas quando tinha 12 anos havia cursos de verão. Escolhi fazer de fotografia. O meu avô também era fotógrafo, o meu pai também fez várias exposições. A minha mãe é musicóloga de folclore açoriano. Havia uma lógica familiar com a arte, mas achei engraçada a fotografia. Trabalhei com máquinas manuais. Aos 16 anos tive uma crise existencial nessa etapa da vida e, tanto o meu pai como a minha mãe, que são professores de ciência, achavam que o caminho lógico era seguir por aí. Comecei a ler Vitorino Nemésio, os autores açorianos, Natália Correia, e descobri que queria fazer arte. Estava apaixonado por publicidade também, ria-me imenso, investigava. Descobri que se podia estudar audiovisual para publicidade. Emocionava-me visualmente com os grandes anúncios. Descobri também que a fotografia era útil, aos 12 anos era só por gosto. Mal cheguei à faculdade era claro o que queria fazer.

Tinha noção de que era bom a fotografar?
Não era bom, não. Só que tinha tanta vontade e gostava tanto, criei a minha sala de revelação, passava horas lá. Sou uma mistura entre arte e ciência. Há um lado científico na fotografia, entre químicos e reagentes, 24 vezes por segundo é cinema. Quando comecei a filmar usei película durante 10 anos. Mas também há o lado artístico. Se a exposição for feita à luz, o que é que acontece às sombras? Se cria silhueta, se deixarmos menos tempo o que acontece, no preto e branco? As cores, onde é mais complexo. Descobri que nada era por acaso, percebi como se enquadrava. Questionava-me porque é que gostava tanto de uma determinada fotografia. Durante muitos anos, todos o dinheiro que ganhei foi dedicado a comprar livros de fotografia e depois de cinema, que é o que faço mais.

Onde é que está a ciência no seu pensamento como realizador?
Fica muita coisa. O trabalho do realizador é muito racional porque está englobado num desenho de produção que é milimétrico. Claro que há uma visão artística do objeto, mas se não houver racionalização do tempo, dos recursos, da matéria que temos, se não for muito bem trabalhado do ponto de vista científico, acabamos por não conseguir fazer nada. Não é como escrever um romance, há um ritmo. O cinema trabalha ao milímetro e isso é muito científico. Gosto de usar a câmara, de a operar, como instrumento de linguagem. Não é só observação, não digo que é pior ou igual, é o que sou. A câmara faz parte, na linha do Paul Thomas Anderson ou até do Steven Spielberg. Não é uma visão externa. Profundidade de campo, que gadgets vamos usar, se é uma steadycam, se é um drone. Tecnicamente tenho de saber muito para poder fazer, apesar de ter pessoas ao meu lado, que me podem ajudar. Mas se não tiver essa visão, a minha expressão artística é incompleta.

Porque é que decidiu ir para o Minho?
No décimo segundo ano disse que não queria estudar Ciências e a única universidade do país que aceitava o meu exame de Matemática para o curso de Comunicação Social era a do Minho. Foi uma decisão fácil e ótima.

Segue para Barcelona e Nova Iorque. Como é que alguém, ainda jovem, consegue estar a estudar e não se deixar levar por completo?
A arte é uma doença e o cinema também. São doenças incuráveis. Deixei de ver outra coisa que não fosse cinema. Ia para Braga a ler livros de cinema e num deles tinha exemplos de guiões, que eram de uma universidade de Barcelona. Queria estar com estas pessoas, queria ser o pior ao pé destes. Não devia ter lido, comecei a falar com os meus pais, tive a sorte de ser bom aluno e conseguir uma bolsa. Estava a aprender muito no Minho, mas em Barcelona o nível era muito alto. Tinha que estar ao pé deles. Depois, Nova Iorque. Tinha sempre o trauma de não estar a estudar cinema porque em Barcelona era comunicação audiovisual. Pedi um empréstimo para ir para lá, porque o curso era de realização. O cinema não precisa de muito para se aprender. A realização é fácil, o difícil é ter algo para contar que seja relevante. Demorou-me muitos anos.

Ir sozinho para Barcelona e Nova Iorque. Como?
Quando estava em Espanha já estava numa produtora de publicidade a trabalhar como assistente criativo de um realizador. Aí surgiu uma oportunidade para fazer um anúncio para um festival parecido com o Fantasporto, perto de Barcelona. Fiz um anúncio que ganhou o prémio de novo realizador. Ganhou uma série deles. A produtora disse-me que já tinha um showreel, que já tinha curtas, e perguntaram-me se queria ser realizador ou assistente. Disse-lhes que tinha só de fazer outra coisa: ir para Nova Iorque. Consegui o empréstimo em Espanha porque tinha contrato de trabalho e fui com essa miséria económica para lá estudar. A experiência humana valeu muito. Sempre gostei de estar sozinho, já tinha saído dos Açores, era igual, não estava em casa.

Augusto Fraga, o criador e shworunner de "Rabo de Peixe"

CARLAPIRES

Os cursos de escrita lá fora compensam mesmo? É que hoje em dia está literalmente tudo na internet.
Sou um grande defensor da formação académica em geral. Todos os cursos, nomeadamente os mais práticos do que a nossa educação na Europa, são muito úteis. Nem que seja para sistematizar o processo. Aprender definições como “qual é a primeira coisa que um realizador tem de fazer quando se chega a um set?”. As coisas práticas de um dia de filmagens. Mas também para se conhecer a história do cinema. Se dedicarmos uns meses só àquilo… cada um faz o seu curso. O que podemos sacar da faculdade depende, há quem tire muito, outros muito pouco. Ver o Pedro Almodóvar que, tanto quanto sei, que não tem formação académica, é perceber que também existem pessoas com um talento único.

Que história guarda do típico português do desenrasca?
Para poupar dinheiro vivia em Manhattan, no Spanish Harlem. Tinha pouco dinheiro, fui adotado por uma senhora cubana de um restaurante. Ia para lá porque não queria estar em casa sozinho, começou-me a dar os restos. Durou muito tempo, era grátis. Só porque uma senhora mais velha achou que precisava de proteção. Vou tentar não me emocionar… mais tarde voltei lá e percebi que já tinha morrido. O sítio continua aberto.

Quando voltou lá, entrou?
Sim, imensas vezes. O Sebastião Salgado é que diz isso: nunca viaja com ninguém porque a forma como as pessoas o recebem é diferente, abraçam, protegem. Aconteceu. Valeu mais do que o que aprendi tecnicamente. Claro que esse lado também foi incrível.

Com currículo feito na publicidade, onde se vai buscar a motivação para este utro lado do audiovisual?
Sou um pouco infantil nisso. Acredito sempre que estou a fazer algo incrível, desde o guião. Fazer algo que nunca se fez. Tem a ver com a minha personalidade. Movo-me pela crença de que vamos fazer algo que vai ser realmente relevante. Mas pode pensar: num anúncio, onde se encontra isso? Pode acontecer. Um plano sequência de um minuto que tecnicamente via ser difícil. Tendo sempre algo que eleve a comunicação e que seja desafiante. Comecei a trabalhar muito as transições entre planos, como passar câmaras, desde drones, a terminar numa cara de uma pessoa que está num corredor. Desafios técnicos, no fundo. Gosto do lado da magia. Do show off. Do “como é que fizeram isso?”. Se vir um trabalho que fiz para o Japão, o nosso objetivo era que um especialista na área não descobrisse como tinha sido feito. Bem sei que é só para três ou quatro pessoas, mas é motivação. Procuro essa relevância, não é só vender.

"Deixei de acreditar muito cedo que o talento se transmite por osmose. Quando comecei a trabalhar, acreditava que se trabalhasse com o Darius Khondji, que é dos melhores diretores de fotografia do mundo, por osmose iria estar nesse patamar. É uma aprendizagem."

Como é que se lida com o verdadeiro para fazer algo que está a ser vendido como aspiracional? É a eterna questão da publicidade.
Se daqui a 100 anos, alguém olhar para os anúncios de hoje, vão conhecer a sociedade, ou uma parte dela, quase como análise histórica. É um documento do ponto em que a sociedade está. E sobre aquele que ambiciona atingir. No mundo em que estamos, onde é pouco habitual haver diferença de produtos, as grandes marcas nunca estão a oferecer nada realmente novo. Um carro vai de um ponto A ou ponto B, consome mais ou menos. Os grandes motivos de compra não são racionais, são emocionais. Na publicidade, tentamos chegar ao espectador desde o lado emocional, mas não é manipulação. É conhecê-lo. O que não podemos fazer é enganá-lo. Há leis para isso. Que valor tem um Chanel nº5 contra uma outra marca de perfume? É totalmente emocional. O que tentamos perceber são as inspirações da sociedade que se possam associar às nossas marcas.

Como é que começa a sua relação com o André Shankwoski? Gostaram logo um do outro?
Deixei de acreditar muito cedo que o talento se transmite por osmose. Quando comecei a trabalhar, acreditava que se trabalhasse com o Darius Khondji, que é dos melhores diretores de fotografia do mundo, que eu, por osmose, iria estar nesse patamar. É uma aprendizagem. Sou eu que defino a qualidade do meu trabalho. Tenho de ter ao meu lado pessoas que conseguem levar isso para a frente. A grande diferença é que o André é capaz de superar o que lhe peço. E isso forja uma amizade. A minha mão direita é o André, a esquerda é o Marcos Castiel, editor de “Rabo de Peixe”, de “Glória”, trabalho com os dois de tudo o que faço. Acabei de chegar da China para fazer um anúncio para  a Mercedes, e eles trabalharam comigo. Essa cumplicidade que vem do trabalho acaba por dar um grau de exigência mútuo. Claro que forma uma amizade. 15 anos a trabalhar juntos no tempo todo, o André é o meu melhor amigo, sou padrinho do filho dele. Os talentos deles superam-me, sou melhor realizador por trabalhar com ele.

Rabo de Peixe, série Netflix

PAULOGOULART/NETFLIX

Essa proximidade entre talento, permite haver espaço para crítica e discussão? Dizer mal dos amigos é complicado.
Já demos a volta ao politicamente correto. Somos muito honestos entre nós. Se reparar na equipa do Steven Spielberg, de edição à fotografia, e os filmes dele são muito diferentes, mas com a mesma equipa. Admiro imenso essa ideia. Uns fazem os outros melhores. Tive a sorte de conhecer aqueles dois rapazes. O Marco uma vez mostrou-me um videoclip que tinha feito que estava muito melhor do que o que tinha realizado.

Em equipa que ganha não se mexe.
Sim. Nunca discutimos demasiado. É sempre a querer fazer melhor, mesmo quando não há tempo. Tenho muita sorte.

Esta história de “Rabo de Peixe” era a que estava guardada?
Tenho tantas, mesmo muitas, que foram começadas. Outras desenvolvidas já com um dossier de apresentação. Enviei ainda agora quatro para uma produtora. O contexto desta série, que fazia parte desse conjunto de ideias que estavam na gaveta, mais a pandemia, isolado com a família em São Miguel, e o concurso da Netflix… era quase inevitável não querer fazer esta história. Vi muito streaming e perguntava-me porque é que estava a repetir séries, a ver “Ozark”, a ver “Breaking Bad” e não via nada em português que me atraísse para acabar o primeiro episódio. O “Good Gods”, o “Euphoria”, puxava para trás e via como tinha sido realizado. Era inevitável, porque todas as séries que via tinham em comum um sítio pequeno em que acontece algo extraordinário a alguém.

"O público português está preparado para ver cinema e séries portuguesas. O que é preciso é que o criador também o considere como recetor da sua mensagem. Acho que não tem sido assim muitas vezes. Não o devia dizer, mas está dito."

Há uma intenção clara de dar um ritmo diferente que pode ter paralelo com outras séries de ação na Netflix. E um distanciamento da primeira série portuguesa para esta plataforma de streaming. Agrada-lhe a ideia das comparações? Ou assusta-o?
Assusta. Escrevi a série que gostava de ver. Quando começámos a trabalhar com o Hugo e o João, tínhamos esse objetivo. Sem elitismo ou preconceito. Ou dar lições de moral. A narrativa internacional tem uma relação com o público que é muito importante. Tem de ser tido em conta. É o elemento que decide se todo o trabalho vale a pena ou não. Isso justifica esse ritmo mais acelerado, comparando ao habitual do cinema português. A droga é um elemento de dinamismo aqui. O ritmo não é igual a interesse. Ritmo com profundidade, sim. Procurámos isso mesmo. Tentámos não ser superficiais na ação pura que também me aborrece.

O que é que há de português em “Rabo de Peixe”, além da história?
Quero responder sem dizer algo que não posso. Por isso é que estou aqui num momento à Johnny Depp. O que o género português não pode ser é um cinema de costas viradas para o público. Uma paz podre entre o criador e o público, que vivem na mesma casa e não se falam. O público português está preparado para ver cinema e séries portuguesas. O que é preciso é que o criador também o considere como recetor da sua mensagem. Acho que não tem sido assim muitas vezes. Não o devia dizer, mas está dito.

Fala de desentendimentos dentro da indústria do cinema?
Adorava que os cinemas e as séries portuguesas fossem vistas como toda a gente tal como acontece em Itália, França ou Espanha, é isso. Esse é o meu sonho. Adorei o “Glória”. Acho que há espaço para séries como a minha e o “Glória”. É preciso um craft incrivelmente alto, que chegue a públicos diferentes. O Salvador Martinha disse-me que “Rabo de Peixe” era a nossa “Cidade de Deus”. Foi honesto. E esse filme marcou uma série de filmes desse género. Se a nossa série tiver um impacto minimamente parecido na sociedade portuguesa, ainda bem. Não tem que haver um só género português.

O problema também está em conseguir exportar. E criar o hábito por cá.
As guidelines da Netflix eram de que esta série tinha de ser para Portugal. A universalidade da história existia, mas a intenção não era ser para internacionalizar, sem ser por aí. Não há nada forçado para isso. Não colocámos atores de outras nacionalidades. Mas sim, isto é sobre um rapaz normal numa consideração extraordinária. É universal. Não é nada novo.

Em “Rabo de Peixe”, onde encontramos o Augusto como realizador? Bem sei que gosta de trabalhar em equipa, mas teve de tomar decisões sozinho.
Na parte da execução, tentei trazer uma proposta visual forte. Imaginei sempre Rabo de Peixe como um sítio colorido e bonito, com corpos morenos e atraentes. O oposto do social, do lento, do depressivo. Sem impor esse visual à história. A decisão da Sílvia de ter o cabelo cor de rosa não veio de outro motivo de um passeio com os guionistas por lá e de vermos uma rapariga com o cabelo pintado dessa cor. Começámos logo a pensar na história que está por detrás disso, é uma metáfora para fuga, um símbolo que rompe. Serviu-nos muito. Há detalhes inspirados pelo que vimos na ilha. Essa função estética é a visão que tenho daquele lugar, não é de um sítio que não existe.

Também queria livrar-se do preconceito associado àquelas pessoas.
Vou ser honesto: nunca vi Rabo de Peixe assim. Esta não é conversa da treta. É do fundo do coração. É um lugar cheio de gente divertida, muita liberdade, cheia de energia. Uma loucura espontânea. Por isso é que me surpreendeu quando me falavam do estigma social. Mas que estigma? Está na cabeça de quem vê. O valor é dado por quem analisa. Não olhamos para esta série assim. Há problemas sociais em Rabo de Peixe? Suponho que sim, não sou agente social. Também existem outros sítios em Portugal onde isso acontece. A série não tem esse tema, não é só sobre isso, de todo.

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