O colapso do Silicon Valley Bank (SVB), que tinha grande parte dos seus investimentos aplicados em dívida do Tesouro norte-americano, virou os holofotes dos mercados financeiros para as “perdas potenciais” que estão no balanço de praticamente todos os bancos do mundo – os títulos de dívida do respetivo país (e de outros), investimentos considerados de baixo risco mas que têm vindo a perder valor. Os maiores bancos portugueses têm 45 mil milhões de euros em obrigações soberanas e, segundo uma nota da agência de rating DBRS, são dos mais vulneráveis da Europa a essa desvalorização. O impacto potencial “parece ser gerível” mas esta é uma fase em que os investidores “estão atentos a todo o tipo de vulnerabilidades”, avisa a agência de rating.
“Muitos dos problemas que levaram ao fracasso do SVB tinham natureza idiossincrática e não se verificam, numa medida que seja comparável, no sistema bancário europeu“, escreve a agência de rating numa nota a que o Observador teve acesso. “Os bancos europeus têm, em geral, menor exposição a ativos de rendimento fixo [como as obrigações do Tesouro], bases de depósitos mais estáveis e um enquadramento regulatório que obriga a políticas de gestão de risco mais cautelosas, mesmo no caso dos bancos de menor dimensão”, explica a agência de notação de risco de crédito.
Porém, apesar deste otimismo, a DBRS comenta que “as mudanças das taxas de juro criam desafios para os bancos“, porque sempre que existe uma subida dos chamados “juros da dívida” isso tem, na sua base, uma descida da cotação do título. Nas obrigações, as rendibilidades e os preços movem-se de forma inversa, porque quanto mais barato é o título maior é o ganho com a diferença face ao valor (100%) que se prevê que seja reembolsado pelo emitente dessa dívida, na data do vencimento. A agência de notação garante estar a “monitorizar de perto” estas exposições na banca internacional.
Quando se fala em dívida pública da zona euro, porém, só porque o valor de um título baixa isso não significa automaticamente uma perda para o banco que nele investiu. Essa perda só tem de ser reconhecida quando o ativo financeiro está depositado naquilo que os bancos chamam de “carteira de ativos disponíveis para venda” – aí, a flutuação do valor dos títulos no mercado tem de ser refletida nas contas dos bancos (o chamado mark to market).
Mas há um outro “bolso”, que é normalmente onde estão a maioria das obrigações do Tesouro, que é a “carteira de vencimentos” (hold to maturity), ou seja, títulos que o banco não prevê vender no mercado antes da data de maturidade e, por essa razão, estão contabilizados sempre a 100% do seu valor independentemente da cotação de mercado (em rigor, ao chamado “custo amortizado”).
É por isso que não se fala em perdas mas, sim, em “perdas potenciais“. A dívida pública europeia é considerada um ativo “sem risco”, por isso os balanços dos bancos assentam no pressuposto de que esses investimentos vão render um determinado cupão anual (normalmente fixo) e, no final do prazo, é devolvido 100% do seu valor.
Isto significa que na maior parte dos títulos que os bancos têm na sua posse, os que estão na carteira de vencimentos, não há o risco iminente de prejuízo – e, em caso de necessidade como a que enfrentou o Silicon Valley Bank, haveria outras formas mais rápidas e menos penalizadoras de garantir acesso a liquidez do que vender aqueles títulos no mercado, designadamente as linhas de emergência do Eurossistema.
Bancos portugueses seriam dos mais penalizados com venda de títulos
Apesar dessas garantias, que dão algum conforto de que estas “perdas potenciais” nunca serão outra coisa que não isso mesmo – “perdas potenciais” –, a DBRS fez um “exercício teórico” no qual avalia “o impacto potencial sobre a capitalização das perdas potenciais que não estão reconhecidas” no valor dos ativos dos bancos. A conclusão é que “o impacto sobre o capital parece ser gerível para os bancos europeus” – mas os bancos portugueses aparecem como os mais vulneráveis.
Depois dos 18% da banca italiana, a banca portuguesa aparece como o segundo país com maior exposição às obrigações soberanas em proporção dos seus ativos totais: uma percentagem de 15%. Espanha não está muito longe, com 12%.
Porém, este top 3 tem uma configuração diferente quando a DBRS simula o impacto que uma desvalorização de 10% nos títulos teria nos capitais dos bancos (em média). Aí, o consumo de capital causado por uma venda de dívida pública com esse prejuízo baixaria os rácios da banca portuguesa para 11% – o mesmo que Espanha e Grécia (Itália ficaria com 12%, segundo a agência de rating).
Mesmo nos casos piores, que incluem Portugal, os rácios de capital ficariam acima dos 8% que são o mínimo regulamentar. “Estamos a falar de um impacto teórico no capital que seria gerível, olhando para a média da amostra utilizada”, afirma a DBRS, notando que essa média esconde alguma heterogeneidade e “o consumo de capital seria significativo para alguns bancos“. Isto embora se saiba que a maioria dos bancos, incluindo os mais pequenos, tem frequentemente “estratégias de proteção de risco (hedging), usando contratos derivados, que compensariam uma parte da desvalorização das suas carteiras de dívida pública”.
O Silicon Valley Bank, que como foi noticiado não tinha “estratégias de proteção de risco” em grau minimamente suficiente, ficava com rácios de capital de 3%, de acordo com a mesma simulação feita pela DBRS – ou seja, muito abaixo dos mínimos regulamentares.
A agência de rating usou como base, em Portugal, apenas o Millennium BCP, a Caixa Geral de Depósitos e o Novo Banco. A Associação Portuguesa de Bancos (APB), porém, tem dados diferentes e mais abrangentes, e aponta para um peso ainda maior dos títulos de dívida nos ativos dos bancos (em comparação com a zona euro). São números que apontam para um peso superior a 20% dos títulos de dívida, muito mais do que Espanha, o dobro de França e até mais do que Itália.
O Banco de Portugal, na última edição do seu Relatório de Estabilidade Financeira (novembro), notava que até àquela altura já tinha havido uma desvalorização global média de 10,6% – e “a redução no valor destes títulos assume particular relevância dado o seu peso na carteira de dívida titulada, mas também atendendo a que a generalidade destes instrumentos são transacionados nos mercados de recompra enquanto colateral para o financiamento entre instituições”.
Porém, o Banco de Portugal salientava que, ” no decorrer dos últimos anos, a generalidade das instituições nacionais reconheceu atempadamente o impacto potencial associado ao risco de taxa de juro, tendo adotado estratégias ativas de mitigação deste risco”.
Impacto “completamente acomodável”, garantem os bancos
Contactados pelo Observador, os cinco maiores bancos a operar em Portugal transmitem uma mensagem de serenidade em relação a este risco. Fonte oficial do Novo Banco diz que foi simulado um “cenário adverso” onde, partindo da exposição a 13 de março, haveria um impacto negativo de 24 pontos base nos rácios de capital do banco. O impacto, diz fonte oficial do Novo Banco, seria “mitigado pela gestão conservadora do risco da carteira”: “face aos atuais 13,7% de capital core Tier 1 [o capital de maior qualidade] seria completamente acomodável dentro de uma almofada totalmente robusta“.
O Novo Banco desfez-se no ano passado de uma grande quantidade da dívida pública portuguesa que tinha – eram mais de 3 mil milhões no final de 2021 e passaram a 995 milhões no final de 2022. Apesar dessa redução da exposição à dívida pública portuguesa, a carteira de títulos até aumentou 4% para 10,9 mil milhões de euros, fruto do aumento das compras de dívida pública de outros países e dívida empresarial.
Também o Millennium BCP indicou na última apresentação de resultados que em dezembro de 2022 tinha uma carteira de dívida pública de 16,5 mil milhões de euros, menos de metade dos quais (6,3 mil milhões) em títulos de dívida do Estado português. Essa foi uma exposição que o banco liderado por Miguel Maya reduziu de forma significativa, já que eram mais de 8 mil milhões em dezembro de 2021 – uma redução que terá acontecido por venda de títulos em mercado e por algumas obrigações terem atingido a data de vencimento.
Fonte oficial do BCP não fez comentários sobre os riscos associados à desvalorização dos títulos. Já o Santander disse ter “uma carteira de dívida pública reduzida, de dois mil milhões de euros, com maturidade média de cinco anos, maioritariamente contabilizada em custo amortizado, e que está devidamente coberta em termos de risco de taxa de juro“.
A Caixa Geral de Depósitos salienta que “a gestão da carteira de títulos a custo amortizado assenta, desde o momento inicial do investimento, na decisão da sua manutenção até ao vencimento não sendo expectável a sua venda“. E não seria provável essa venda porque, acrescenta fonte oficial, existe uma “situação de ampla liquidez, assente em elevadas quotas de mercado em depósitos, especialmente, no segmento de particulares sem concentração em clientes específicos e com estabilidade ao longo do tempo” – o que, diz a Caixa, faz com que não haja “necessidade de venda dos ativos”.
O banco público, que tem 15,4 mil milhões de euros em dívida soberana, garante que “monitoriza e gere os riscos inerentes à sua atividade, incluindo o risco de taxa de juro“. “A carteira de títulos a taxa fixa contribui, em si, para a cobertura desse risco de alguns passivos de médio e longo prazo constantes do seu balanço”, acrescenta fonte oficial da Caixa, que tem 86% dos títulos em carteiras a vencimento.
E o BPI, segundo fonte oficial, “detém uma carteira de títulos de dívida soberana de 4,7 mil milhões, correspondente a dívida de médio e longo prazo, com uma maturidade média de 3,7 anos, constituída por obrigações soberanas de Portugal (41%), Espanha (21%), Itália (14%), União Europeia (13%) e EUA (10%)”. O BPI acrescenta que “a carteira de dívida soberana tem como objetivo a gestão de liquidez, mantendo uma posição estrutural de ativos de alta qualidade, e contribuição para a redução da exposição do balanço do banco às variações das taxas de juro, constituindo ela própria uma cobertura (“hedging”) para cenários de descida de taxas”.
“Sendo uma posição estrutural, a maioria desta carteira (80%) está colocada na carteira de custo amortizado (hold to maturity) e os restantes 20% na carteira de justo valor através de outro rendimento integral”, conclui o BPI. É um retrato, feito pelo banco, que destaca o baixo “risco de crédito” dos emitentes mas que não aborda em detalhe, porém, o “risco de taxa de juro” que está a impactar os bancos internacionais – até aqueles que investiram na dívida da maior economia do mundo, a norte-americana, como o SVB.
Um caso como o SVB podia acontecer na Europa?
A DBRS acredita que não é expectável que este exercício teórico se concretize e que os bancos europeus se vejam na obrigação de vender estes títulos, transformando uma perda potencial em perda real, “por duas razões“. Em primeiro lugar, porque, “em contraste com o SVB, os bancos europeus não precisam de vender obrigações para conseguirem reposicionar o seu balanço e fazer com que os seus investimentos se tornem mais sensíveis [pela positiva] a um cenário de aumento das taxas de juro”.
Isto é especialmente verdade no caso dos bancos portugueses, que têm maior prevalência de créditos com taxa variável e, por isso, beneficiam de forma mais imediata de um aumento das taxas (designadamente dos indexantes Euribor) do que a média dos bancos europeus. Nos outros países da Europa, os bancos têm, de forma geral, mais créditos com taxa fixa e, portanto, não conseguem ter o mesmo “amortecedor”.
Isto significa que se as Euribor continuarem a subir os bancos podem começar a ter maiores problemas com imparidades e incumprimentos mas, para já, o impacto está a ser positivo na margem financeira – graças ao aumento das prestações de crédito – e isso já ficou evidente nos resultados da banca em 2022.
Por outro lado, acrescenta a DBRS, uma segunda razão que deixa a agência confortável é que “as bases de depósitos dos bancos europeus são mais robustas do que as do SVB”. “Os bancos europeus que cobrimos têm uma proporção muito maior de depósitos de particulares, ao passo que o SVB tinha, sobretudo, depósitos empresariais”, afirma a agência de rating, notando que os depósitos dos particulares tendem a ser menos onerosos para os bancos e são, também, menos “fugidios”.
Finalmente, a DBRS salienta que “o enquadramento da supervisão nos bancos europeus é mais robusto do que aquele que era aplicável ao SVB”. “Todos os bancos europeus estão sujeitos às regras de liquidez definidas pelo Comité de Basileia”, ao passo que nos EUA “apenas os bancos de maior dimensão têm de respeitar essas regras” – é isso que acontece hoje em dia, não obstante o presidente da Reserva Federal dos EUA ter dado a entender, na quarta-feira, que é previsível um reforço da regulação na banca norte-americana.