Os banqueiros não escondem o “entusiasmo” com que veem a medida (pré-anunciada pelo Governo) de lançar uma garantia pública à entrada inicial que as pessoas têm de dar quando querem comprar uma casa. Essa entrada inicial – que o Banco de Portugal “recomenda” aos bancos que exijam aos clientes – é um obstáculo para milhares de pessoas que, a menos que tenham familiares que possam ajudar, dificilmente conseguem acumular as dezenas de milhares de euros que muitas vezes custa, quando somada aos impostos a pagar e aos custos da escritura. Para os banqueiros, sobretudo numa altura em que a concessão de crédito dá sinais de estagnação, essa garantia pública será quase como um subsídio ao seu negócio – embora digam que querem, primeiro, conhecer os detalhes da medida antes de avaliar o impacto.
Ao final da tarde da sexta-feira 10 de maio, Luís Montenegro e o seu ministro das Infraestruturas e Habitação, Miguel Pinto Luz, confirmaram que é intenção do Governo avançar com esta garantia pública – é uma das 30 medidas do programa “Construir Portugal“. Mas deram-se poucos detalhes além do que já tinha sido sinalizado no programa eleitoral da Aliança Democrática e no programa de Governo: a garantia será para os “jovens” mas o programa não especifica a idade (presume-se 35 anos porque esse é o limiar referido anteriormente e a fasquia usada em outras propostas) nem revela quaisquer outros limites, por exemplo, máximos do valor das casas a comprar. Como já se sabia, a garantia cobre apenas a entrada inicial (10% da avaliação, por regra).
Habitação. Governo só revela índice da estratégia (com 30 medidas), detalhes ficam para depois
A novidade que o Governo deu é que nos 15 dias seguintes iria propor esta medida – não só esta mas, também, a isenção de IMT e Imposto de Selo aos jovens até 35 anos, em casas até ao quarto escalão do IMT (valor de 316 mil euros). A aprovação da medida está iminente, mas Mário Centeno garantiu nesta quinta-feira, 16 de maio, que o Banco de Portugal “ainda” não foi envolvido neste processo.
O que Centeno até desvalorizou, recordando a sua experiência como ministro (das Finanças) para dizer que os processos legislativos são “complexos” e demorados, há muitas entidades a ouvir. Portanto, argumentou o governador do Banco de Portugal, não é de estranhar que o supervisor financeiro português ainda não tenha sido envolvido no processo, ainda que faltem menos de 10 dias para o anúncio oficial da medida, a julgar pelos prazos referidos por Miguel Pinto Luz.
Mesmo não tendo sido formalmente envolvido no processo, de acordo com Centeno, o Banco de Portugal quis passar uma mensagem pública de “cautela” em relação a esta intenção do Governo que, no fundo, irá ajudar as pessoas a contornar um obstáculo que é imposto pelo próprio Banco de Portugal. Esse obstáculo é a chamada “Medida Macroprudencial” que foi lançada em meados de 2018, ainda no tempo de Carlos Costa, para evitar um sobreaquecimento do mercado imobiliário e do endividamento bancário para a compra de casa, algo que poderia ocorrer no contexto de juros muito baixos (ou negativos) que durou vários anos.
“Juros baixos são maus para os jovens que não têm pais ricos”
Terão existido pessoas (e bancos) que contornaram a falta de capitais próprios com recurso a créditos pessoais (isto é, créditos ao consumo), porém, o Banco de Portugal diz que esses casos foram residuais. No geral, o supervisor tem repetido que a medida macroprudencial terá sido decisiva para que a rápida subida dos juros pelo BCE (a partir de julho de 2022) não tenha tido consequências mais gravosas para a estabilidade financeira do país. Porque se mais pessoas tivessem comprado casa, por não terem a limitação da entrada, teoricamente teriam sido mais os casos de famílias às quais teria sido impossível reagir à rápida subida dos juros nos créditos com taxa variável.
Bancos “entusiasmados” com medida contra o “estrangulamento” dos jovens
Para os bancos, porém, esta instrução do Banco de Portugal é um obstáculo à concessão de crédito que é sentido diariamente nos balcões quando as pessoas, interessadas em crédito à habitação, simulam não só a prestação mensal mas, também, o valor da entrada inicial. Esse valor tornou-se ainda mais pesado dada a subida dos preços das casas nos últimos anos. Por isso, perante a perspetiva de que este obstáculo seja teoricamente retirado (ou, pelo menos, menorizado), os banqueiros não escondem o seu “entusiasmo”.
Miguel Maya, presidente da comissão executiva do Millennium BCP, garantiu não conhecer como a medida será operacionalizada, mas reconheceu que vê “com entusiasmo” a intenção de o Estado garantir as entradas iniciais a jovens (até 35 anos) na compra de casa.
Na apresentação de resultados do primeiro trimestre, o gestor disse que “o tema da habitação é um problema sério, não é um tema inventado e, se calhar, veio para o debate público tarde demais”. As medidas em cima da mesa, acrescentou, parecem ser “desenhadas por quem teve a consciência e teve o cuidado de perceber a origem do problema e conceber soluções”.
Na opinião do banqueiro, as soluções passam por medidas “do lado da oferta” mas, também, o banco diz ver “com satisfação que, sabendo-se que a maioria dos jovens não têm os 10% dos fundos próprios para comprar a primeira casa”, se esteja a preparar uma política pública que se debruça sobre esse problema. Miguel Maya salienta que muitos jovens, “se não têm pais com capacidade de ajudar”, enfrentam frequentemente uma situação de “estrangulamento”.
Jovens portugueses deixam casa dos pais aos 29,7 anos, acima da média da UE
Portugal foi, em 2022, o oitavo país da União Europeia onde os jovens saíram da casa dos pais mais tarde – tinham 29,7 anos, em média. Pode haver mais do que uma explicação para este fenómeno mas a falta de acesso ao mercado imobiliário será uma. Por outro lado, no caso daqueles que saíram de casa dos pais mas não conseguem comprar casa, o “estrangulamento” referido por Miguel Maya passa, frequentemente, por tentar amealhar dinheiro suficiente para a tal “entrada inicial” ao mesmo tempo que se paga uma renda – renda essa que também tendeu, nos últimos anos, a subir.
Miguel Pinto Luz indicou que estava a falar com a Associação Portuguesa de Bancos (APB) sobre o desenho da medida. Miguel Maya garante que não sabe “o que é que vai ser feito”: falta conhecer os “detalhes” que, acrescentou, por vezes podem “transformar uma boa ideia numa péssima solução”.
Maiores bancos aumentaram lucros em um terço no primeiro trimestre
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A margem financeira – a diferença entre os juros que os bancos cobram nos empréstimos e os juros que pagam no seu financiamento (sobretudo depósitos) – continuou no primeiro trimestre a impulsionar os resultados dos maiores bancos portugueses. Os cálculos dos bancos, de um modo geral, apontam para que essa fonte de rentabilidade para os bancos terá atingido o seu pico no terceiro trimestre do ano passado, porém, os resultados deste primeiro trimestre ainda comparam favoravelmente com os lucros obtidos no mesmo primeiro trimestre de 2023.
Assim, a Caixa Geral de Depósitos, o Millennium BCP, o Santander Portugal, o Novo Banco e o BPI terminaram o primeiro trimestre com lucros de mais de 1,2 mil milhões de euros, na soma destes cinco maiores bancos a operar em Portugal. É uma subida de cerca de 33% em comparação com o período homólogo. A margem financeira subiu 20% para 2,4 mil milhões, numa altura em que os juros do BCE estão a cair ligeiramente e, por outro lado, os bancos começaram no verão passado a acelerar a subida da remuneração dos depósitos.
A rentabilidade dos capitais próprios (ROE), um indicador que ao longo de vários anos a banca frisava por ser de apenas um dígito, agora está em níveis muito mais favoráveis para os bancos. O Santander, por exemplo, atingiu um ROE superior a 27%, ao passo que no Millennium BCP, outro banco privado, o ROE (líquido) ficou perto dos 17% – mas é média nos últimos 10 anos, sublinhou Miguel Maya, é de 1,1%.
Já antes, também na apresentação dos respetivos resultados do primeiro trimestre, o presidente da comissão executiva do BPI resguardou uma reação até se verem “as propostas em concreto”. Ainda assim, João Pedro Oliveira e Costa considerou que, aos olhos dos banqueiros, esta parece ser “uma ideia positiva“.
“Todas as ideias que facilitem o acesso à habitação – e que o Estado de alguma maneira possa apoiar esse mesmo acesso – são ideias que nos parecem positivas”, afirmou João Pedro Oliveira e Costa, acrescentando que “o crédito à habitação, historicamente, tem apresentado sempre níveis de risco muitíssimo baixo, porque as pessoas pagam as suas casas“. A habitação de cada um, acrescentou, “é um bem vital” e “as decisões são sempre muito ponderadas, não são tomadas de ânimo leve porque são um compromisso de longo prazo”.
A avançar, a medida será uma oportunidade para a banca poder conceder mais crédito – que é, no fundo, o desejo de todos os bancos (desde que haja risco controlado)? “Para os bancos, por vezes medidas como estas não têm efeito algum ou até, às vezes, podem ter um efeito negativo“, advogou João Pedro Oliveira e Costa. E “negativo” porquê? “Porque às vezes temos de suportar um custo enorme de desenvolvimentos informáticos e de montar todo um setup para responder a dezenas de milhares de clientes e depois vêm só algumas centenas porque a medida não é assim tão proveitosa”.
Mesmo sem conhecer os detalhes exatos, que vão ajudar a perceber quantas pessoas a medida pode ajudar, o presidente do BPI recusou a ideia de que os bancos vão ter, aqui, uma oportunidade para ganhar negócio. “Parece-nos que será uma medida ajustada, mas não terá um impacto que se possa dizer que, por causa disso, o banco vai contratar mais crédito à habitação de forma significativa”, advogou João Pedro Oliveira e Costa.
“Haverá certamente um número de jovens que poderá beneficiar mas é preciso ver do que estamos a falar, com que condições, para que rendimentos, para que casas, porque normalmente nestas coisas o problema está nos detalhes e depois são os detalhes que podem fazer com que a medida tenha menos impacto do que poderíamos estimar à partida”, insistiu João Pedro Oliveira e Costa, ressalvando que “todos os apoios que pudermos dar para fixar os nossos jovens em Portugal são fatores importantes”.
Dois em cada três novos créditos em 2023 pediram menos de 80% do valor da casa
“Iniciativa louvável” e “não é dinheiro a fundo perdido”, diz Paulo Macedo
Além de garantir que o Banco de Portugal “ainda” não foi envolvido formalmente nesta negociação, Mário Centeno mostrou alguma preocupação com aquilo que poderá ser decidido e os impactos que pode ter. “Uma garantia pública é sempre uma questão complexa“, disse o governador, lembrando que essa complexidade “tem a ver com o funcionamento das medidas macroprudenciais e a necessidade de garantir que as condições em que o crédito é concedido são compatíveis com as condições que os mutuários devem ter asseguradas para satisfazer” o pagamento da dívida.
“Quando nós movemos o risco de um agente económico para outro agente económico, nomeadamente através de uma garantia, temos de ter consciência de que o agente que garante passa a assumir um risco que anteriormente estava no agente que se endividou”, explicou Centeno, acrescentando que “é por isso que as garantias públicas têm um processo muito complexo de atribuição na nossa lei e a assunção pelo Estado dessas responsabilidades deve ser sempre muito cautelosa“.
Mário Centeno usou, mesmo, a palavra “preocupação” para se referir à forma como o Banco de Portugal olha para o impacto sobre “as questões macroprudenciais e sobre a estabilidade que essas questões, desde 2018, têm vindo a permitir atingir junto dos mutuários na economia portuguesa e nós”, no Banco de Portugal, “consideramos que essas prerrogativas da política macroprudencial têm de ser atendidas”.
Paulo Macedo, presidente da Caixa Geral de Depósitos, garantiu que também acredita “profundamente” que tem de haver “cautelas” quando se trata de usar dinheiros públicos. “Quando se assume compromissos, os compromissos prolongam-se ao longo de muitos anos”, afirmou, acrescentando que “com garantias e compromissos que se mantêm no tempo eu acho que tem de haver cautela – agora, o que eu vejo é que é positivo haver um pacote para a habitação com medidas do lado da procura e do lado da oferta”.
Do lado da procura, além de se esperar uma “melhoria pelo facto de as taxas de juro irem baixar, tendo já baixado alguma coisa”, Paulo Macedo considerou os planos de haver uma garantia pública às entradas iniciais uma “iniciativa louvável“. Agora, “terá de se ver em que condições” é que será prestada, “os seus montantes” e os outros detalhes práticos do funcionamento.
Já antes, numa entrevista ao jornal Eco, Paulo Macedo dizia que a medida tinha de ser “muito bem explicada para não gerar expectativas” erradas. Ou seja, a garantia apenas deverá ser prestada às pessoas que “mostrem que têm capacidade” de honrar aquele compromisso – e os bancos estão disponíveis para fazer essa análise. “É uma garantia, não é dinheiro a fundo perdido. E não é garantir 100% da dívida. Isso seria dar casas às pessoas“, afirmou Paulo Macedo.