As temperaturas foram geladas, até para os padrões frios do estado do Iowa: -10ºC em alguns lugares, com sensação térmica ainda mais abaixo. Um pormenor usado apenas pelos jornalistas para colorir reportagens, dirão alguns. Mas não exatamente: o frio poderia levar alguns eleitores, que consideravam que o resultado já estava decidido, a ficar em casa. Donald Trump sabia-o bem, razão pela qual apelou até à última aos republicanos do Iowa para que não ficassem em casa e fossem votar, nem que estivessem “doentes que nem cães”. “Até se forem votar e morrerem, vale a pena”, declarou na manhã desta segunda-feira o antigo Presidente e repetente na corrida à Casa Branca.
Era um primeiro sinal de como Trump levou mais a sério esta corrida de 2024 face a 2016. Se na primeira vez que tentou a presidência se apresentou como um outsider que conquistou votos à custa do seu carisma, desta vez, depois de uma presidência cheia de sobressaltos e uma invasão ao Capitólio pela qual está a ser julgado por insurreição, a equipa do ex-Presidente sabia que agora não podia arriscar. E este sinal não foi o único: a sua campanha, por exemplo, apostou na formação de “capitães de caucus“, oferecendo chapéus e bilhetes para comícios aos que conseguissem recrutar 10 pessoas para discursar a favor do ex-Presidente nas assembleias de voto.
“Em 2016, não havia uma operação montada. Ele conseguiu o segundo lugar [no Iowa] apenas à custa da sua personalidade”, reconheceu um dos presidentes do Partido Republicano no Iowa, Jeff Kauffman, ao Politico. “Mas agora não é sequer o dia e a noite; são planetas diferentes quando comparado com 2016.”
Prova disso foi também o facto de Trump ter usado o discurso de vitória desta primeira noite de primárias para promover uma mensagem de união, pedindo concórdia entre “republicanos e democratas, conservadores e liberais”, em vez das atuais mensagens mais divisivas.
É claro que é mais fácil ser gracioso na vitória — e Donald Trump obteve uma vitória esmagadora no Iowa. O candidato teve 51% dos votos e mais de 30 pontos percentuais de vantagem face ao segundo classificado, a maior margem alguma vez registada nos caucus daquele estado em primárias republicanas, que lhe garante cerca de 40 delegados para a Convenção Republicana do verão. Ron DeSantis ficou em segundo lugar com 21,2% dos votos (e 8 delegados) e Nikki Haley ficou em terceiro com 19,1% (e 7 delegados).Em termos de comparação, basta pensar que Ted Cruz venceu em 2016 com uma margem de 3,3 pontos percentuais e Rick Santorum conquistou aquele estado em 2012 por apenas 0,03 pontos percentuais.
Como resumia um comentador da CNN quando a noite eleitoral ainda ia a meio (mas as sondagens à boca das urnas já lhe davam a vitória clara), esta não é sequer uma corrida pelo segundo lugar, com o primeiro já atribuído. “É uma corrida por relevância e toda a gente está a perder, com exceção de Donald Trump.”
O voto evangélico do Iowa, de Ted Cruz para Donald Trump
É, em parte, resultado desta “profissionalização” da campanha de Trump, que tem agora a bagagem de uma presidência e duas campanhas eleitorais e não quer deixar nada ao acaso. “Em 2016, tínhamos um apoio enorme, mas não tínhamos jogo no terreno, nunca tínhamos feito isto”, reconheceu o candidato no passado domingo. Agora, tudo mudou.
Se em 2016 o vencedor no Iowa foi Ted Cruz e não Trump, agora o candidato não só venceu, como arrasou. Parte disso explica-se pelo facto de o ex-Presidente ter conseguido absorver o voto religioso e mais conservador deste estado, onde os grupos evangélicos compõem grande parte do eleitorado
“Ao longo dos oito anos seguintes [desde 2016], esses grupos entraram praticamente todos na base de Trump”, resumia o Washington Post durante a noite eleitoral. “Portanto, faz sentido que os números de Trump em 2024 reflitam a combinação dos seus resultados e dos de Cruz em 2016.”
As sondagens à boca das urnas confirmam essa mesma tendência. Se há oito anos Trump obteve pouco mais de 20% dos votos do eleitorado evangélico, desta vez esse valor ficou acima dos 50% — e terá ajudado o candidato a conseguir a vitória esmagadora desta noite.
Ron DeSantis e Nikki Haley taco a taco
Menos clara ficou a situação relativamente ao resto da corrida, com um segundo lugar a ir para Ron DeSantis, governador da Florida, que ficou a apenas dois pontos percentuais de vantagem da antiga embaixadora dos EUA na ONU, Nikki Haley (com 21% e 19% dos votos, respetivamente).
DeSantis apostou todas as fichas no Iowa, tentando apresentar-se como o candidato que representa o voto evangélico e apostando nas táticas tradicionais das primárias do Iowa, fazendo o que se chama um “full Grassley”, que consiste em visitar os 99 condados do estado numa só campanha para as primárias.
A aposta, porém, não parece ter compensado, com DeSantis a não conseguir evitar que Trump obtivesse mais de 50% dos votos, nem a descolar-se da terceira candidata. Apesar disso, o governador da Florida não está disposto a desistir, tendo optado antes por uma retórica agressiva (logo ele que se tem apresentado como ‘um Trump mais eficaz’) a criticar os media por terem divulgado as sondagens à boca das urnas quando ainda havia caucus a decorrer. Na sua sede de campanha, porém, havia quem confessasse à CNN que “a situação não é boa”.
Do lado de Nikki Haley, a candidata não chegou a ultrapassar DeSantis, como previam algumas sondagens, mas ficou a morder-lhe os calcanhares e segue com fôlego para a próxima primária, no New Hampshire. Este estado pode ser-lhe mais favorável, já que é mais moderado, menos religioso e é composto por mais independentes — tudo demografias onde Haley está em vantagem.
Ouça aqui a análise de José Filipe Pinto.
A mudança de paradigma no Partido Republicano
Certo é que, apesar da aposta de Trump em tornar mais eficaz a sua campanha, ela continuou a estar longe do tradicional dentro do padrão da política norte-americana.
No estado do Iowa, por exemplo, é habitual fazer campanha porta a porta e visitar o maior número de locais possíveis. Trump limitou-se a organizar apenas 30 eventos naquele estado, a maioria grandes comícios em locais mais centrais, fazendo com que os eleitores se deslocassem para perto de si, em vez do contrário. Não contou sequer com apoios de peso locais como o da governadora do estado, Kim Reynolds, que apoiou DeSantis.
Nada que tenha prejudicado o seu resultado. Aquilo que parece evidente ao fim deste primeiro evento das primárias republicanas é que o paradigma da política no partido mudou definitivamente: “Esta é uma era em que os apoios de influencers online e podcasters têm tanto peso como os dos responsáveis locais”, resumia o site Slate ainda antes de serem conhecidos os resultados.
Na madrugada desta terça-feira, aquilo que se tornava óbvio é que Donald Trump já não é uma anomalia da paisagem política norte-americana e que, entre o eleitorado republicano, nem a invasão ao Capitólio é vista como incómodo. Como resumiu ao Politico Scott Jennings, do Partido Republicano, Trump está longe de ser agora visto como um alien: “Foi nomeado duas vezes [candidato presidencial] e está a caminho da terceira nomeação. A certa altura, deixa-se de se ser um outsider”.