Enfrentamos um território marcado pela turbulência, entre a loucura e a genialidade. Com o advento da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o chamado Projeto Manhattan reuniu em Los Alamos (nos Estados Unidos) alguns dos mais reputados cientistas, matemáticos e físicos com o propósito de desenvolver e produzir as primeiras bombas atómicas. E se a criação de uma arma de destruição desta magnitude emergiu como a invenção mais perigosa até então, o computador parece agora ocupar esse lugar, em virtude dos recentes desenvolvimentos relacionados com a inteligência artificial (IA). No cruzamento destas duas invenções, encontramos a figura de John von Neumann, o polímata nascido na Hungria, em 1903, por vezes descrito como o homem mais inteligente que alguma vez existiu.
É sobre a sua vida e os seus feitos que se debruça, maioritariamente, MANIAC, livro do escritor chileno Benjamín Labatut, que explora a vida deste matemático que não só participou ativamente no Projeto Manhattan, como é responsável pela conceção de um primeiro computador (de fins militares) a que chamou precisamente MANIAC (Mathematical Analyzer Numerical Integrator and Computer). E embora seja hoje menos famoso do que alguns dos seus contemporâneos – Albert Einstein, J. Robert Oppenheimer, Richard Feynman – muitos consideram-no como o mais impressionante deles todos. Inicialmente dedicado a encontrar uma base matemática definitiva para a realidade – projeto que abandona depois de um encontro com Kurt Gödel –, von Neumann emigra para os Estados Unidos, onde passa a trabalhar com questões afeitas à Física Nuclear, a desenvolver a teoria dos jogos e, por fim, a dedicar-se à consolidação da teoria cibernética.
Inspirado pela estranheza paradoxal da sua história, tantas vezes, remetida ao esquecimento, Labatut criou uma obra em tríptico, onde fala de tragédia, mas também da criação de novas formas de tecnologia. Em entrevista ao Observador, o autor chileno explica a sua sensação de espanto perante a vida de von Neumann, uma “espécie de milagre dos tempos modernos”. Um homem cujo percurso moldou decisivamente a experiência humana através da criação de um computador. “Trata-se de uma revolução profunda, provavelmente a maior na história da humanidade”, realça. Sob a forma de tríptico, MANIAC conta também a história trágica de Paul Ehrenfest e termina com um confronto histórico entre o jogador Lee Sedol e o computador AlphaZero numa partida de Go. Em todas estas histórias, explica, subsiste a ligação entre a ciência e a vida humana, que tem sido continuamente explorada. A humanidade, diz Labatut, dotou a ciência de uma liberdade “terrível, mas necessária”, de que precisamos para sobreviver. “O problema é que ela nos leva continuamente para a beira do abismo. E precisamos de ir para a beira do abismo, porque só quando olhamos para baixo, para estas grandes trevas, é que nos questionamos”, sustenta.
O livro, sublinha, pode ser lido como um diagnóstico ou um aviso sobre os avanços da IA, mas também como forma de recuperar a história de uma geração de pensadores que foram fundamentais para chegarmos ao ponto em que nos encontramos hoje, para o bem e para o mal. A literatura, por sua vez, prefere participar destes mistérios, olhando para o passado, antes de projetar o futuro. Ao ser humano cabe fazer escolhas com base na moralidade, mas o avanço científico é imparável. E chegados a 2024, a história de John von Neumann e do seu MANIAC é apenas um reflexo sintomático de que há forças maiores que moldam a forma como habitamos o nosso planeta.
Tal como na ciência, também os seus livros parecem motivados pela descoberta de mistérios. Esta ligação entre estes dois mundos cativa-o?
Acho que há uma diferença fundamental que se deve desde logo explicar. A literatura não está apenas interessada em descodificar ou em resolver mistérios. Tem outra atitude. Tem a ver com uma forma de conhecimento muito mais antiga, que é a participação. Com os livros, participamos nos mistérios. Não os desvendamos nem os resolvemos. A ciência, como forma de inteligência incisiva, quer resolver mistérios, ir até aos fundamentos para os desagregar e revelar o que ainda não se revelou. A literatura tem muito mais a ver com participar em algo que é misterioso com todo o nosso ser. É um tipo de jogo diferente, mas ambos me cativam. Ambos os universos podem estar apaixonados pelos mistérios, mas os mistérios da ciência dizem respeito às coisas que ainda não sabemos. A literatura está apaixonada por aquilo que não podemos conhecer, por aquilo que é verdadeiramente misterioso.
Na literatura, e pensando neste MANIAC, há essa dimensão de resgatar histórias através da memória.
O ingrediente com que o escritor trabalha é maioritariamente o passado. Mesmo quando estamos a fazer ficção especulativa, são os elementos do passado que informam a literatura. Por essa razão, a literatura está sempre a olhar para trás, mesmo quando olha para a frente. E há muito mais humanidade a descobrir quando se olha para trás do que quando se projeta o futuro. A literatura é qualquer coisa de mais ancestral… parece não ter poder real e está obcecada com histórias que por vezes parecem já não interessar às pessoas, mas consegue fascinar-nos e levar-nos a perceber aspetos da vida humana que desconhecemos ou menosprezamos.
Tem-se interessado pela história da ciência e por trabalhar sobre ela através da literatura. Porquê este interesse pela história do progresso científico?
Fascinam-me certas ideias que estão no apogeu da ciência e que apontam para os limites da mesma. Pessoalmente, quero compreender e, por outro, quero que as ideias científicas nos meus livros sejam tão claras quanto possível para quem lê. Ainda assim, quero que os leitores se sintam confusos ou perdidos e seduzidos por se abordar ideias que muitas vezes o ser humano comum não consegue compreender.
Há uma certa dose da abstração nessa abordagem.
Sim, mas porque me fascinam certas particularidades que também não consigo compreender na plenitude. Fascina-me a função de onda na física quântica ou a singularidade de um buraco negro, ou o teorema da incompletude de Gödel. São mistérios muito concretos. Considero-os milagres.
É assim que chega à figura de John von Neumann, um matemático notável do século XX, que é a personagem central do seu novo livro?
A figura de von Neumann, para mim, é uma espécie de milagre dos tempos modernos. Como um pequeno deus a entreter-se com o mundo.
Para contar a sua história mistura realidade e ficção. É uma forma de se aproximar da realidade ou na verdade de explorar a realidade através da ficção?
O mais próximo que se pode chegar da realidade é a ficção, porque é assim que o nosso cérebro funciona. Estamos a imaginar o mundo tal como o percecionamos. A maior parte da perceção é adivinhação ou delírio. Não estou a dizer que não existe uma verdade objetiva. Estou a dizer que o fenómeno humano é percebido de tal forma que a perceção e a imaginação estão interligadas. As histórias que contamos sobre nós próprios não se baseiam apenas em factos. São baseadas na emoção, na memória, no trauma, na dor. Todas estas coisas combinadas estão mais próximas do que é o fenómeno humano do que apenas factos puros. Em todas as nossas interações com o mundo, há camadas e camadas de ficção. Se traçarmos o território com que a literatura lida, entramos num lugar muito obscuro. Estamos interessados não apenas nas fronteiras nítidas das coisas, mas nas suas sombras e no que está por baixo. E, para isso, as ferramentas da ficção são absolutamente necessárias para lidar com o nosso subconsciente, para lidar com essa paisagem perturbada que todos temos dentro das nossas cabeças. Estou a usar os tópicos da ciência, a linguagem da ciência, as figuras da ciência para apontar para esse mundo assombrado, que é realmente aquele que habitamos enquanto seres humanos individuais.
John von Neumann participou no Projeto Manhattan, que desenvolveu a bomba atómica e criou um computador chamado MANIAC. Como é que o percurso desta figura se tornou matéria literária?
Andava fascinado com a ideia de perceção, de esclarecimento consciente, que é uma mudança fundamental de perspetiva na vivência humana. Tinha lido um livro que dizia que só ele [von Neumann] estava completamente desperto face ao momento em que viveu. Isso chamou-me imediatamente a atenção, porque é muito interessante pensar como se trata de um esclarecimento alcançada através da lógica pura. Este estado de consciência acontece noutros patamares, através da religião ou do sacrifício, mas neste caso falamos da razão. Neumann era o epítome disso. Não havia ninguém que pensasse de forma mais clara ou mais nítida. Não havia ninguém que tivesse uma luz mais cintilante na cabeça do que ele.
Neumann nasceu na Hungria, em 1903. Desde criança que foi considerado um prodígio. No seu livro chama-lhe “extraterrestre” ou “o ser humano mais inteligente do século XX”.
Penso que ele era, sem dúvida, todas essas coisas, e toda a gente pode descobrir por si própria, mesmo que dedique apenas cinco minutos a entrar na sua página da Wikipedia. Ele é como aquelas ocorrências em que a pessoa se sente como se fosse um composto, como se fosse feita de muitas pessoas. Poderia dar o exemplo de Shakespeare ou Bach.
Estamos a lidar com uma ideia de genialidade?
Como é que um homem pode fazer tantas coisas, compreender tantas coisas, ter um impacto tão forte e depois desvanecer? Utilizo metáforas religiosas para dar uma ideia do seu peso. Para mim, ele é como a terceira pessoa de Deus. É como um espírito que está em todo o lado e em lado nenhum, e com o qual as pessoas têm muita dificuldade em lidar. Ele é o espírito santo da ciência do século XX.
Por via da matemática.
A minha principal atração por ele advém a lógica. A lógica tem um lugar muito especial na ciência. Interessa-me ir o mais fundo possível em tudo, mas estou limitado pelas palavras porque não tenho o dom da matemática. No entanto, tenho um sentido para estas coisas e quando se estuda ciência, acaba-se por chegar à física. Quando se vai para a física, cai-se na matemática. Quando se entra na matemática…
Chegamos à lógica.
E a lógica, para mim, é uma coisa muito estranha. Uma coisa incrivelmente poderosa. Inicialmente, a lógica não estava ligada ao resto da matemática e limitava-se sobretudo a palavras. Temos de ir até George Boole, que inventou uma forma de ligar a lógica à matemática. Quando essa ligação foi feita, tudo mudou. A lógica torna-se imediatamente parte do fundamental, o substrato da matemática. E depois torna-se também o substrato da computação. Neumann era uma espécie de Deus da lógica, que transformou de facto a experiência humana. É quase como se fosse uma espécie de profeta de um novo Deus, porque esta coisa que criou, com a qual vivemos agora, o computador, é a coisa mais poderosa que temos. E está nos nossos bolsos. É um pouco como quando as pessoas usavam a cruz ao peito. Temos a tecnologia mais poderosa e ela está agarrada aos nossos corpos.
É a grande criação tecnológica?
Estou a tentar mostrar os produtos deste pensamento que ganham vida através tecnologia. No passado queríamos ter melhores videojogos. Mas isto vai muito para lá disso. Trata-se de uma revolução profunda, provavelmente a maior na história da humanidade.
Descreve von Neumann como uma mente genial, mas que também tem os seus limites. Refiro-me ao capítulo em que escreve sobre o encontro de Von Neumann com Kurt Gödel.
É o seu némesis. Todos os homens, mesmo todos os deuses, têm um némesis como forma de contrapeso. Por outro lado, a verdade é que ambos nos dão a sensação de que revelam mistérios profundos, mas que não foram imediatamente compreendidos. Sempre que damos um passo fundamental em qualquer direção, ele não vai ser compreendido. Quando aparece um grande poeta, a maior parte, se não todos os seus contemporâneos, vão simplesmente passar ao lado dele. Von Neumann viu isso em Gödel imediatamente, porque era muito rápido. Viu-o antes de qualquer outra pessoa e sentiu-se derrotado, o que de facto teve um efeito profundo nele, mas que não o impediu de continuar.
MANIAC não é uma biografia, mas antes um livro onde através de testemunhos, recupera a importância de von Neumann. Queria resgatá-lo como figura histórica?
Estou a dar testemunho de milagres. Encontramos o que é milagroso no mundo. Encontramos as coisas que desafiam a crença ou que inspiram admiração. Colocam-nos em contacto com o mistério que sempre animou o nosso espírito e nós, escritores, damos testemunho disso. Não me vejo a salvar a sua figura. Estou a apontar, em todas estas coisas, a chegada de uma racionalidade que vai dominar o mundo, para melhor e pior.
É um livro pessimista então.
Penso que a literatura é fundamentalmente pessimista porque a escrita é algo que vem da tristeza, da melancolia. Penso que há uma tristeza fundamental no próprio pensamento. O facto de haver um envolvimento profundo com o mundo através da razão é algo que convoca uma certa tristeza. É um pessimismo sombrio. Tem a ver com o reconhecimento da grandiosidade das coisas e também com a dor profunda por que toda a gente passa. Não se trata de ser pessimista ou otimista, mas com o facto de nos envolvermos profundamente com as coisas.
Não deixa de ser um diagnóstico sobre a forma como a ciência avançou numa direção que chega a colocar em causa a vida humana.
William Burroughs disse uma vez que todos os livros deviam ser lidos como um aviso. Mas nem todos os avisos são pessimistas na sua natureza. Acho que o sentimento principal destas coisas é o espanto. Quando sentimos espanto, há sempre uma sensação de medo, mas os livros devem, penso eu, inspirar esse espanto.
O nosso maior medo é o medo do desconhecido, parafraseando H.P. Lovecraft.
Sim, é verdade. Mas também é o que nos entusiasma. É o que nos mantém vivos.
Em particular, fala do Projeto Manhattan. Vemos as implicações desse projeto, de Los Alamos (onde funcionou) e olhamos para a criação de bombas atómicas. Há sempre esta dialética no progresso científico: o lado bom e o mau do que se cria. Estaríamos melhor sem a intervenção destas personalidades?
É uma pergunta difícil de responder. Do meu ponto de vista, a humanidade dotou a ciência de uma liberdade terrível. Uma liberdade necessária, mas terrível, que pode considerar, pensar e questionar tudo. Precisamos dessa terrível liberdade para sobreviver. O problema é que ela nos leva continuamente para a beira do abismo. E precisamos de ir para a beira do abismo, porque só quando olhamos para baixo, para estas grandes trevas, é que nos questionamos. Só à beira do abismo. Tal como acontece agora com a a Inteligência Artificial. O que significa ser humano? O que é a consciência? Todas estas questões que deixámos para a filosofia, estão a tornar-se uma preocupação fundamental para todos. São questões, que num sentido muito real podem ser completamente impossíveis de responder, mas que se tornaram contingentes. Esta tendência nunca vai parar. Precisamos de ser levados aos nossos limites para descobrirmos quem somos.
Não é, de alguma forma, uma perversidade da humanidade, uma vez que se trata de um projeto em que se constrói uma arma?
Temos tendência a pensar em nós próprios como algo que está para lá da natureza, mas não estamos. A natureza também é altamente perversa. Se os vulcões podem entrar em erupção durante milhões de anos e eliminar todos os organismos do planeta, então tudo isto se torna natural. Se estudarmos a longa vida do nosso planeta, vemos que há uma dança aterradora entre a criação e a destruição. Está sempre a acontecer. E o problema é que nós, porque temos consciência e porque podemos fazer escolhas, pensamos que estamos separados disso. Eu não vejo isso como algo separado. Somos tragicamente parte de algo muito maior do que nós. Estes ciclos de criação ou destruição, carregamo-los dentro de nós. Temo-los em cada uma das nossas células. As nossas células estão a viver, a morrer, a reproduzir-se. Por vezes, enlouquecem e matam-nos. Podemos ser tão críticos quanto quisermos, e temos de fazer continuamente escolhas morais e condenar o que acreditamos ser horrível e obscuro na natureza humana, mas nunca devemos esquecer que fazemos parte dela. A natureza humana é sombria e destrutiva.
Em algum momento se sentiu crítico em relação a John von Neumann?
De maneira nenhuma. A literatura é uma espécie de versão mais matizada das coisas, em que se mostra tudo o que é claro e escuro. Para se ter uma comunhão profunda com algo, não se pode ficar a julgar ou criticar. É muito raro encontrar figuras que se possam condenar pura e simplesmente. Na verdade, estou mais interessado numa certa racionalidade de que von Neumann é exemplo. Estou a tentar salientar que há algo de profundamente desumano na lógica, na razão, na matemática e na ciência. Não estou a dizer que é mau. Na verdade, acho que é necessário. Penso que temos de ser desumanos, em muitos aspetos. Como escritor, também temos de ser um pouco desumanos. Algumas das pessoas que mais admiro eram bastante monstruosas. Acho que precisamos tanto dos nossos monstros como dos nossos heróis. Uns não existem sem os outros. O meu livro tenta, tanto quanto possível, apontar esta dualidade e fazer-nos sentir as duas coisas. Tal como há paradoxos na matemática, há paradoxos na vida.
Conta também a história da trágica história de Paul Ehrenfest e termina com a história sobre um confronto entre o jogador Lee Sedol e o compuatdor AlphaZero numa partida de Go. Porque é que sentiu necessidade de ligar estas histórias à narrativa de von Neumann?
Roberto Bolaño dizia que o que importa nos livros é a estrutura, porque as grandes histórias não são assim tantas e já foram todas contadas, pelos menos tematicamente. A estrutura é o que envolve o subconsciente. Passei muito tempo a tentar perceber qual era o cerne de uma história, que na verdade é sobre os mistérios da ciência e os mistérios da condição humana. As pessoas ficam confusas com a forma como apresento o livro, porque é um puzzle e porque o construí com uma mentalidade antiga, que é a mentalidade do sacrifício. Tal como um ritual. Começa com a morte de um inocente e termina com uma palavra, AlphaZero. Os matemáticos e conhecedores sabem que, na hierarquia dos infinitos, Álefe-zero é o primeiro cardinal infinito. Trata-se do primeiro infinito que Georg Cantor encontrou. Por isso, estamos realmente a olhar para uma espécie jornada. Vamos da história de uma morte para uma ideia de infinito.
Do trágico ao belo?
Termina com o nascimento de algo novo, que é belo e terrível ao mesmo tempo. É um mistério para participar. Tal como disse, quando participamos num mistério, podemos não compreender necessariamente o que sucede, mas saímos da experiência tocados, ligeiramente mudados. É isso que ambiciono para quem ler este livro.
Este é o livro que mais o desafiou em termos de construção?
Diria que sim. Queria incluir tudo o que von Neumann fez, que é enorme e impossível de colocar totalmente nestas páginas. Tive de tomar opções. E apesar de ser romancista, não gosto de escrever ficção. Quero encontrar histórias que são misteriosas e profundas, mas que são reais e que aconteceram. Neste caso, optei por contar a sua história através de testemunhos baseados em factos reais.
Ferramentas mais próximas do trabalho de um historiador, por exemplo.
Não gosto das ferramentas comuns da literatura. Algumas pessoas perguntaram “porque é que não escreveu uma biografia?”. Escolhi um coro de vozes porque queria transmitir algo de realmente celestial. Estamos rodeados de vozes que reverberam em diferentes frequências e o leitor vai ter ler diferentes opiniões sobre esta figura. Algumas pessoas vão pensar que estou a exagerar, mas se o investigarmos mais a fundo percebemos que efeito que ele tinha nas pessoas era como ser atropelado por um carro. Ele estava realmente num nível diferente, mesmo entre os génios.
Temos colegas de trabalho, pessoas com quem von Neumann partilhou a sua vida privada, mas também pessoas que não gostavam dele, sendo que ele também não deixa de ser um personagem.
Sim, ele fala algumas vezes durante o livro. Mas em relação ao que diz, o importante é que não fiquemos apaixonado pelas personagens que criamos. Daí existir esse lado menos bonito e onde vemos que também há pessoas que não gostavam dele.
Descreve os últimos dias de vida, rodeado por guardas e vigiado, e tudo isto porque ele sabia demasiado.
E de facto isso é completamente verdade. Foi assim que ele morreu. Essa é também uma das coisas que me levou até ele. E também o Adam Curtis, um documentarista que adoro, que é fundamental para o meu trabalho. Von Neumann aparece em muitos dos seus documentários, mas nunca se desenvolvia a sua história. Um dia perguntei-lhe porque é que não fazia um documentário sobre o von Neumann e ele disse que era demasiado complexo para o compreender e retratar. Para mim, esse é o ponto fulcral e que me levou a esta incursão sobre a sua vida.
Podemos pensar noutras figuras, como Cluade Shannon ou Alan Turing, cujas vidas só agora parecem estar a ser descobertas verdadeiramente?
A Santíssima Trindade da computação: Shannon, von Neumann e Turing. Acho que o que estou a fazer é apenas salientar que demorou algum tempo entre a chegada de Cristo e as primeiras histórias que foram escritas sobre ele. Estamos agora nessa altura, em que descobrimos a relevância destas figuras. Não era um deus do deserto – como lhe chamam em Los Alamos –, mas veio até nós nessa altura e estava relacionado com a guerra, numa altura em que estávamos a atravessar o período mais destrutivo da história da humanidade. E a computação surge exatamente nesse momento. É uma mudança radical, porque perdemos o nosso sentido do invisível, que é aquilo com que a literatura lida. A literatura é uma forma de sentir o que é invisível e interagir com isso.
Há vozes que se têm insurgido contra o facto dele não ter sido incluído no filme Oppenheimer (2023).
Ele era demasiado grande. Ia ofuscar tudo. Não se pode ter dois grandes génios numa obra. E o filme não ia conseguir refletir a sua verdadeira importância.
Como é que foi o seu processo de pesquisa e depois de escrita?
O meu processo é estranho e bastante esotérico. Tenho de encontrar alguma coisa. Não consigo escrever sobre nada a não ser que acredite que há uma espécie de mistério fundamental, um fantasma ou um demónio escondido. Estou a tentar encontrar o nome secreto que as coisas têm. A investigação normal consiste em resolver um puzzle. A investigação literária é sobre como encontrar o nome secreto de algo para poder invocá-lo e trazê-lo de novo à existência. O Philip K Dick disse uma vez, e estou absolutamente convencido disso, que há uma certa frase que nos pode libertar e iluminar. E há um outro arranjo particular de palavras que pode condenar-nos totalmente e destruir-nos. E é disto que se trata. Escrever estas coisas é como quando os fotógrafos tiram uma fotografia de alguém e tentam realmente captar uma espécie de essência. Um momento em que o invisível se torna visível através do corpo.
Está próximo de escritores como Weinberger, Sebald ou Bolaño, que também pensaram na literatura de forma não-convencional.
A literatura é uma arte conservadora. Porque, mais uma vez, estamos a lidar com palavras. As palavras são muito difíceis de manipular. Não são materiais maleáveis. A literatura é conservadora pela sua própria essência. Ao mesmo tempo, os livros carregam em si um mistério. São o melhor veículo para lidar com a informação, o conhecimento, a complexidade. Para mim, é realmente o único objeto em que podemos capturamos o divino.
Não consigo, ao ler este livro, imaginar que uma máquina de IA conseguisse ter o mesmo resultado.
Não sabemos o que a IA pode ou vai fazer. Neste momento, é um enorme ponto cego. Kasparov salientou que, com a tecnologia, tanto os impactos positivos como os negativos da tecnologia surgem de um centauro, uma mistura de homem e máquina. O que está em causa não é o que essas máquinas farão sozinhas. Trata-se do que faremos com elas.
Noutras áreas da escrita, a discussão é tida sobre os termos mais práticos da sua utilidade.
Em todos os aspetos em que a palavra não é sagrada, e em todos os usos singulares da linguagem, estamos tramados. Está a chegar até nós. Trabalhei como jornalista durante 17 anos, e o ChatGPT ter-me-ia facilitado imenso a vida. Tê-lo-ia usado sem qualquer tipo de culpa.
Esta realidade preocupa-o?
Bem, é algo que me deixa obcecado. Os livros são ótimos no sentido em que… é como uma doença. E curamo-nos da doença ao escrever. De certa forma, arrancamos a doença de dentro de nós. Há muito tempo que penso nisto, e acho que a IA é algo que está a fazer com que toda a gente questione tudo sobre as suas vidas e sobre quem são e sobre o que vai acontecer com o mundo. Neste momento, estou um pouco mais descontraído, porque já disse o que tinha a dizer sobre o assunto. Precisamos de pensar muito profundamente sobre a inteligência artificial e precisamos de começar a pensar noutras coisas. Está a infetar todas as áreas da cultura. Por isso, nesse sentido, libertei-me dela e agora posso pensar noutras coisas.
O que é preciso para se interessar por outros temas?
Estou numa fase estranha, que acontece na vida de qualquer escritor, em que estou a tentar apaixonar-me de novo. E isso significa que temos de nos perder, exasperar as pessoas à nossa volta. É um momento muito juvenil, em que estamos a tentar voltar a envolver-nos profundamente com o mundo ou com algum aspeto dele.
A escrita é uma forma de resistência face à realidade atual?
Não, é uma forma de adoração. É isso que é. A literatura é uma das interações mais arrebatadoras que se pode ter com o mundo. Escrever exige que nos envolvamos com as coisas ao nível mais profundo e confuso possível. Não se trata apenas de pensar. Trata-se de posse. Trata-se de ser invadido por algo. Estamos a tentar chamar algo para dentro de nós. Estamos a tentar participar em algo muito maior do que aquilo que somos. Por isso, a única atitude possível é a de adoração. Escrevemos sentados, porque senão lixamos as costas, mas na verdade escrevemos de joelhos. Estamos sempre a escrever de joelhos.