Do escuro, fez-se luz.
Antes de começar o discurso de aceitação da nomeação do Partido Democrata para as eleições de 3 de novembro, Joe Biden estava a três passos do púlpito, às escuras, a aguardar a sua vez para falar. Ali, esperou quatro segundos de escuro. E depois avançou para um discurso onde tentou pôr um fim a outro tipo de escuridão — não a daqueles quatro segundos, mas a que Joe Biden e os democratas apontam aos quase quatro anos em que Donald Trump entrou de rompante na Casa Branca.
“Aqui e agora, têm a minha palavra: se me confiarem com a Presidência, vou puxar pelo melhor, e não pelo pior, de nós. Vou ser um aliado da luz e não da escuridão”, disse o ex-vice-Presidente.
Joe Biden chegou ao palco da Convenção do Partido Democrata com a cara coberta por uma máscara preta, em silêncio e sozinho, para fazer o discurso que o pode ajudar a tirar Donald Trump da Casa Branca. Não era nada disto que estava planeado — nem o silêncio de uma convenção que foi planeada para ser ruidosa como sempre, nem a pandemia que hoje assola os EUA em números ímpares no mundo. E, para muitos, quando em 2016 assistiram ao discurso de Hillary Clinton na Convenção do Partido Democrata, também não era esperado que quatro anos depois Joe Biden assumiria o mesmo púlpito para derrotar Donald Trump.
Nada disto estava planeado — e Joe Biden não tem como fingir o contrário, é verdade. Porém, no discurso de encerramento da Convenção do Partido Democrata, na madrugada desta quinta-feira, o ex-vice-Presidente dos EUA tentou convencer os norte-americanos de que ele é a pessoa mais bem preparada para tirar os EUA da atual crise pandémica, do precipício económico e financeiro que esta escavou e também para curar as feridas de um país dividido.
E, perante uma situação que não estava planeada, Joe Biden serviu-se de exemplos do passado para oferecer outro futuro. Ao longo do seu discurso, citou o exemplo de dois Presidentes.
O primeiro foi Franklin Delano Roosevelt, o democrata que resgatou os EUA da Grande Depressão como New Deal, depois de ter sido eleito em 1933: “Há quase um século, Franklin Roosevelt garantiu um New Deal numa altura de desemprego massivo, incerteza e medo. Atingido por um vírus [polio], FDR insistiu que iria recuperar e prevalecer e acredita que a América faria o mesmo. E assim foi. E assim seremos”.
O segundo exemplo foi o de Barack Obama, 44º Presidente dos EUA e o primeiro afro-americano no cargo, do qual Joe Biden foi vice-Presidente. Aqui, a mensagem foi dirigida ao próprio: “Obrigado, senhor Presidente. Foi um grande Presidente. Um Presidente que as crianças podiam admirar — e admiraram”.
Mas o Presidente em maior destaque foi o 45º, Donald Trump, a quem Joe Biden não poupou qualquer ataque.
“A resposta ao que este Presidente fará se tiver mais quatro anos de poder está naquilo que ele fez nos últimos quatro anos. É um Presidente que não assume responsabilidades, que se recusa a liderar, que culpa os outros, que se aconchega com ditadores e que agita as chamas do ódio e da visão”, disse Joe Biden numa avaliação do mandato de Donald Trump.
O democrata varreu no seu discurso de 25 minutos vários momentos da presidência de Donald Trump.
Alguns tiveram direito a menções diretas (como a vez em que o Presidente disse que na manifestação racista e neo-nazi de Charlottesville em 2017, que foi recebida por uma contra-manifestação, tinha “pessoas muito boas dos dois lados”) e outras mais amplas, que foram da política internacional à saúde, passando pelos cortes fiscais aprovados por esta Presidência e também pelas tensões raciais vividas nos EUA.
Num discurso contrastante com o da sua antecessora, Hillary Clinton, cujo discurso de há quatro anos teve várias alusões identitárias, Joe Biden fugiu a sete pés dessas referências — sem referir, por exemplo, a comunidade LGBT. Não deixou, porém, de referir diretamente o caso de George Floyd (afro-americano morto durante uma violenta detenção policial no final de maio em Minneapolis e cuja morte levou a manifestações e motins em várias partes do país) quando disse que a sua campanha não servia apenas para “ganhar votos” mas antes para “ganhar o coração e a alma da América”. E, aí, incluiu “ganhar as comunidades que têm conhecido a injustiça de um joelho no pescoço”.
O facto é que, se forem tidas em conta as sondagens, Donald Trump nunca teve a presidência em risco em todas as crises acima referidas. Sem eleições à vista e na ausência de um adversário óbvio, o atual inquilino da Casa Branca nunca teve uma sobrevivência fácil — mas também nunca esteve à beira da morte política. O mesmo, porém, já não pode ser dito com a atual crise pandémica — e, sabendo disso, foi nesse botão que Joe Biden carregou mais e com mais força.
“O Presidente insiste em dizer-nos que o vírus vai desaparecer. E continua à espera de um milagre. Bom, tenho uma notícia para ele: não há nenhum milagre a caminho”, atirou o democrata. “Somos líderes mundiais no número de casos confirmados. Somos líderes mundiais em mortes. A nossa economia está em cacos, com as comunidades negras, latinas, asiático-americanas e nativo-americanas a suportar o peso disto. E, mesmo depois deste tempo todo, o Presidente ainda não tem um plano.”
A esta ideia, Joe Biden foi rápido a contrapor: “Bom, eu tenho”.
Aqui, num discurso acima de tudo retórico e pouco focado em medidas, Joe Biden abriu uma exceção. Para fazer frente à pandemia, o democrata quer “desenvolver e distribuir testes rápidos que dão os resultados de forma imediata”; prometeu que os EUA vão fabricar os próprios equipamentos médicos e também de proteção individual, “para que nunca mais voltemos a estar à mercê da China e de outros países para protegermos o nosso povo”; garantiu que as escolas vão ter os recursos necessários para terem portas abertas e serem “seguras e eficazes”; assegurou que com ele próprio na presidência será tirada a “mordaça aos nossos especialistas, para que o público receba a informação de que precisa e que merece”.
Por fim, pegando numa questão que marca o debate em torno da gestão da pandemia nos EUA, e que também ela já levou à criação de barricadas entre os dois partidos. prometeu que decretará o uso obrigatório da máscara em público. “Não será por castigo, mas para nos protegermos uns aos outros”, disse. “É um dever patriótico.”
A ideia de uma luz ao fundo do túnel foi constante no discurso de Joe Biden, que ao longo dos quatro dias da Convenção do Partido Democrata foi retratado por ex-adversários, aliados políticos e familiares como um homem que à sua maneira foi mergulhado na escuridão e mais tarde saiu dela.
Foi assim quando a sua primeira mulher morreu juntamente com a filha que tinham num acidente de carro, deixando Joe Biden viúvo e com dois filhos para criar. E tornou a sê-lo quando um deles, Beau Biden, um veterano da guerra do Iraque que chegou a procurador-geral do Delaware, morreu com um tumor cerebral em 2015.
“Eu sei o que é perder alguém que se ama. Eu conheço o buraco negro que se abre no peito e que engole toda a nossa existência. Eu sei o quão dura e cruel e injusta a vida pode ser às vezes”, disse. “Mas aprendi duas coisas. Primeiro, aqueles que amamos e que saem desta Terra nunca saem do nosso coração, eles continuam connosco. Segundo, aprendi que a melhor maneira de ultrapassar a dor e a perda e a sofrimento é encontrar um propósito.”
Essa transição é a promessa de Joe Biden — o que, no seu discurso, é apontando não como uma novidade mas uma constante na vida dos EUA: “A História da América diz-nos que tem sido nos nossos momentos mais escrutos que fizemos os maiores progressos. Encontrámos a luz. Neste momento escuro, acredito que estamos no caminho para voltar a fazer grandes progressos. E que vamos conseguir encontrar a luz uma vez mais”. Uma espécie de Make America Great Again, mas de pernas para o ar.
Uma campanha difícil de um homem cujo trunfo é não ser Trump
Este é o culminar de um longo percurso de 47 anos em política. Joe Biden entrou para a grande política dos EUA em 1973, quando foi eleito senador pelo estado do Delaware. Foi nessas funções que iniciou duas campanhas para chegar a Presidente: em 1988 e em 2008. Falhou em ambas, mas à segunda tentativa foi convidado por Barack Obama para ser seu vice-Presidente — cargo que desempenhou por dois mandatos, até 2017.
Foi com toda esta bagagem que Joe Biden chegou a 2019 e, no mês de abril, anunciou que ia candidatar-se à Presidência dos EUA. Começou como favorito, mas rapidamente perdeu esse estatuto perante os solavancos, alguns deles por culpa própria, em que quase tropeçou — e que provavelmente levariam ao chão vários dos seus adversários nas primárias democráticas, que foram caindo por menos.
O processo de impeachment que não matou Donald Trump (e que não teve nenhuma menção durante esta Convenção) mas o que o moeu começou precisamente com um conjunto de sombras relacionadas com a passagem do filho de Joe Biden pela Ucrânia — um dossier que agora os republicanos ainda dão por fechado e que prometem recuperar durante a campanha, agora pela via da China. Joe Biden contou também com adversários que lhe colocaram vários entraves: Bernie Sanders foi o seu maior rival, mas Mike Bloomberg chegou a fazer-lhe sombra e a mulher que ele agora escolheu para sua candidata à vice-presidência acusou-o de acompanhar e negociar senadores segregacionistas na década de 1970. A outro nível, Joe Biden teve ainda as acusações de oito mulheres que o acusaram de lhes tocar de forma indevida e indesejada. “Ouvi o que elas disseram. Compreendo. E vou ter mais cuidado”, prometeu no pico dessa polémica. E as gaffes, que são uma constante no discurso de Joe Biden e que leva a campanha republicana a questionar frequentemente da frescura mental do candidato de 77 anos.
Como é que chegou aqui, então, um candidato com tantos problemas? Muito graças à ideia de que Joe Biden era, entre os mais de 20 candidatos que se chegaram a apresentar à corrida do Partido Democrata, o mais elegível num confronto perante uma recandidatura de Donald Trump.
Bem cotado entre as minorias étnicas e em particular junto do eleitorado afro-americano (que o associará sempre a Barack Obama), Joe Biden é também um político com raízes nos proletariado branco da Rust Belt — que, desiludido com os efeitos diretos e indiretos da globalização nas suas vidas, entregou o seu voto tradicionalmente democrata a Donald Trump em 2016. Joe Biden foi visto como, entre todas as opções disponíveis nas primárias do Partido Democrata, como o candidato mais capaz de fazer este difícil pleno. O seu discurso, que falou tanto da “injustiça de um joelho no pescoço” como contou com a promessa de nunca mais os EUA estarem “à mercê da China” tentou ir tanto a uns como a outros.
Isto chegará? As sondagens, que ainda não refletem os efeitos diretos que a Convenção do Partido Democrata poderá ter na opinião pública, dizem que sim. Por agora, Joe Biden permanece destacado à frente de Donald Trump tanto nas sondagens nacionais como em estados-chave que podem decidir a eleição — como a Pensilvânia, Flórida, Michigan e Wisconsin, todos conquistados por Donald Trump há quatro anos.
Outra sondagem, porém, demonstra que aos olhos do eleitorado norte-americano a maior força de Joe Biden não reside no que ele é, mas antes naquilo que ele não é. De acordo com dados publicados Pew Research Center a 12 de agosto, entre as pessoas que disseram estar decididas a votar em Joe Biden uma maioria de 56% apontou como principal razão dessa escolha uma verdade de La Palice: “Ele não é Trump”.
Joe Biden não é, pois, Donald Trump. Mas o que é que ele é? Essa resposta pode muito bem ter sido preparada desde o dia em que o democrata entrou no Senado há 47 anos. Mas será nos próximos 74 dias que restam até às eleições que ela se tornará definitiva.