“Muito boa colaboração”. “Uma convergência que é para continuar”. “Orgulho”. Por um lado, isto é o que o Bloco de Esquerda pensa sobre o acordo que assinou com o PS há quatro anos, e que lhe permitiu dividir a governação da principal câmara da cidade. “O PS falhou”. “A teimosia do PS foi terrível”. Por outro lado, também é isto que o Bloco de Esquerda pensa sobre o acordo que assinou com o PS há quatro anos, e que continua por cumprir em várias áreas essenciais.
A dificuldade espelhada pelas citações — as primeiras foram ditas pela candidata a Lisboa, Beatriz Gomes Dias, enquanto andava no terreno; as segundas pela líder, Catarina Martins, enquanto a acompanhava — é evidente. Pela primeira vez desde que assinou o acordo com que se colocou ao lado de Fernando Medina, e pela primeira vez desde que atravessou o furacão Robles, o Bloco está na rua para prestar contas e defender o legado destes quatro anos em Lisboa.
O equilíbrio não é fácil: por um lado, é preciso reconhecer que houve aspetos que falharam e assumir a responsabilidade por eles — idealmente, colocando a maior parte da culpa no PS, que é, afinal, quem tem a responsabilidade máxima pela governação da câmara.
Por outro, é necessário puxar pelo que essa governação teve de bom, já que o Bloco gostou da experiência governativa e não a quer deixar escapar. O que coloca ao partido, na verdade, um terceiro desafio: tornar claro que está disponível para renovar os votos com Medina… sem parecer que está nas mãos — ou, como diria o PCP, a fazer de “bengala” — do PS.
Polícia boa, polícia má
Terça-feira, 16h. O sol bate no terraço da Avenida da República que a comitiva bloquista se prepara para visitar. Compasso de espera: hoje é dia de visita da líder nacional, Catarina Martins, que passa por Lisboa para acompanhar Beatriz Gomes Dias numa ação centrada no foco principal do Bloco, a Habitação.
Quando Catarina Martins chega, já o arquiteto Manuel Abílio, diretor do departamento de Habitação Municipal da câmara, se desdobra em explicações sobre o trabalho municipal nos programas de renda acessível, assegurando que a sua defesa deste modelo não se resume a “um discurso ideológico”. “Diga isso ao presidente da câmara!”, ri-se Beatriz Gomes Dias. O recado para o parceiro Medina fica no ar. Quando é confrontada pelos jornalistas com o falhanço das promessas de habitação acessível para o mandato — o Executivo tinha prometido seis mil, embora o Bloco nunca tenha estado de acordo com o pilar do programa que é assegurado por privados — as críticas são suaves: o Bloco reconhece que ainda há muito para fazer, sim, e que é preciso acelerar, também.
Logo a seguir, Catarina Martins posiciona-se diante do microfone. E não tem pudores em começar a disparar. O que é que falhou, afinal, nos objetivos de habitação acessível prometidos por uma maioria de esquerda? “Falhou o PS”. Mas o BE também? “O programa do PS [que concessiona casas a privados] garantiu zero casas”. O BE não conseguiu condicionar os socialistas? “A teimosia do PS foi terrível”. A conclusão é só uma: “A decisão será se querem maioria absoluta do PS ou esta força à esquerda”, para impor “soluções diferentes”.
Nessa tarde, Catarina Martins, no papel de polícia má, despede-se. No dia seguinte, quarta-feira, pelas 10h30, Beatriz Gomes Dias já está — desta vez sozinha — diante das instalações da Academia Militar, em Arroios, para apresentar uma proposta de reconversão dos edifícios. Foco, de novo: habitação acessível. Tom, de novo, bem diferente do de Catarina: houve “diálogo” ao longo dos quatro anos, muitas medidas do BE foram “executadas em muito boa colaboração com o PS”, numa “convergência” que na opinião da candidata é para “continuar”.
Mesmo que Medina acuse o Bloco de se “apropriar excessivamente” das medidas mais positivas? “Medina reconhece, ao dizer isso, que o acordo conseguiu impor um conjunto de medidas fundamentais. Muitas das nossas propostas que pareciam impossíveis passaram a ser possíveis e também apropriadas”, responde Beatriz, no papel de polícia boa.
A vida d.R.: depois de Robles
Em campanha, a duplicidade em torno destes quatro anos torna-se mais difícil de gerir e o Bloco sabe-o — insistindo, também, que quem tem a principal responsabilidade de executar as medidas é o PS. Mesmo que estejam previstas num acordo a dois, de que Medina precisou para governar sem maioria absoluta, o poder de ação dos bloquistas, com apenas um vereador, é limitado.
Esse vereador é agora Manuel Grilo, que veio substituir Ricardo Robles, depois do escândalo de especulação imobiliária em que o eleito do Bloco se envolveu. A matemática era simples: a grande experiência de governação local do Bloco, manchada numa das suas grandes bandeiras num negócio do seu próprio vereador. Robles não podia ficar — e seria preciso calcular e tentar sarar as feridas que a polémica causaria ao BE, acusado por todos os lados de “hipocrisia” ou de estar a sofrer “dores de crescimento”.
Após alguma hesitação inicial, o partido acabaria por deixar cair Robles e por começar a tratar o antigo vereador como uma espécie de ativo tóxico. Ultrapassada a grande crise, o BE escolheria Gomes Dias, uma candidata que não tinha ligação à equipa anterior. Os laços com Robles estavam cortados e era preciso que os eleitores esquecessem o caso para poderem seguir para o próximo grande desafio: consolidar a influência na CML, sem deixar que a polémica fizesse o BE, partido que lidera zero autarquias no país, perder terreno.
Um acordo escrito — e o tiro ao PCP
É isso que Gomes Dias tenta fazer agora, em campanha, mesmo que caminhe em cima deste muro, num equilíbrio precário. Na quinta-feira, pelas 14h, está à porta da cantina da Universidade Nova de Lisboa para falar das condições para estudantes — mais uma vez, a Habitação — e lembrar as propostas do BE nesse sentido (quer cinco mil vagas em residências até 2025). E, para isso, quer um acordo com o PS — é “fundamental” que seja “escrito”, com “prazos e objetivos”, e que envolva toda a governação, não apenas a entrega de pelouros específicos.
O detalhe da resposta destapa um novo eixo de conflito em Lisboa, a que Beatriz começa, na segunda metade da semana, a dar gás: se o PCP de João Ferreira se tem esforçado por desvalorizar os resultados do acordo BE/PS e colar ao Bloco a imagem de “bengala” dos socialistas, a candidata bloquista decide começar a contra-atacar. Puxando um pouco o filme atrás — até ao debate que, na quarta-feira à noite, opôs os doze candidatos a Lisboa –, encontra-se uma primeira referência: dizer que o BE passou um cheque em branco ao PS é “ficção”, ataca Beatriz.
Depois, em frente à cantina da Nova, é mais clara. “Não fazemos a discussão assim: ‘queremos responsabilidades mas não queremos um acordo’”. É uma referência ao discurso que o PCP tem feito, e que tem gerado dificuldades de interpretação: João Ferreira tem garantido querer assumir “responsabilidades mais diretas” na governação da cidade, mas Jerónimo de Sousa lançou a campanha a rejeitar acordos formais com o PS, deixando no ar a dúvida sobre quais os moldes que os comunistas aceitarão para chegar a acordo.
“É fundamental que haja acordo escrito, não exclusivamente um acordo verbal, em que se aceita um pelouro e se exigem condições e orçamento para esse pelouro. Queremos influenciar a governação”, sublinha Beatriz. Se esta semana já se referiu ao acordo com o PS como “transformador” e garantiu não sentir qualquer “arrependimento” sobre ele, a próxima etapa da estratégia parece passar por frisar que o outro potencial parceiro do PS está indeciso e não explica o que vai fazer em relação a um eventual executivo socialista.
Como sugeria Catarina Martins, de volta ao terraço da Avenida da República: o PCP “hesita”. Nesta fase, o objetivo passa por apresentar o BE como o partido de esquerda mais decidido a usar os seus votos para participar na governação da cidade. E tanto a líder como a candidata poderão fazer de “polícia má” para tentar anular o adversário.