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HEULER ANDREY/AFP/Getty Images

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Bolsonaro, o militar que começou como piada e acabou como Presidente

Foi de militar a político depois de ter sido preso. Habituou o Brasil ao seu estilo polémico e agora venceu as eleições presidenciais. O atentado não só não o matou como pode fazê-lo mais forte.

Este artigo foi originalmente publicado a 24 de setembro de 2018 e atualizado a 28 de outubro de 2018, após serem conhecidos os resultados finais da segunda volta das eleições presidenciais brasileiras

Uma coisa é uma multidão aglomerada em que cada um segue para seu lado. Outra é uma multidão em que cada um dos elementos que a compõem procura exatamente o mesmo. Foi neste último tipo de multidão que Jair Bolsonaro, o homem da extrema-direita que vai ser o próximo Presidente do Brasil, foi recebido em Juiz de Fora, no estado de Minas Gerais. Todas as caras se viravam para ele, todos os braços estavam estendidos na sua direção. Todos o queriam.

https://www.youtube.com/watch?v=aRKDWePFgFQ

Bolsonaro, vestindo uma t-shirt amarela com o slogan “O Meu Partido É O Brasil” e levado em ombros, limitava-se a acenar os braços perante tanta adulação. “Mito, mito, mito!”, gritava a multidão, com muitos mais homens do que mulheres. “Um, dois, três, quatro, cinco, mil! Queremos Bolsonaro Presidente do Brasil!”, continuaram. À medida que passava entre a multidão, uns pediam-lhe para usar uma boina militar, outros que pusesse uns óculos escuros. Sempre que acedia aos pedidos dos seus fiéis, estes irrompiam em aplausos e urras, como no final do hino nacional mesmo antes da final do Campeonato do Mundo de futebol. Bolsonaro era, ali, um símbolo partilhado.

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O cenário já não era novo para ninguém no Brasil, mas o que veio a seguir abriu um novo capítulo na tortuosa e peculiar política brasileira. Entre os vários braços que se estendiam em direção a Bolsonaro, um deles, à sua direita, empunhava uma faca. Era o de Adélio Bispo de Oliveira. Segurando no cabo daquela arma com uma toalha, à frente de todos, perfurou o pulmão, o intestino e o fígado de Bolsonaro.

Bolsonaro foi atingido no pulmão, intestino e no fígado. O atacante, que pode ter problemas mentais, disse ter agido por "ordem de Deus" (RAYSA LEITE/AFP/Getty Images)

RAYSA LEITE/AFP/Getty Images

Dificilmente outro momento desta campanha eleitoral perdurará tanto na memória coletiva do Brasil e do mundo como o do atentado contra Bolsonaro. Nos livros de História, será impossível contar a história da eleição do candidato do Partido Social Liberal sem falar do dia em que quase morreu — e como esse dia mudou o resto da sua vida. Mas, mais do que isso, visto de uma perspetiva mais ampla, será ainda mais impossível falar deste período da política brasileira sem perceber, afinal, quem é Bolsonaro.

Da caserna ao Congresso, com uma passagem pela prisão

Jair Messias Bolsonaro, militar na reserva nascido em 1955 no estado de São Paulo, entrou para a política há três décadas para nunca mais sair dela. Depois de dois anos como vereador no Rio de Janeiro, foi eleito para a Câmara dos Deputados em 1991. Para ali chegar, bastou-lhe fazer campanha apenas em localidades ligadas aos militares. Porquê? Simples. Porque não só falava a mesma “língua”, como também já tinha caído nas boas graças deles poucos anos antes.

Em 1986, um ano depois do fim da ditadura militar brasileira, Bolsonaro, então capitão do exército, escreveu um artigo de opinião na revista Veja. O título era direto (“O salário está baixo”), mas, por trás, havia história. Tudo começou na fuga de mais de oitenta cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras. De acordo com o que, então, escrevia Bolsonaro, as notícias que saíram na altura justificavam aquele fenómeno com a ocorrência de casos de “homossexualidade, consumo de drogas e uma suposta falta de vocação para a carreira”. No entanto, contrapunha Bolsonaro, a verdadeira razão por detrás dessas fugas estava no título da crónica: “O salário está baixo”.

O capitão Jair Bolsonaro saiu do anonimato quando foi preso por ter escrito um artigo na Veja a reclamar contra os salários baixos dos militares. Esteve 15 dias atrás das grades. Quando saiu da prisão, rapidamente despiu a farda de militar e vestiu o fato e gravata de deputado.

Pelo crime de insubordinação, Bolsonaro foi condenado a 15 dias de prisão. O caso teve repercussão nacional, sobretudo entre militares. As mulheres destes saíram às ruas em protesto contra a condenação — já que os próprios não podiam fazê-lo, por questões legais — e o jovem capitão recebeu centenas de telegramas de apoio dos seus camaradas.

A saída da cadeia não representou o fim dos seus problemas. Em 1987, a revista Veja entrevistou-o e publicou um artigo onde dizia que o capitão se preparava para fazer explodir bombas em unidades militares do Rio de Janeiro como forma de pressão para o aumento dos salários dos militares. “Só a explosão de algumas espoletas”, disse nessas declarações à Veja. O tom pode até ter sido de brincadeira e Bolsonaro tratou de dizer que a reportagem era fraudulenta, mas houve quem levasse aquilo a sério. A Polícia Federal apurou que era a caligrafia de Bolsonaro encontrada em croquis que planeavam as explosões das bombas e o Conselho de Justificação Militar ditou unanimemente que ele era culpado. Mais tarde, Bolsonaro recorreu ao Superior Tribunal Militar, que o absolveu de qualquer crime.

Assim, acabou por ser autorizado a voltar à vida militar no ativo, mas isso já não lhe interessava. Pouco depois, foi para a reserva e entrou para a política. Dois anos após ter sido eleito, em 1993, já chamava atenção fora de fronteiras. Em entrevista ao The New York Times, admitiu a sua simpatia pelo regime militar e pela possibilidade de haver um golpe vindo das casernas. “Estou a arar os campos”, disse.

Em 1993, quando só era deputado há dois anos, Bolsonaro chamou a atenção do The New York Times

A maneira que Bolsonaro arranjou para “arar os campos” foi a de colecionar declarações polémicas, umas atrás das outras. Em 1999, era então Fernando Henrique Cardoso o Presidente do Brasil, o antigo militar disse que “através do voto, você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada!”. A solução veio logo a seguir: “Só vai mudar, infelizmente, no dia em que partir para uma guerra civil e fazendo o trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil, começando pelo FHC [sigla pela qual Fernando Henrique Cardoso é conhecido], não deixar ele p’ra fora, não. Matando! Se vão morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente”.

Em 2011, disse à revista Época que era “preconceituoso” e sublinhou que o era “com muito orgulho”. E as declarações que vem fazendo demonstram-no bem — e em várias frentes. Seja no tema da etnia, da orientação sexual ou do género, Bolsonaro está habituado a ser polémico.

“Só vai mudar, infelizmente, no dia em que partir para uma guerra civil e fazendo o trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil, começando pelo FHC [sigla pela qual Fernando Henrique Cardoso é conhecido], não deixar ele p’ra fora, não. Matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente.”
Jair Bolsonaro, numa entrevista em 1999

“Se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater”, disse em 2002. “Seria incapaz de amar um filho homossexual, prefiro que um filho meu morra num acidente do que aparecer com um bigodudo por aí”, acrescentou, já em 2011. “Fui num quilombo [comunidade originalmente criada por escravos fugidos e onde atualmente vivem descendentes de escravos]. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Nem p’ra procriador ele serve mais”, disse em 2017, numa tirada que lhe mereceu uma queixa por racismo que o Supremo Tribunal viria a rejeitar. “Mulher deve ganhar salário menor porque engravida”, opinou em 2015. “Não te estupro porque você não merece”, disse a uma deputada do PT em 2014, depois de um debate sobre a prisão de um jovem acusado de violar e matar uma menor.

Ao longo dos anos, Bolsonaro arou os campos, espalhou sementes e esperou que a colheita fosse a seu favor. Nesse processo de espera, a política passou a ser um negócio de família. Além do pai Jair, também três dos seus cinco filhos seguiram o mesmo caminho: Flávio foi deputado estadual pelo Rio de Janeiro e nestas eleições conseguiu passar para o Senado; Carlos é vereador na Câmara do Rio de Janeiro desde os 17 anos; Eduardo é deputado no Congresso por São Paulo desde 2015 e este ano tornou-se no parlamentar mais votado de sempre na História do Brasil, com 1,81 milhões de votos.

Entre os cinco filhos de Jair Bolsonaro, três também estão na política. Flávio Bolsonaro (na fotografia) é deputado na Congresso, ao lado do pai (NELSON ALMEIDA/AFP/Getty Images)

NELSON ALMEIDA/AFP/Getty Images

A riqueza do clã Bolsonaro tem crescido exponencialmente com a política. Em janeiro deste ano, quando os quatro contavam entre si um total de 19 eleições disputadas, a Folha de S. Paulo deu conta disso mesmo. Em 1988, quando entrou para a política, Bolsonaro declarou ter um Fiat Panorama, uma mota e dois lotes de terreno no interior do Rio de Janeiro. Em 2008, 20 anos depois, o valor declarado à Justiça Eleitoral já era de 1 milhão de reais [cerca de 310 mil euros, à data] e três imóveis. E em 2018, o património ascendia já aos 15 milhões de reais [cerca de 3,1 milhões de euros] e a 13 imóveis.

Apesar do enriquecimento súbito, não são conhecidas suspeitas de corrupção ou crimes financeiros contra Bolsonaro e os seus filhos. E, no Brasil que se criou a seguir a 2014, essa é uma das grandes chaves de sucesso de Bolsonaro, que em poucos anos passou de piada a presidenciável.

A bolsonarização da política brasileira do pós-Lava Jato

Depois da Operação Lava Jato, tudo mudou. Em 2014, a Polícia Federal anunciou a abertura de uma investigação em torno daquilo que veio a provar-se ser o maior escândalo de corrupção da História do Brasil independente. Com mais de 30 mil milhões de reais [cerca de 6 mil milhões de euros] em jogo, a irem das mãos de empresas públicas (como a Petrobras) ou de privadas (como a Odebrecht) para o colo de políticos de vários partidos (com o PSDB, PT e PMDB, os três que até hoje governaram o Brasil pós-1985, à cabeça) e alguns dos seus políticos de topo.

As condenações foram para lá de 160, entre empresários e políticos de 14 partidos — inclusive o Partido Progressista, o partido onde Bolsonaro passou a maior parte da sua carreira política, entre 2005 e 2016. Lateralmente, mas sem que isso fosse um detalhe, Dilma Rousseff foi deposta da presidência após um processo de impeachment, já em 2016. No voto em que aprovou a abertura daquele processo, Bolsonaro homenageou o coronel Brilhante Ustra, que, no tempo da ditadura, torturou Dilma Rousseff, descrevendo-o como o “pavor” da então Presidente. Já em 2018, Lula da Silva foi condenado a 12 anos e 1 mês de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro.

Bolsonaro foi um dos políticos mais efusivos na defesa da prisão de Lula (EVARISTO SA/AFP/Getty Images)

EVARISTO SA/AFP/Getty Images

Estes anos foram, explica Esther Solano, investigadora da Universidade Federal de São Paulo, especialista no estudo da extrema-direita brasileira, essenciais para o crescimento de Jair Bolsonaro. “O Bolsonaro soube, fundamentalmente, capitalizar o espírito do Brasil pós-Lava Jato e pós-impeachment. Ele representa a negação da política. É contra a elite tradicional, é pela negação da política. É a politização da anti-política”, diz numa entrevista ao Observador em setembro.

Mesmo que Bolsonaro seja um dos deputados que há mais tempo está no Congresso — tendo entrado em 1991, já conta com 27 anos de casa —, o seu discurso tem-lhe permitido afirmar-se com um outsider dentro de um sistema que, nas últimas décadas, esteve sempre dividido entre os mesmos partidos.

“Estes últimos quatro ou cinco anos queimaram partidos como o PT, o PSDB e o PMDB”, sublinha ao Observador Luciana Veiga, professora de ciência política na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, numa entrevista de setembro. “Nestas condições, há uma grande pré-disposição para não votar nesses partidos e, quando isso existe, o ambiente propicia o surgimento de um outsider.”

“O Bolsonaro soube fundamentalmente capitalizar o espírito do Brasil pós-Lava Jato e pós-impeachment. Ele representa a negação da política. É contra a elite tradicional, é pela negação da política. É a politização da anti-política”
Esther Solano, investigadora da Universidade Federal de São Paulo

À medida que as eleições se foram aproximando, as sondagens deram razão à afirmação de Luciana Veiga — e demonstraram que Bolsonaro tinha o apoio de diferentes grupos demográficos.

De acordo com a sondagem da Datafolha divulgada a 25 de outubro, a última a distinguir entre os vários grupos demográficos, Bolsonaro era o preferido dos homens (55%), das mulheres (42%); dos eleitores entre os 25 e 34 anos (49%), entre os 35 e 44 anos (50%), dos 45 aos 59 anos (47%) e dos que têm mais de 60 anos (50%); também é a escolha dos que têm escolaridade média (51%) e superior (54%); dos que ganham entre 2 a 5 salários mínimos (55%) e dos que ganham 5 salários mínimos ou mais (61%). No capítulo religioso, vence entre católicos (44%), evangélicos (59%), espiritualistas (48%). Na orientação sexual, é o preferido de 50% de heterossexuais.

Os números só não lhe sorriem entre os mais jovens (16 a 24 anos), com os mais pobres (até dois salários mínimos, naqueles que só têm o ensino básico e cujas confissões religiosas são minoritárias, como as religiões afro-brasileiras, os agnósticos e os ateus. Também os homossexuais terão votado contra Bolsonaro e a favor de Haddad.

Segundo Luciana Veiga, Bolsonaro conseguiu agarrar distintos eleitorados com um discurso alicerçado em três pilares fundamentais: a família, a segurança e o combate à corrupção.

“Ele diz que vai contra o bandido, fala alto para aquelas pessoas que estão cansadas da violência urbana. E quando diz que é preciso chegar a uma comunidade, separar trabalhadores de traficantes e matar os traficantes, isso é música para os ouvidos dessa gente.”
Luciana Veiga, professora de ciência política na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

No caso da família, consegue fazer duas coisas: apelar aos valores mais conservadores e puxar a Igreja para o seu lado. “Ele deixa entender que a família é pai, mãe e filhos. Homem e mulher. É nesse argumento que ele dá uma ideia de combate à homossexualidade. O eleitorado que ele pega com isso é o da Igreja, que tem crescido muito como projeto de poder”, diz a politóloga carioca.

No que toca à segurança pública, Bolsonaro consegue os votos dos vários setores que se preocupam com a violência no Brasil, que, em 2017, matou quase 63 mil pessoas. “Ele diz que vai contra o bandido, fala alto para aquelas pessoas que estão cansadas da violência urbana. E quando diz que é preciso chegar a uma comunidade, separar trabalhadores de traficantes e matar os traficantes, isso é música para os ouvidos dessa gente”, diz Luciana Veiga. “Aqui, mesmo que ele perca alguns votos entre as mulheres, ganha muitos com os homens.”

E, por fim, o combate à corrupção. “É o discurso da política limpa”, diz a investigadora. “Há um segmento que está votando nele e que quase pede desculpa por isso. Mas vão votar, dizendo que não querem mais política velha.”

A isto, Esther Solano chama de “bolsonarização da esfera pública”. “Depois de Bolsonaro, já se pode falar qualquer coisa, já passa tudo. É uma saída do armário”, apontou a académica em setembro. Prova disso é o facto de que, nestas eleições ter havido 990 militares a concorrer — o que representa um aumento de 11% em relação às eleições passadas, em 2014.

(NELSON ALMEIDA/AFP/Getty Images)

NELSON ALMEIDA/AFP/Getty Images

Ainda assim, nem tudo foi um mar de rosas para Bolsonaro. Durante a primeira volta, o candidato da extrema-direita foi sempre aquele que reuniu uma maior taxa de rejeição, geralmente com números acima dos 40%. Porém, com a passagem para a segunda volta, também isso se virou a seu favor. Essa tendência foi mantida até ao fim, com 44% dos eleitores a dizer que não votariam em Bolsonaro “de jeito nenhum” mas com 52% a dizerem o mesmo em relação a Fernando Haddad.

A isto, pode atribuir-se um certo abrandamento de Bolsonaro, ainda antes de ser vítima de um atentado, ao rodear-se de figuras com um perfil menos polémico e mais técnico — a sua escolha para liderar as finanças, Paulo Guedes, é o melhor caso disso. “Ao apresentar um economista como Paulo Guedes, é apresentada uma alternativa de racionalidade por trás dele”, sublinha ao Observador a politóloga Clarisse Gurgel, também em setembro.

Enquanto isso, o próprio Bolsonaro procurou reduzir a sua catadupa de gaffes e tiradas polémicas, depois do susto do possível julgamento por racismo que acabou por não surgir. Mas isso não o impede de continuar a brincar, protagonizando gestos que lhe merecem aplausos, gargalhadas e memes das gerações mais novas que o apoiam. Numa entrevista televisiva, foi filmado com uma cábula na mão onde se liam três palavras: pesquisas [como chamam no Brasil às sondagens], armas e Lula. Na vez seguinte, de regresso à televisão, voltou a fazer o mesmo. Sabendo que iam olhar para a mão dele, escreveu a letras ainda mais claras e vistosas: “Deus”, “Família” e “Brasil”.

https://twitter.com/adrianohidalgo/status/1035113568495169537

Guilherme Simões Reis, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, acredita que estas eleições são o terreno perfeito para Bolsonaro — os tais campos que ele arou durante tanto tempo. “Ele é candidato de pouca retórica, simplifica as coisas, não entende uma série de processos de economia, tem uma forma meio tosca de apresentar as ideias”, disse numa entrevista ao Observador em setembro. “Mas como joga nessa ideia infantilizada e demagógica, ele cresce muito.”

Isto tudo é apenas na dimensão política. Mas o que acontece quando Bolsonaro se transforma num mártir?

A facada que mudou o jogo

Nestas eleições, houve um antes e um depois do 6 de setembro em Juiz de Fora. Pouco depois de o seu pai ter sido esfaqueado, Flávio Bolsonaro foi às redes sociais dizer que o seu pai tinha sofrido uma facada mas que “graças a Deus foi apenas superficial”.

No entanto, horas depois, o mesmo filho do candidato da extrema-direita explicava que, afinal, o veredito era outro. “Infelizmente foi mais grave que esperávamos”, escreveu. “Perdeu muito sangue, chegou no hospital com pressão de 10/3, quase morto…”.

À operação de urgência, juntar-se-ia uma segunda. A partir daí, os médicos garantiram que Bolsonaro estaria fora de risco. Análise semelhante fizeram os politólogos que, analisando as movimentações que o atentado criou e as dinâmicas que, a partir daí, se instalaram, acreditam agora que Bolsonaro pode estar ainda mais perto da vitória.

“Com a facada, Bolsonaro conseguiu fazer algo que ninguém pensava que ele era capaz de fazer, que foi colocar-se numa situação semelhante à do Lula”, disse então Clarisse Gurgel. “Estão os dois recolhidos, sem liberdade de trânsito nas ruas, abatidos, vitimizados, com os seus vices a falar nos seus nomes.”

“Com a facada, Bolsonaro conseguiu fazer algo que ninguém pensava que ele era capaz de fazer, que foi colocar-se numa situação semelhante à do Lula. Estão os dois recolhidos, sem liberdade de trânsito nas ruas, abatidos, vitimizados, com os seus vices a falar nos seus nomes.”
Clarisse Gurgel, professora de ciência política na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

E, se acredita que isso possa ser prejudicial para o PT (mesmo inapto para concorrer às eleições, Lula surgia com mais de 40% nas sondagens em que Haddad mal passava dos 5%), esta politóloga já acreditava em setembro que podia tirar dividendo políticos do atentado que o visou. “Ele assim resguarda-se de si mesmo, não precisa de ir às ruas e desgastar a sua imagem. Além disso, muita gente que estava inibida de declarar o seu voto no Bolsonaro agora ganhou coragem.”

Esta ideia viria a confirmar-se mais tarde, com Bolsonaro a ausentar-se dos debates eleitorais frente a Haddad, mesmo depois de já ter autorização médica para participar neles. “Ele precisa debater. Estou disposto a ir até uma enfermaria se for preciso para debater o Brasil”, insistiu Haddad. No Twitter, Bolsonaro respondeu-lhe: “Senhor Andrade, quem conversa com poste é bêbado”. A tirada tinha dois espigões: primeiro, Bolsonaro disse mal o nome do seu candidato, gozando com o facto de ele ser pouco conhecido até ao início da campanha; depois, acusou-o de ser um ser inanimado que apenas carrega as mensagens de outros. Neste caso, de Lula

Quando conversou com o Observador em setembro a propósito dos efeitos da facada na campanha de Bolsonaro, o politólogo Guilherme Simões Reis destacou o vídeo publicado a 16 de setembro, 10 dias depois do atentado, na página de Facebook do candidato. Era a primeira vez que o candidato do PSL falava depois do atentado. Durante quase 20 minutos, Bolsonaro fez um discurso com um conteúdo em muito semelhante aos de sempre, entre previsões de fraude eleitoral e vários piscares de olho aos militares. No entanto, fê-lo num tom inédito: emocionado e fragilizado, como vítima que foi.

“Ele agora concilia a retórica de sempre ao mesmo tempo que fala como alguém que está sofrendo e que é sensível. No vídeo, ele se emocionava e falava com calma. Até se percebe que quando fala da família dele escolhe falar primeiro das duas mulheres. Ele nunca faz isso, mas agora já faz”, apontou então o politólogo.

Luciana Veiga acrescentou ainda que, depois da facada, os adversários de Bolsonaro ficaram sem saber como reagir. “Até ao atentado, todos se concentravam em atacá-lo de forma incisiva, mas agora tiveram que pisar no freio para não parecer mal”, disse à altura.

Em setembro, perguntámos aos politólogos consultados pelo Observador se tudo o que estava então na mesa era suficiente para Bolsonaro vencer as eleições. Sem exceção, todos hesitaram na resposta — mas nenhum acabou por negar essa possibilidade. Agora, Bolsonaro prepara-se para ser o próximo Presidente do Brasil, um país cujos campos tem arado nos últimos 30 anos.

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