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AFP/Getty Images

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Bolsonaro, um tiro no escuro

O Brasil elegeu um Presidente que, no espaço de uma semana, insinuou a execução dos seus adversários políticos e depois apelou à democracia e à liberdade. Afinal, qual dos dois vai ser Presidente?

Ninguém sabe ao certo onde vai parar a bala disparada este domingo no Brasil, com a eleição de Jair Bolsonaro para Presidente do Brasil. Este disparo coletivo, como se os quase 58 milhões de brasileiros que votaram no homem da extrema-direita tivessem premido em conjunto um só único gatilho, é a derradeira catarse de um país que viveu nos últimos anos a sua maior crise económica e política.

Os dados que ficam na História são estes: 55,13% para Bolsonaro, do PSL; 44,87% para Fernando Haddad, do PT. O futuro, porém, é difícil de vislumbrar.

O Brasil que numa fase inicial se habituou a ver em Bolsonaro uma piada viu agora nele um Presidente. Entre aqueles primeiros momentos e os dias de hoje, o homem que é deputado há 27 anos demonstrou várias facetas. Agora, basta olhar para os dois últimos discursos de Bolsonaro para ficar com dúvidas.

(Buda Mendes/Getty Images)

Buda Mendes/Getty Images

O primeiro aconteceu a 21 de outubro. Uma semana antes da segunda volta, numa altura em que as sondagens já davam a sua vitória por praticamente garantida, Bolsonaro teve uma manifestação de apoio em São Paulo. Impedido de participar nela por razões de segurança e saúde, falou aos apoiantes por telefone. Usando um tom de agressividade incomum numa segunda volta, falou dos seus adversários do PT sem pejo. “Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”, afirmou. E, além de dizer a Lula “Você vai apodrecer na cadeia”, e de sugerir que Haddad lhe iria fazer companhia, Bolsonaro usou ainda uma expressão que passou inicialmente despercebida: “Petralhada, vai tudo vocês para a ponta da praia”. No tempo da ditadura militar, “ponta da praia” era a expressão usada por alguns militares como o sítio ideal para depositar os corpos de quem morresse sob tortura.

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[Veja o vídeo: O filme da noite em que o Brasil virou]

O segundo discurso aconteceu este domingo, na noite em que venceu as eleições. Munido de óculos de leitura, Bolsonaro fez um discurso ao lado de vários apoiantes — mas foi a sua mulher, Michelle, que mais destaque teve, pousando a mão no ombro do marido ao longo do discurso. Contrastando com as suas afirmações de há uma semana, Bolsonaro falou agora em liberdade (palavra que, nas suas diferentes variantes, utilizou 11 vezes), em democracia (6 vezes) e em Constituição (que utilizou, em diferentes declinações da palavra, 3 vezes).

“Como defensor da liberdade, vou guiar um governo que defenda e proteja os direitos do cidadão que cumpre seus deveres e respeita as leis. Elas são para todos, porque assim será nosso governo: constitucional e democrático”, disse Bolsonaro este domingo à noite, enquanto ao fundo se ouviam explosões de fogo de artifício.

Não é claro qual será a versão de Bolsonaro que governará o Brasil nos próximos quatro anos. “O eleitor brasileiro acabou de dar um cheque em branco ao Bolsonaro. Não se sabe o que vai acontecer. Não sabemos absolutamente nada”, diz ao Observador a politóloga Luciana Veiga, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

"O eleitor brasileiro acabou de dar um cheque em branco ao Bolsonaro. Não se sabe o que vai acontecer. Não sabemos absolutamente nada."
Luciana Veiga, politóloga da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Para Vitor Oliveira, politólogo da Fundação Getúlio Vargas e analista da consultora Pulso Público, o governo de Jair Bolsonaro, que vai receber a faixa de Presidente das mãos de Michel Temer a 1 de janeiro de 2019, terá no seu modus operandi um constante testar dos limites. “Vai andar no limite da institucionalidade e vamos ter um teste quotidiano do limite constitucional”, diz ao Observador. “A gente não vai ter um Presidente preocupado em unir os brasileiros e certamente vai ser um governo que vai levar a cabo políticas públicas que vão pôr em causa o arcabouço do Estado de bem-estar social que foi criado no Brasil.”

Numa conversa por telefone entre Lisboa e Brasília, a partir de onde era possível ouvir o rebentar de fogo de artifício pela vitória de Bolsonaro, Vitor Oliveira explicou ainda que, numa primeira fase, o próximo Presidente do Brasil tentará “gerir” os limites das instituições ao mesmo tempo que vai procurar sustento no seu “apoio popular e extra-institucional, como são os militares”. No dia em que isso falhar, os desafios tornar-se-ão ainda maiores. “Nessa altura, que eu acredito que vai chegar mais cedo ou mais tarde, ele terá de jogar um jogo que não seja democrático. Aí, talvez tente afrontar as instituições que ele quer delapidar”, diz o politólogo.

"Vai andar no limite da institucionalidade e vamos ter um teste quotidiano do limite constitucional. A gente não vai ter um Presidente preocupado em unir os brasileiros e certamente vai ser um governo que vai levar a cabo políticas públicas que vão pôr em causa o arcabouço do Estado de bem-estar social que foi criado no Brasil."
Vitor Oliveira, politólogo da Fundação Getúlio Vargas

Porém, por mais incerto que seja o futuro do Brasil, entre um Bolsonaro autoritário e com tiques ditatoriais e outro que repete conceitos como “liberdade”, “democracia” e “Constituição” com especial insistência, há certamente uma certeza: a campanha que terminou este domingo foi ímpar. E nela residem as chaves do sucesso de Bolsonaro.

A receita de Bolsonaro para vencer em 16 dos 27 estados do Brasil

Em fevereiro de 2017, Bolsonaro quis subir na vida. Provavelmente farto de ser apenas um deputado no Congresso dos Deputados, o homem do Partido Social Liberal (PSL) concorreu ao cargo de presidente daquela câmara. A votação foi catastrófica. Dos 513 deputados, apenas 4 votaram no homem que ao longo da sua carreira parlamentar se destacou mais pelas suas tiradas polémicas do que pelo seu trabalho legislativo. Nem o próprio filho, Eduardo Bolsonaro, também ele deputado, votou no pai, por estar ausente da votação.

Ora, o mesmo homem que nem conseguiu convencer o próprio filho a votar nele no início de 2017, foi o mesmo que ganhou estas eleições presidenciais com 10.757.036 votos acima do seu adversário, vencendo em 16 dos 27 estados do Brasil.  O que se passou pelo meio?

A resposta, na verdade, vem de trás. Em 2013, após dez anos do PT no poder, a paz podre entre a sociedade brasileira e os seus governantes terminou. As primeiras manifestações couberam à esquerda do PT, que protestou em São Paulo contra o aumento dos preços de autocarro — decretado, por sinal, após a insistência de Fernando Haddad, então prefeito daquela cidade. A este descontentamento juntou-se o da classe média e também das mais endinheiradas, que encheu as ruas de verde e amarelo. Nunca mais saíram das ruas — e os resultados foram claros. Em 2016, Dilma Rousseff foi destituída num impeachment que a esquerda nunca aceitou. E, em 2018, Lula foi preso por corrupção e lavagem de dinheiro, sempre com a esquerda em desacordo.

"Bolsonaro manteve o seu discurso consistente em todos esses momentos. As bandeiras que ele levanta são as mesmas há vários anos."
Vitor Oliveira, politólogo da Fundação Getúlio Vargas

Bolsonaro atravessou todos estes momentos — e, em cada um deles, cresceu em notoriedade e popularidade. “Ele conseguiu expressar bem essa indignação da população em relação ao quadro e ao que era estabelecido à realidade política. Aquela indignação e aquele ressentimento encaixavam bem nele porque ele tinha um discurso próprio para isso”, diz Luciana Veiga.

Ao longo dos recentes anos de convulsão na política brasileira, Bolsonaro teve uma virtude essencial, conforme analisa Vitor Oliveira: “Bolsonaro manteve o seu discurso consistente em todos esses momentos. As bandeiras que ele levanta são as mesmas há vários anos”.

Ainda assim, o politólogo de Brasília nota que, na prática, “não houve discussão de políticas públicas” nestas eleições. “Houve uma discussão acerca do petismo e do significado do petismo, na qual os apoiantes dele foram muito competentes  no sentido de transformar o petismo numa imitação do bolivarianismo”, sublinha.

Pela primeira vez em 16 anos, o PT perdeu umas eleições presidenciais (NELSON ALMEIDA/AFP/Getty Images)

AFP/Getty Images

Esse debate, porém, foi feito sobretudo pelo prisma identitário e raramente pelo ângulo ideológico. Foram raras as discussões sobre economia — mesmo que seja essa a formação de base de Fernando Haddad e apesar de grande parte do programa de Bolsonaro ser alicerçado em propostas do economista Paulo Guedes, futuro ministro das Finanças — e ainda mais raras as discussões sobre a bomba-relógio que é o sistema de pensões no Brasil. Em vez disso, grande parte do debate assentou no confronto entre conservadorismo e progressismo e na discussão sobre os direitos de minorias étnicas e sexuais.

Nesse debate identitário, foi Bolsonaro quem saiu por cima. “Talvez tenhamos ignorado o quão conservadora é a sociedade brasileira e quão importante é esse discurso da família, dos costumes, das tradições cristãs e de origem evangélica”, disse Vitor Oliveira. “Desse ponto de vista, o PT ergueu bandeiras relativas a minorias, ao progressismo, ao direito da afirmação de valores não tradicionais e isso tornou-se num passivo muito grande.”

"A facada ajudou a criar as condições para que a campanha não fosse para a direção que todo o mundo pensava que ela ia chegar."
Fernando Bizzarro, investigador brasileiro em Ciência Política na Universidade de Harvard

Houve também a facada. Apesar de Bolsonaro ter perdido quase metade do sangue do corpo após a facada, que atingiu o estômago e o intestino grosso, foi o establishment da política brasileira que morreu naquele golpe. “A facada ajudou a criar as condições para que a campanha não fosse para a direção que todo o mundo pensava que ela ia chegar”, disse ao Observador Fernando Bizzarro, investigador brasileiro em Ciência Política na Universidade de Harvard, nos EUA.

Até à facada, Bolsonaro tinha pouco mais de 20% nas sondagens e uma campanha difícil pela frente. “Não tinha tempo de televisão, o que era considerado um grande ativo. A facada transformou esse cenário em que só havia factos negativos sobre ele e colocou-o na televisão de graça e a partir de uma perspetiva que não tinha como ser negativa porque ele quase morreu”, completa o académico de Harvard. “Tudo isso criou uma contra-maré.”

O atentado com uma faca que atingiu Bolsonaro a 6 de setembro é um dos principais momentos da campanha — e possivelmente um dos alicerces da sua vitória (RAYSA LEITE/AFP/Getty Images)

RAYSA LEITE/AFP/Getty Images

Mas, para Luciana Veiga, a questão não fica por aí. Mais do que ninguém, Bolsonaro soube usar as redes sociais em seu favor. “As pessoas eram muito céticas da utilização das redes sociais em campanha e ele fez uso delas porque não tinha absolutamente mais nada”, sublinha. De acordo com as leis da campanha eleitoral, Bolsonaro tinha apenas 8 segundos de tempo de antena em televisão na primeira volta, ao passo que Geraldo Alckmin (que terminou em quarto lugar, com 4,76%) tinha mais de 5 minutos. “As outras campanhas ficaram a ver navios.”

Estas foram também as eleições das fake news. Ainda a campanha não tinha começado e já circulavam notícias que davam conta de planos do PT para nacionalizar crianças aos 5 anos para lhes escolher o género; outras que diziam que Haddad tinha um Ferrari, era a favor do incesto ou tinha elogiado Estaline e Lenine na sua tese de mestrado. Embora a maioria das notícias falsas fosse contra Haddad, também Bolsonaro foi vítima destas — a maior delas todas tentou convencer os menos crédulos que a a facada de 6 de setembro era falsa.

Neste momento, está a ser investigada uma denúncia da Folha de S. Paulo, que escreveu que um grupo de empresários pró-Bolsonaro deu 12 milhões para orquestrar uma campanha de “disparos” de mensagens de WhatsApp contendo notícias falsas contra Haddad. Se a existência deste alegado esquema for provado, pode ser dado como consumada a violação da lei de financiamento de campanha eleitoral, que proíbe a participação de empresas, e as eleições podem ser canceladas.

E agora, PT?

Certamente não é falsa a notícia de que o PT vive hoje a sua maior crise desde que é poder. O simples facto de esta serem as primeiras eleições que perde desde 2002 — o que lhe confere desde então um rácio de uma derrota para quatro vitórias — não chega para entender o que acaba de acontecer. Mais do que isso, o PT cai aos pés de um outsider que pôs em causa tudo o que o partido de Lula deixa para trás.

“Esta eleição é crucial para a esquerda brasileira porque a coloca numa situação onde não estava há muito tempo. A esquerda é normalmente dividida, mas no caso brasileiro o PT sempre teve um papel hegemónico sobre a esquerda e isso consolidou-se com a eleição de Lula em 2002”, começa por dizer Fernando Bizzarro. “Agora, essa função de polo organizador da esquerda está em perigo.”

Na área política do PT, já há quem olhe em frente, diretamente para 2022. O maior caso disso é Ciro Gomes, terceiro classificado da primeira volta, com 12,4%, que chegou a alimentar a esperança de concorrer sob a bandeira do PT. Ciro Gomes, que foi ministro de Itamar Franco e também de Lula, acabou por sair do país após a primeira volta, refugiando-se em Paris. Em vésperas da segunda volta, regressou — mas não declarou o apoio expresso a Haddad. “Todo mundo preferia que eu, com meu estilo, tomasse um lado e participasse da campanha. Mas eu não quero fazer isso por uma razão muito prática que não quero dizer agora. Se não posso ajudar, atrapalhar é que não quero”, disse este sábado.

Haddad foi escolhido a dedo por Lula para lhe suceder como número 1 na campanha — mas a sombra de Lula acabou por atrapalhá-lo (NELSON ALMEIDA/AFP/Getty Images)

NELSON ALMEIDA/AFP/Getty Images

Até 2022 ainda há tempo — mas o PT está obrigado a pensar já. A braços com uma reputação manchada por escândalos de corrupção que culminaram no gigantesco processo Lava Jato, o PT está obrigado a fazer o mea culpa que tanto lhe pediram, e que tanto recusou fazer durante a campanha. “O PT sai machucado desta eleição, não só pelo anti-petismo mas também porque uma boa parte da esquerda culpa o PT”, diz Vitor Oliveira.

No discurso de derrota de Haddad, que foi mais uma “profissão de fé” — expressão utilizada pelo homem do PT — ficou já a garantia de que o Partido dos Trabalhadores vai trabalhar com o objetivo de vencer as próximas eleições, em 2022. “Daqui a quatro anos, nós teremos uma nova eleição”, sublinhou o candidato derrotado.

Porém, Luciana Veiga sublinha que, se quiser voltar ao poder, o PT terá de abrir mão da bandeira que mais ergueu na primeira metade da campanha: a libertação de Lula. “O PT ainda está entre os grandes partidos, mas tem de repensar as suas lideranças. Não dá mais para priorizar o Lula acima de tudo. A estratégia do PT que complicou e dificultou o sucesso do PT foi precisamente essa discussão de tirar o Lula da prisão”, diz. Até porque, adianta a politóloga, a realidade é já outra: “No campo do simbólico, o Lula deixou de ser a principal liderança do país. Foi suplantando pelo Bolsonaro”.

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