Depois de dois anos de uma recessão profunda e de uma atmosfera política, no mínimo, conturbada, os brasileiros voltam a ser chamados para escolher o próximo Presidente daquela que já é a oitava maior economia do mundo. Mas o próximo líder dos destinos do Brasil terá nas mãos uma questão tão urgente quanto radioativa para resolver: a reforma de um sistema de pensões que muito em breve se pode tornar insustentável.
O crescimento robusto do início desta década há muito que já lá vai. No início de 2010, a economia brasileira crescia 7,5%, no ano seguinte ainda cresceu 4%. Daí até à recessão foi um passo e, entre 2015 e 2016, a economia brasileira caiu 8,2% em termos acumulados. A recessão deixou marcas profundas. A economia brasileira cresceu 1% este ano e deve continuar a registar taxas de crescimento estáveis, embora não tão robustas. Para recuperar o suficiente e crescer ao nível que a economia pode fazer, só em 2022 — e isto se tudo correr como esperado.
Mas, até lá, os decisores brasileiros — e, agora, os eleitores — têm um problema complexo em mãos que terão de resolver, mas do qual os dois candidatos à segunda volta das presidenciais têm evitado falar.
Depois dos anos de recessão, a economia brasileira deve acelerar a um ritmo sustentado pelo menos até 2019
A primeira questão é sobretudo demográfica. O sistema tem três décadas e, quando foi criado e inscrito na Constituição de 1988, havia cerca de seis pessoas com mais de 65 anos para cada 100 trabalhadores. O número de cidadãos com mais de 65 anos, porém, duplicou desde então. Outro fator é o aumento da esperança média de vida, que aumentou mais de dez anos nos últimos trinta anos. Atualmente, a esperança média de vida no Brasil é de 75 anos, o que implica mais custos durante mais tempo para o sistema de pensões.
Com a queda pronunciada da taxa de natalidade, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) antecipa que, nas próximas três décadas, o número de pessoas com mais de 65 anos irá triplicar face ao número de trabalhadores em idade ativa, amplificando o problema.
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Mas questão terá de ser resolvida muito antes, uma vez que estas mudanças demográficas aconteceram, mas o sistema não foi alterado para as acompanhar. A idade média de reforma no Brasil é de 58 anos, uma das mais baixas do mundo, apesar de os brasileiros viverem mais, e a estimativa é que o governo brasileiro deixe de ter capacidade para cumprir as suas obrigações com os seus pensionistas em 2021, daqui a três anos.
“Se não fizerem uma reforma do sistema de pensões, o país vai entrar numa crise severa, o que significa que o governo não vai conseguir honrar os seus compromissos”, explicou ao Observador o economista chefe para o Brasil, Jens Arnold.
A visão é partilhada pelos decisores brasileiros. O atual presidente, Michael Temer, ainda avançou com uma proposta para reformar o sistema de pensões, mas o seu capital político, que já não era elevado, pela forma como se tornou presidente, ficou ainda mais debilitado depois de ser conhecida uma conversa entre Temer e o empresário Joesley Batista, onde serão relatados vários crimes, desde a obstrução à justiça, crimes de mercado e corrupção. Quando o presidente deixou cair a reforma das pensões, a preocupação era tal que as três maiores agências de rating — Moody’s, Standard & Poor’s e Fitch — cortaram de imediato o rating do Brasil, deixando-no numa categoria ainda mais baixa, já dentro do que é considerado ‘lixo’.
Mudar o sistema de pensões no Brasil exige a aprovação de três quintos do Congresso brasileiro e traz consigo mudanças impopulares, como o aumento da idade da reforma, o aumento do número de anos de contribuições que são necessários para aceder à reforma, uma redução das pensões dos funcionários públicos — que são mais elevadas que as do setor privado — e outras alterações, como o fim da indexação da pensão mínima ao salário mínimo nacional, que tem alargado ainda mais os custos.
Tudo isto faz com que o Brasil tenha despesas com pensões excecionalmente elevadas para uma população tão jovem, num período em que recupera de uma recessão profunda que deixou marcas que ainda estão a agravar mais o problema, como é o mercado de trabalho. Segundo o FMI, a maior parte dos empregos criados na sequência da recessão estão na economia paralela, o que faz com que estes trabalhadores não estejam a contribuir com receitas para os cofres do Estado e para o sistema de previdência, e que não tenham estabilidade e ordenados dignos. A explicação, segundo a organização, pode passar pelo receio das empresas de criarem postos de trabalho numa altura de turbulência política, que provoca incerteza quanto ao futuro.
Prestações sociais não chegam a quem tem menos
O sistema de pensões pode ser pesado para as contas públicas do Brasil, mas não quer dizer que seja eficiente. Segundo Jens Arnold, “a indexação da pensão mínima ao salário mínimo significa que houve um aumento em 80% dos benefícios nos anos recentes, mas este aumento não chega a mais de metade dos brasileiros. O Estado está a gastar mais e mais recursos com pessoas que já não estão entre as mais pobres do Brasil”.
Estes benefícios, diz o economista, “estão a ir para a classe média, em vez das famílias mais pobres”, num país no qual “mais de metade dos brasileiros vive com menos de metade do salários mínimo por mês”. O Brasil é um dos países com maior nível de desigualdade entre os países da OCDE e também está no topo entre os mais de 140 países para os quais o Banco Mundial tem dados.
A desigualdade é agravada pela forma como está desenhado o sistema de previdência. Segundo a OCDE, as prestações sociais do regime não contributivo, no qual o Brasil gasta o equivalente a cerca de 0,7% do seu PIB por ano, menos de um terço do dinheiro gasto chega aos 40% mais pobres. O resto vai para os restantes 60%. A organização diz que a razão para isto é a não existência de um sistema semelhante à condição de recursos, que permitiria verificar quais são as famílias que de facto necessitam mais.
Apesar da desigualdade na distribuição das prestações sociais, as autoridades brasileiras têm em prática um programa muito elogiado pelas organizações internacionais. O Bolsa Família tem apoiado as famílias mais pobres e com um custo baixo para o orçamento brasileiro, de apenas 0,5% do PIB. Com prestações mais baixas, com o salário mínimo e um sistema de apoio criado com o objetivo de deixar as famílias numa posição em que se conseguem aguentar sem estes apoios, o programa é muito elogiado também por alguns dos candidatos à presidência.
Segundo a OCDE e o FMI, o Bolsa Família chega, de facto, aos mais pobres e seria mais importante reforçar os gastos no Bolsa Família, em comparação com as prestações que são atribuídas atualmente ao abrigo do sistema de previdência.
Uma economia excessivamente fechada
O problema orçamental é o mais urgente, segundo as principais organizações internacionais. Os sucessivos défices orçamentais levaram a um aumento substancial na dívida pública, em quase 10 pontos percentuais, entre 2016 e o estimado para o final deste ano. Se nada for feito, a dívida pública brasileira deve continuar a crescer até aos 95% do PIB em 2022, o que poderia colocar questões sobre a sua sustentabilidade.
O défice orçamental está mais baixo desde a introdução de uma regra que congela a despesa pública nos próximos 20 anos, mas os anos de recessão levaram a um aumento pronunciado da dívida
No entanto, as características da dívida pública brasileira e da própria economia brasileira acabam por deixar o país numa posição mais confortável do que se esperaria, pelo menos no curto prazo. A maior parte da dívida pública brasileira é emitida em reais, protegendo o país de uma variação brusca nas taxas de câmbio e dando ao banco central poder para agir em caso de uma crise, e é também detida por residentes, ou seja, famílias e empresas brasileiras, o que reduz a pressão sobre os juros.
Mas estas características também são sintomas de debilidades mais profundas. Segundo os dados do Banco Mundial, a economia brasileira é uma das mais fechadas do mundo em termos de comércio. O total das exportações e importações, ou seja, das trocas comerciais com o resto do mundo, só chegava aos 24% do PIB em 2017. Entre os 264 países para os quais o Banco Mundial compila estes dados, pior que o Brasil só havia um país, o Sudão, cujas trocas comerciais atingiam os 22%.
Só o Sudão tem uma economia mais fechada que a do Brasil, de acordo com o Banco Mundial
Com taxas sobre as importações elevadas e outras barreiras, além destas taxas ao investimento direto estrangeiro, a economia brasileira acabou por criar um problema de concorrência e de produtividade. “A população aumentou significativamente, mas este aumento não veio acompanhado de um aumento da produtividade. Neste campo, o Brasil tem falhado. Evidentemente, o Brasil tem um problema de falta de concorrência, que é muito baixa em vários setores, tem uma economia pouco integrada na economia global. Estas duas questões estão relacionadas porque, quando não se tem concorrência de fora, já fechamos uma parte importante”, explica Jens Arnold.
O economista diz que a economia brasileira tem de liberalizar os seus mercados, reduzir as barreiras ao comércio e à entrada de novos investimentos, mas além disto também de mudar a forma como estão estruturadas as suas indústrias. “São os mesmos players nestas indústrias há muitos anos”. A ausência de sangue novo e concorrência faz com que as principais indústrias sejam dominadas pelas mesmas empresas, sem um incentivo para melhorarem e mais sujeitas a corrupção, defende a OCDE.
A economia brasileira continua a ter várias barreiras contra a entrada de investimento direto estrangeiro
Comércio: risco e oportunidade
Apesar de o comércio ser uma fatia pequena do bolo, os principais clientes do Brasil, uma economia que exporta essencialmente matérias-primas, deixam essa fatia vulnerável a mudanças nos tempos em que vivemos. Os três maiores clientes das exportações brasileiras são a China (que compra quase 20% dos produtos brasileiros), os Estados Unidos (cerca de 12%) e a Argentina (mais de 7%).
O risco do aumento do protecionismo devido à disputa comercial em curso entre os Estados Unidos e a China, que envolve blocos importantes como a União Europeia, o Canadá, o México e vários países asiáticos, pode colocar problemas a economias tão dependentes destes mercados, mas o Brasil tem sabido navegar estas águas e pode aproveitar da melhor maneira as restrições que se levantam entre estes blocos.
Por exemplo, o produto que o Brasil mais exporta para a China é soja, cerca de 10% das suas exportações totais para a China, numa altura em que a economia chinesa procura alternativas à importação de soja dos Estados Unidos devido às taxas impostas pela administração norte-americana às importações chinesas. Como a soja, o Brasil exporta um leque de matérias-primas que são do interesse de economias como a chinesa, caso entendam diversificar as suas fontes, como tem vindo a ser o caso.
Por outro lado, com uma economia habituada a impor restrições, o Brasil foi um dos primeiros países a chegar a um acordo com os Estados Unidos relativamente à venda de alumínio e aço para território norte-americano, evitando assim uma disrupção no comércio com a maior economia do mundo.
Bons ventos de Brasília
Apesar de recomendarem reformas profundas — e algumas delas politicamente difíceis de fazer –, há algum otimismo das autoridades, que acreditam que estas mudanças vão acabar por ser implementadas, como explica o economista chefe para o Brasil da OCDE.
“O que vejo é que há um consenso cada vez maior sobre um programa de reformas razoável. A impressão com que fiquei das conversas que tenho tido [com responsáveis brasileiros] é que sabem onde estão os problemas, o diagnóstico que fazem está certo em muitos casos. Por exemplo, a questão da abertura da economia tem sido muito debatida nos últimos anos. Há cinco anos, nem sequer havia debate”, disse.
Muito do futuro da economia brasileira vai decidir-se nas eleições do próximo domingo, 28 de outubro. “O problema de implementação está no lado político, que está muito fragmentado e não estou a ver isso mudar. Mas estou muito mais otimista de que vão chegar a um consenso”, acrescentou.
Vença Fernando Haddad ou Jair Bolsonaro, há uma questão à qual o futuro presidente não vai poder fugir, a da reforma do sistema de pensões. “O Brasil vai entrar numa crise severa se não fizer uma reforma do sistema de pensões e relativamente às prestações sociais”, avisa o economista da OCDE.