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Cabo Delgado: insurgentes, jihadistas ou terroristas?

Quais são, afinal, as causas da guerra em Cabo Delgado? Revolta popular contra o governo, o jihadismo islâmico ou os interesses nas riquezas naturais? Ensaio de Fernando Jorge Cardoso.

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Palma, uma mudança no curso da guerra?

A 24 de março de 2021, o grupo sectário que se reivindica do Islão e da Jihad para aterrorizar, destruir e assassinar quem não lhe siga os ditames, autointitulado de Ansar-Al-Sunaa (Seguidores da Tradição) e conhecido em todo Moçambique por mashababos (tradução livre para o plural de Al-Shabaab – juventude em árabe), atacou e ocupou parcialmente a vila de Palma, capital do distrito com o mesmo nome, que faz fronteira a nordeste com a Tanzânia. Nesse ataque foram mortos um número indeterminado de militares e civis, incluindo trabalhadores não-moçambicanos que lá residiam e trabalhavam no complexo de Afungi, para o projeto de exploração de gás natural liderado pela transnacional pública francesa TOTAL.

Segundo fontes de diversas proveniências, tal ataque foi feito com precisão tática, combatentes experimentados, e a sua preparação seria do conhecimento das forças de segurança e de defesa moçambicanas, que, apesar do alerta, não tiveram capacidade para o evitar e fazer-lhe frente eficazmente.

Contrariamente às tentativas de o secundarizar, com alegações de não ter sido o mais importante ao longo dos anos de guerra que grassa no nordeste de Cabo Delgado e de que estaria a ser controlado progressivamente pelas forças moçambicanas, este ataque teve um impacto estratégico. É verdade que não foi o ataque de maior dimensão e intensidade – por exemplo, o que foi feito em agosto de 2020 a Mocímboa da Praia e que levou à sua ocupação envolveu mais combatentes terroristas. Porém, ao atacarem com sucesso a vila, os mashababos conseguiram três objetivos principais.

Primeiro, paralisaram o projeto da TOTAL, o que pode ter consequências inesperadas – apesar de o governo francês deter uma Golden Share de 30% na companhia, os acionistas privados poderão começar a não ver com bons olhos a continuidade do projeto, mesmo com tudo o que isso significa após ter sido tomada a decisão final de investimento (FID), que indica existirem contratos firmes que garantem a compra do gás natural líquido no próximo futuro.

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Face aos milhares de mortos civis e militares, à existência de cerca de 700 mil deslocados internos, à eclosão de problemas sanitários graves e de situações de fome e subnutrição, tendo em conta a ameaça que a evolução do conflito coloca aos calendários e à própria continuidade da exploração de gás, a presença do Presidente na Província é uma necessidade evidente, de índole estratégica.

Segundo, aumentaram o sofrimento da população e a sua frustração por não terem sido eficazmente protegidos pelo governo contra o ataque letal do grupo, alimentando a ideia de que o Estado moçambicano não consegue exercer a soberania e proteger os seus cidadãos na globalidade do território nacional, com a agravante de este ataque e a guerra em geral estarem a acontecer na Província onde a Frelimo, no poder, iniciou a luta de libertação nacional contra o colonialismo português.

Terceiro, permitiram ao Estado Islâmico (DAESH) reclamar a conquista de mais uma capital distrital pelos seus afiliados locais (o que, na verdade, não aconteceu) e pôr fim a uma narrativa, que circulava nalguns círculos académicos e redes sociais, sobre um alegado corte entre o DAESH e o Ansar-al-Sunaa, por quezílias de índole litúrgica. Aparentemente, clérigos do rito Corânico, inspiradores dos mashababos, teriam forçado o movimento a propagar a negação das Haditts (escritas por seguidores de Maomé) como preceitos a ignorar, o que não é aceite pelo DAESH (nem pela Al Qaeda) – e que explicaria, a par da época das chuvas, a diminuição de intensidade das atividades terroristas desde dezembro do ano passado.

Face aos milhares de mortos civis e militares, à existência de cerca de 700 mil deslocados internos, à eclosão de problemas sanitários graves e de situações de fome e subnutrição, tendo em conta a ameaça que a evolução do conflito coloca aos calendários e à própria continuidade da exploração de gás, a presença do Presidente na Província é uma necessidade evidente, de índole estratégica. Esta ausência é ainda mais notada tendo em conta o que aconteceu na sequência da destruição provocada pelo ciclone Idai em março de 2019, que levou o Presidente a deslocar-se com vários ministros para a Beira durante um período relativamente prolongado e a ter comandado pessoalmente as operações. Esta decisão política, possivelmente motivada por razões de segurança, a não ser rapidamente corrigida, deixa uma mancha na governação da Frelimo — e de Filipe Nyusi.

Sobre a natureza do conflito em Cabo Delgado

Figura 1: Moçambique e Cabo Delgado no contexto regional. Fonte: Financial Times

Existem algumas teses que olham para a guerra em Cabo Delgado como originada por ressentimentos acumulados, pela frustração de populações que veem as riquezas naturais e a terra a serem exploradas sem que daí advenham (ainda) benefícios evidentes, por ausência de oportunidades de emprego para os jovens que entram na vida ativa e por uma revolta popular contra desmandos de autoridades. Estas realidades têm sido documentadas com alguma frequência e credibilidade, não é por acaso que, até recentemente, a presença de jornalistas na Província era malvista por parte do Governo. Contudo, esta tese é dificilmente suficiente para explicar a guerra, uma vez que em diversas outras partes do país existem conflitos similares, por vezes com ações violentas, provocados por abusos de poder, ocupação de terras e deslocamento forçado de populações, entre outros. Ou seja, há que não confundir conflitos, mesmo quando violentos, com guerra, sob pena de se tratar da mesma forma governo e terroristas.

Na verdade, em Moçambique existem fenómenos mais ou menos generalizados de incompetência das instituições públicas, de corrupção e de abusos de poder por parte de autoridades. Porém, a má governação, a hostilização dos media e da sociedade civil não alinhada com a Frelimo, por mais conflituais que sejam, não desencadearam a guerra. O conflito violento em Cabo Delgado não é contra o governo: é contra o Estado e contra o modo de vida da esmagadora maioria da população, particularmente da população muçulmana.

Uma consideração adicional, antes de discutirmos a natureza da guerra, necessita de ser feita. Os dois principais partidos de Moçambique, a Frelimo e a Renamo (e a generalidade dos outros partidos e organizações religiosas e da sociedade civil) estão em sintonia sobre a necessidade de acabar com esta guerra. Nesse sentido, os episódios violentos que acontecem episodicamente no centro de Moçambique são provocados por uma dissidência militar da Renamo e nada têm a ver com a guerra em Cabo Delgado.

Comecemos por qualificar aquilo que a guerra não é. A sua qualificação como jihadismo islâmico radical é negada pela esmagadora maioria dos muçulmanos em Moçambique (incluindo pela associação islâmica Wahabita) – não obstante a designação se manter no léxico da generalidade das agências de segurança, de muitos analistas e jornalistas. Os seus protagonistas são moçambicanos radicalizados, apoiados por combatentes estrangeiros provenientes de grupos afiliados ao Estado Islâmico, que procuram impor pela força práticas literalistas do Islão num ambiente que sempre as rejeitou, que recrutam localmente jovens sem expectativas de emprego, ou cativados pelo banditismo armado.

As primeiras manifestações de revolta e violência datam de 2007, na zona noroeste da Província e são protagonizadas por moçambicanos radicalizados, principalmente em madraças e mesquitas da Arábia Saudita e que não encontram em Moçambique – e em Cabo Delgado – terreno propício para a concretização dos seus ideais religiosos e de comportamento social.

Convém acrescentar que a designação “jihadismo islâmico radical” é bastante polémica e não aceite pela generalidade da comunidade islâmica sunita internacional e pelos próprios governos dos países que têm o Islão como religião de Estado – incluindo pela própria Arábia Saudita, de rito oficial Wahabita, e que é inimiga declarada da Al Qaeda e do Estado Islâmico. A maioria dos teólogos sunitas defendem a Jihad como uma guerra no interior de cada pessoa e não uma guerra contra outrem ou pela imposição forçada de preceitos comportamentais. O que é verdade é que as principais vítimas do terrorismo deste tipo de seitas que se reivindicam do salafismo são muçulmanos, civis, mulheres e crianças. Ou seja, este tipo de conflitos que existem em diversos países africanos e do Médio Oriente não tipifica uma guerra entre cristãos e muçulmanos – quando muito, seria possível argumentar serem uma espécie de guerra civil no interior do Islão, o que também é polémico.

Em Cabo Delgado, a natureza da guerra é claramente ideológica e civilizacional, com métodos terroristas, e as motivações dos seus protagonistas assentam em convicções religiosas sectárias de inspiração salafita (o que significa que, em caso de paz, os outros credos religiosos são permitidos, desde que se subordinem, paguem uma taxa e os seus seguidores não tenham, no espaço público, comportamentos considerados não-islâmicos; contudo, em caso de guerra, é permitida a morte de cativos por decapitação ou não, ou a sua escravização e a utilização das mulheres para fins sexuais, entre outras práticas). A guerra acontece num ambiente em que existem ressentimentos com a atuação predatória de comerciantes e membros do poder e evoluiu de conflitos pontuais desde 2007 para ações violentas a partir de 2017 e, a partir de finais de 2019, para uma guerra contra o Estado e a população.

A evolução do movimento que começa por ser um conjunto de revoltosos contra as práticas sufis e, eventualmente, contra a atuação das autoridades, até se transformar num grupo terrorista, merece ser melhor explicada. Na verdade, as primeiras manifestações de revolta e violência datam de 2007, na zona noroeste da Província e são protagonizadas por moçambicanos radicalizados, principalmente em madraças e mesquitas da Arábia Saudita e que não encontram em Moçambique – e em Cabo Delgado – terreno propício para a concretização dos seus ideais religiosos e de comportamento social, sendo rejeitados pelos líderes muçulmanos locais.

Após episódios esporádicos de violência contra os seus centros de pregação, por parte de crentes, acabam por reforçar os seus contactos com correligionários no sul da Tanzânia e por se concentrarem no distrito de Mocímboa da Praia, onde iniciam uma revolta violenta, com ações de decapitação de pessoas em 2017. Após um tempo em que não obtiveram, por razões que não estão claras, o reconhecimento do Estado islâmico, este reconhecimento acaba por acontecer no final de 2019, altura em que se lhes juntam combatentes experimentados provenientes do nordeste da República Democrática do Congo, de onde haviam saído em direção ao sul da Tanzânia, devido a uma ofensiva militar do exército congolês contra a base da recentemente decretada Província do Estado Islâmico para a África Central,

Ao forçar a população a assumir posturas que vão contra as respetivas tradições, cultura, e ao perturbarem o comércio e a paz, o Ansar-al-Sunna não encontra adesão local, razão pela qual tem vindo a assumir atitudes cada vez mais violentas.

Este foi o momento de viragem que acompanha uma maior eficácia de combate dos terroristas e que expõe a fragilidade das forças de defesa moçambicanas, reforçadas com efetivos militares e unidades da polícia de intervenção. A resposta ineficaz do governo às ações empreendidas pelos mashababos e que têm o seu momento alto na conquista da capital do distrito de Mocímboa da Praia, em agosto de 2020 – para além de ataques mortíferos em vários localidades, incluindo em Nangade, Muidumbe e Mueda, distritos de maioria maconde e considerados baluartes da ação da Frelimo durante a luta de libertação nacional – é parcialmente explicada pela secundarização a que o governo havia votado as forças armadas, desde o acordo de paz com a Renamo em 1992.

Nesse acordo a integração de efetivos da Renamo ficou prevista unicamente nas forças armadas – e não na polícia ou forças de segurança. Tal motivou a que os sucessivos governos da Frelimo reforçassem a segurança e a polícia em detrimento do exército, que, à data do início das ações violentas em 2017, tinha um número de efetivos inferior ao da polícia de intervenção. A secundarização do exército explica a sua debilidade operacional e logística e a inexistência de forças armadas preparadas para um teatro de guerra de guerrilha — comandos, fuzileiros, rangers. Só na sequência dos ataques de 2017 e depois de normalizadas as relações com a Renamo, o governo começa a dar importância à existência de forças armadas operacionais, tendo, em 2020, o atual presidente passado o comando em Cabo Delgado do Ministério do Interior para o Ministério da Defesa.

Em conclusão, este grupo terrorista é formado por moçambicanos radicalizados, aos quais se foram juntando jovens ressentidos com as suas condições e expectativas de vida, que operam conjuntamente com combatentes (e clérigos) tanzanianos, aos quais se juntam, a partir de finais de 2019, combatentes experimentados de outras origens — ugandeses, congoleses, sudaneses e somalis. Ao forçar a população a assumir posturas que vão contra as respetivas tradições, cultura, e ao perturbarem o comércio e a paz, o Ansar-al-Sunna não encontra adesão local, razão pela qual tem vindo a assumir atitudes cada vez mais violentas e indiscriminadas contra civis, muçulmanos, muânis e macuas, na sua maioria.

Caracterização demográfica e religiosa

Para compreender melhor a situação, convém analisarmos melhor a demografia de Moçambique e de Cabo Delgado. Segundo o Censo Populacional de 2017, Moçambique deverá ter hoje, aplicando a taxa de crescimento populacional aos dados da figura 2, mais de 31 milhões de habitantes, 2,5 milhões dos quais na Província de Cabo Delgado.

Em termos de religião, no país haverá cerca de 60% de cristãos (maioria católicos) e, segundo o Censo Populacional, menos de 20% seriam muçulmanos – o que é polémico, há quem defenda (o Conselho Islâmico de Moçambique, por exemplo) que estes últimos deverão rondar os 30%, pois cerca de metade dos que disseram ter outra ou não ter religião seriam muçulmanos. A informação disponibilizada pelo Censo de 2017 é apresentada na figura 3.

Extrapolando a composição étnica a partir da linguística, na Província de Cabo Delgado cerca de 70% serão macuas (30% da população do país, concentrados a norte, mas com representação apreciável noutras províncias, particularmente em Maputo). Os Muanis e os falantes de Suaili representariam menos de 10%, localizados em Mocímboa da Praia, Palma e ilhas ao longo da costa; os Macondes, principalmente localizados nos distritos de Mueda, Muidumbe e Nangade, não chegariam a 20% da população da Província. A figura 4 mostra a distribuição das línguas faladas em Cabo Delgado.

Esta distribuição religiosa é inversa em Cabo Delgado, onde 60% da população é islamizada, com os cristãos (católicos, maioritariamente macondes) a atingirem pouco mais de um terço do total. Embora o Censo Populacional de 2017 não tenha publicado esta informação, ela pode ser extrapolada a partir dos dados do Censo anterior, não devendo as percentagens ter-se alterado significativamente em relação à figura 5.

Como fica evidente na figura 6, do ponto de vista da composição religiosa, a guerra desenrola-se em zonas povoadas principalmente por muçulmanos, que têm sido as principais vítimas da ação da seita terrorista que opera em Cabo Delgado. Do ponto de vista da composição linguística, acontece em distritos com etnias diversas — Mocímboa da Praia (maioria Muani), Nangade e Muidumbe (maioria maconde), Macomia, Quissanga e Palma (maioria macua). Ou seja, os mashababos não olham a distinções étnicas ou religiosas, o que é mais um indicador de que a guerra que realizam é de natureza ideológica e civilizacional, com o objetivo de forçar a população a obedecer a normas e preceitos de vida e de comportamento – que, diga-se, são contrários à cultura existente. Na verdade, a submissão violenta das mulheres, a prática da escravatura a não-muçulmanos ou “apóstatas” e a decapitação como forma de exemplo ou de punição de quem quer que seja não fazem parte das práticas islâmicas ou cristãs correntes nas terras de Cabo Delgado.

Figura 6: Distribuição linguística por distritos. Fonte: Translators without Borders

Sobre o gás, as transnacionais e os países de bandeira

A figura 7 mostra a localização das reservas de gás e dos três projetos de gás natural liquefeito (LNG). Na verdade, apesar da descoberta de gás preceder a eclosão da guerra, a dimensão das reservas e a presença de quase uma dezena de transnacionais e países de bandeira interessados e, alguns deles, já envolvidos nos trabalhos de pré-exploração, deu visibilidade internacional ao conflito.

Figura 7: Os 3 projetos do Gás: Mozambique LNG; Rovuma LNG, Coral South FLNG. Fonte: banktrack.org

Para além da ENH – Empresa Nacional de Hidrocarbonetos, pública, moçambicana, existem oito corporações transnacionais envolvidas nas concessões. A listagem que é a seguir fornecida inclui a indicação da natureza pública ou privada das corporações e dos respetivos países de bandeira:

  • TOTAL – pública, França;
  • ONGC – Oil and Natural Gas Corporation (Oil India), pública, Índia;
  • BPCL – Bharat Petroleum Corporation Limited, pública, Índia;
  • BREM – consórcio entre a BPRL e a ONGC, Pública, Índia
  • PTTEP – PTT Exploration and Production, pública, Tailândia;
  • CNPC – China National Petroleum Corporation, pública, China;
  • KOGAS – Korea Gas Corporation, pública, Coreia do Sul;
  • Eni – (70% privada + 30% golden share do Governo), Itália;
  • Exxon Mobil – privada, EUA;
  • Mitsui & Company, privada, Japão;
  • Galp – Galp Energia (92,5% privada, 7,5% pública), Portugal.

Na Área 1, o projeto, Mozambique LNG é liderado pela TOTAL (FID de US$ 20B tomada, trabalhos em curso em Afungi), com 26,5%, sendo parceiros a Mitsui & Company, com 20%, a ONGC, com 10%, a ENH, com 15%, a PTTEP, com 8,5%, a Bharat Petroleum, com 10%, e a Beas Rovuma Energy Company (consórcio da ONGC e da BPRL), com 10%.

Na Área 4, há dois projetos, o Rovuma LNG, liderado pela ExxonMobil (FID adiada) e o Coral South Floating LNG, liderado pela Eni (trabalhos em curso, FID não tomada). 70% dos direitos de extração e exploração na área 4 pertencem à Mozambique Rovuma Venture (ExxonMobil, 40% + Eni, 40% + CNPC, 20%) e os outros 30%, em partes iguais, pertencem à Galp + KOGAS + ENH.

Em resumo existem cinco multinacionais e um consórcio entre duas companhias, todas públicas, uma controlada pelo governo e três privadas, para além da moçambicana ENH; estas companhias têm 9 países de bandeira (França, Itália, Índia, China, Coreia do Sul, Tailândia, EUA, Portugal, Japão – e Moçambique).

Para terminar este ponto há que dizer que, na verdade, as descobertas de gás não originam a guerra, mas são por ela afetadas, em termos de condições e calendários de trabalho e, em última instância, da viabilidade dos projetos – como se tornou evidente após o recente ataque a Palma e a paralisação dos trabalhos decidida pela TOTAL.

O Canal de Moçambique e alguns protagonistas estratégicos

Cabo Delgado faz fronteira a Norte com a Tanzânia e a Leste com o Índico, como é visível na figura 8. Desta localização regional e de fatores históricos foi criada uma relação que ajuda a perceber o jogo de interesses em equação e a possibilidade de alianças e intervenções externas.

Começando pelos principais países envolvidos ou com maior potencial de envolvimento na guerra, quer na sua continuidade quer no apoio à sua resolução, será importante caraterizar a relação de Cabo Delgado (e de Moçambique) com o Índico e a Tanzânia.

Figura 8: O Canal de Moçambique e a fronteira norte. Fonte: cimsec.org

Esta figura mostra não só a fronteira com o Índico, mas também a presença de ilhas pertencentes a França ao longo do Canal de Moçambique (Europa, Bassas da Índia e João da Nova), para além das ilhas Preciosas (Gloriosas) e de Mayotte, que dista cerca de 500 km de Pemba e onde existe uma base militar francesa. Ou seja, França é a principal potência militar global com capacidade imediata de intervenção na zona, embora o essencial das preocupações e meios militares franceses no exterior estejam concentrados no Djibouti (ponto estratégico na entrada do Mar Vermelho) e em países do Sahel e da África ocidental, onde se situam tradicionalmente os interesses daquele país.

No mar, para além da França, existe outro país, membro da SADC, com meios de intervenção militar (marítimos e aéreos) na zona de Cabo Delgado: a África do Sul, cujo governo tem afirmado que só intervirá militarmente no âmbito de uma operação multilateral – na verdade, essa intervenção não é consensual em diversos meios políticos sul-africanos, que consideram que o Presidente Cyril Ramaphosa se deveria concentrar na resolução de problemas internos.

Em terra, o principal fator da equação da guerra em Cabo Delgado é a Tanzânia e a sua capacidade e disponibilidade para atuar – e em que sentido. A porosidade das fronteiras marítimas e terrestres com o vizinho a norte é ancestral e dá origem a fluxos regulares de pessoas e bens de um para o outro lado da fronteira. Porém, ela facilita igualmente os movimentos terroristas. Neste contexto, a normalização de relações entre os dois países, que não tem sido a melhor desde a descoberta de jazigos de gás em águas limítrofes do Índico e, particularmente, desde que as companhias transnacionais optaram por Moçambique como lugar de localização dos principais projetos do gás, é essencial. Na verdade, somente através de uma cooperação militar e de segurança entre Moçambique e a Tanzânia será possível combater eficazmente o ou os grupos terroristas que operam em ambos os países.

Os EUA e, principalmente, Portugal, com quem Moçambique tem mantido uma relação de cooperação na área de defesa e segurança desde a independência, são os países que estão a apoiar, em termos logísticos, de aconselhamento e formação, as forças armadas moçambicanas, sendo provável que a África do Sul se junte a este esforço, em moldes ainda não clarificados (particularmente após o ataque a Palma, que envolveu combatentes terroristas sul-africanos e visou  também nacionais daquele país).

Em suma, os países com maior capacidade de influência sobre a evolução da guerra em Moçambique são a Tanzânia, a França, a África do Sul, Portugal e os EUA.

Do cruzamento entre interesses económicos e a guerra

É recorrente, na literatura e nas análises que se têm vindo a fazer ao caso moçambicano, aparecer a ligação entre guerra e recursos naturais. Para além da questão do gás, para compreender melhor este aspeto será importante equacionar a relação entre a guerra, a exploração de recursos naturais e os diversos tipos de tráficos ilícitos que acontecem em paralelo.

Preexiste também à eclosão da guerra em Cabo Delgado o tráfico de drogas pesadas, com o envolvimento de máfias internacionais e a cumplicidade de antenas locais, ao longo da região do canal de Moçambique e através de território moçambicano, malauiano e tanzaniano.

A costa leste africana foi, ao longo da história, objeto de redes de tráfico diverso que englobavam não só a costa nordeste de Moçambique, mas vinham até à zona de Sofala. Do mesmo modo, o comércio informal transfronteiriço, no caso entre Cabo Delgado (e Niassa) e a Tanzânia é, igualmente, bastante antigo.

Exemplificando, o abate, transporte e venda de lenha e madeira para a Tanzânia é um negócio antigo, que nada tem ou teve a ver com a eclosão do conflito.

Mais recentemente, com cumplicidades locais, também se criou um novo fluxo de tráfico, no caso de marfim e madeiras preciosas para a Ásia, controlado por máfias chinesas e vietnamitas. A recente descoberta e exploração de rubis em Montepuez tem igualmente originado fluxos de tráfico a partir do garimpo não autorizado – como é comprovado pela relativamente recente apreensão de um carregamento ilegal de rubis no Brasil.

Ao longo da região do canal de Moçambique e através de território moçambicano, malauiano e tanzaniano preexiste também à eclosão da guerra em Cabo Delgado o tráfico de drogas pesadas, com o envolvimento de máfias internacionais e a cumplicidade de antenas locais. No caso da heroína (e ópio) e da cocaína, essas rotas aparecem na figura 9.

Figura 9. Rotas de tráfico de heroína e cocaína. Fonte: dailymaverick.co.za

O tráfico representado no mapa não trata de produções locais, mas sim de redes de contrabando que fazem passar a droga por território moçambicano.

O tráfico de ópio (e heroína) inicia-se no Afeganistão, via Baluchistão (no Paquistão) e desce em barcaças ao longo da costa do Índico, passando por portos na costa norte de Moçambique (Mocímboa da Praia e Pemba são indicados por agências de combate ao crime internacional como sendo desses portos), seguindo depois para a África do Sul e Europa. Este tráfico ganhou peso a partir de meados dos anos 1990, com Pemba a ser um ponto de passagem do produto, estimando-se fluxos anuais de 10 a 40 toneladas desde 1995, deixando em mãos locais (na província e em Maputo) cerca de 100 milhões de dólares por ano. Por seu turno, o tráfico de cocaína iniciou-se na década passada, via aérea Brasil-Durban e Maputo, seguindo por terra para Pemba, Zanzibar e Dar-Es-Salam e, depois, para a Europa. Há ainda a referir, de acordo com Interpol e polícias locais, a preponderância que, na África oriental, o tráfico de metanfetaminas tem vindo a ganhar.

Este tráfico de recursos transportáveis ou de drogas não está na origem da guerra e não precisou dela para acontecer. Porém, nada garante que esta situação não possa mudar com o tempo, como demonstra a experiência de outros conflitos violentos cujo financiamento decorre da pilhagem de recursos transportáveis e vendáveis. Ou seja, o prolongamento da guerra em Cabo Delgado pode transformá-la em ações de banditismo financiado pela pilhagem de recursos e pelo envolvimento ou pela cobrança de taxas pelos terroristas aos próprios traficantes.

Não sendo a pilhagem de recursos e o contrabando responsáveis pela guerra, podem vir, porém, a financiá-la. Tal dependerá, não somente da evolução da situação militar, mas também da governação e da satisfação gradual de expectativas da população de Cabo Delgado e de Moçambique com os rendimentos expectáveis da exploração dos mesmos, com destaque ao gás.

Sobre as causas da guerra

Face aos dados e argumentos apresentados, quais são afinal as causas da guerra em Cabo Delgado? Existem, regra geral, duas abordagens diferentes. Uma que atribui a guerra a uma revolta popular contra abusos de poder e falta de expectativas de melhoria da vida da população – por outras palavras, uma guerra contra o governo. Uma outra perspetiva é a de que a guerra se segue à eclosão de uma revolta jihadista islâmica de conotações salafitas, protagonizada por moçambicanos radicalizados na Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Qatar e outros países em África que vivem conflitos similares e que, em ligação com tanzanianos seguidores da mesma ideologia, iniciam ações violentas em 2017 e, mais tarde, em 2019, já em colusão com o Estado Islâmico, a transformam numa guerra jihadista. Existe ainda uma terceira interpretação, mais ideológica, que procura ligar as causas da guerra à descoberta de gás e à exploração de riquezas naturais – rubis e madeiras preciosas, para além de recursos provenientes do tráfico de drogas, como vimos anteriormente.

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Centenas de milhares de deslocados dependem do apoio alimentar de instituições de cariz humanitário

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Na verdade, a má governação e o subdesenvolvimento são fatores propícios a ressentimentos contra o poder e podem alimentar o recrutamento de jovens sem melhores expectativas de vida – o que está a acontecer, e não só, em Cabo Delgado. Porém, a eclosão da guerra não é económica ou social, é ideológica e civilizacional, e isso está comprovado pelo que os próprios protagonistas afirmam e praticam.

E aqui convém ter presente que o que se passa em Cabo Delgado se assemelha ao que se passa noutras zonas de África, principalmente desde que o fim do Estado líbio e a derrota das primaveras árabes levou ao surgimento, nuns casos, recrudescimento noutros, de guerras no grande Sahel e em países da África subsaariana. E convém, igualmente, ter presente que a esmagadora maioria dos países e comunidades muçulmanas consideram a atuação destes grupos como anti-islâmica, rejeitando, por isso, a qualificação hihadismo radical ou jihadismo islâmico, dado a Jihad ser, para a maioria, uma luta interior e não contra o outro e o islão não defender a conversão pela força. Do ponto de vista teológico existe, porém, uma aproximação entre o que estes grupos defendem e o que o salafismo defende do ponto de vista de práticas religiosas e de comportamentos sociais. Porém, o ponto de rutura entre estas versões do salafismo – que levou à condenação generalizada no mundo islâmico destes grupos terroristas — está na prática da força e da violência indiscriminada contra a população. Nesse sentido, estes grupos, apesar das afinidades teológicas ao salafismo oficial de alguns países árabes, são, por estes, considerados como anti-islâmicos e terroristas.

A guerra que grassa em Cabo Delgado não é contra o governo ou a má-governação, é contra o Estado — e, particularmente, contra o Estado laico.

Em suma, a guerra em Cabo Delgado visa a imposição pela força de comportamentos sociais (e religiosos) de inspiração salafita e é protagonizada por moçambicanos radicalizados apoiados por tanzanianos, desde o seu início. Esta revolta, que começa por ser contra o Islão tradicional e sufi em Moçambique, transforma-se numa guerra contra o Estado e a população, que resiste às normativas definidas pelos terroristas. Esta transformação de conflito em guerra ocorre em finais de 2019, com o movimento já afiliado ao Estado Islâmico, com um maior envolvimento e participação de combatentes estrangeiros, tanzanianos, ugandeses, quenianos, somalis, sudaneses e outros (no ataque a Palma, a 24 de março, houve a presença de sul-africanos), com treino militar e apoios internacionais de grupos e interesses ligados ao Estado Islâmico. A revolta inicial transforma-se, assim, numa guerra ideológica, civilizacional e terrorista contra a população, muçulmana ou cristã.

Esta caraterização não elimina a responsabilidade do governo em relação à prática de abusos do poder, a favorecimentos na distribuição de terras ou riquezas minerais, a comportamentos contra o jornalismo independente ou à inação (por alguns considerada cumplicidade) contra algum tipo de banditismo urbano. Mas a guerra que grassa em Cabo Delgado não é contra o governo ou a má-governação, é contra o Estado — e, particularmente, contra o Estado laico.

Que papel para os atores externos?

A evidência demonstra que o Estado moçambicano não tem condições para enfrentar a guerra com as forças que neste momento tem e que contaram até recentemente com o apoio da empresa de segurança privada Dick Advisory Group. Apesar da intenção proclamada de ser capaz de o fazer com algum apoio em termos de formação e logística, o ataque a Palma deverá ter constituído o exemplo que faltava para mostrar o contrário.

Porém, verdade seja dita que a experiência de envolvimento externo da França, dos EUA e de exércitos regulares de países coligados não conseguiu parar as guerras que grassam no Mali, no nordeste da Nigéria, na Somália, na República Centro-Africana ou no nordeste do Congo. Até agora, a única experiência de ação militar bem sucedida foi dada pelo exército queniano que, em 2012, terminou com uma sublevação do mesmo tipo – diga-se de passagem que uma das consequências desta “vitória militar” foi que os seguidores do clérigo salafita morto nesse ano, Rogo Muhammad, são os mesmos que operam no sul da Tanzânia e que têm influência no norte de Moçambique.

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As aldeias vão sendo invadidas, pilhadas e destruídas, sem que polícia ou exército consigam conter a violência de forma eficaz

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Em termos mais específicos, o essencial do combate é da responsabilidade das forças armadas e de segurança do Estado moçambicano. Tal como é da responsabilidade do governo moçambicano parar de hostilizar ou ignorar os media, movimentos da sociedade civil, partidária ou religiosa, e ser capaz de mobilizar o conjunto da comunidade moçambicana,  para apoio aos concidadãos em Cabo Delgado e para neutralizar o alastramento de células terroristas, por enquanto incipientes e “adormecidas”, a outras zonas do território e eventuais ligações com países vizinhos – desde logo, o Maláui e a África do Sul.

Porém, o governo moçambicano só terá a ganhar em aceitar (e pedir) o apoio internacional no domínio militar. Mais concretamente, em termos do aconselhamento de operações, do fornecimento de armamento e meios de vigilância (e sua operacionalização), da logística e da formação de unidades especializadas em contraguerrilha. Mais ainda, o governo deveria procurar um maior envolvimento de apoio da França, da África do Sul e dos EUA (entre outros países) para a vigilância aérea (incluindo drones) e marítima da costa do Oceano Índico, para estancar fornecimentos ou deslocações de terroristas.

O apoio, em terra, às forças moçambicanas por tropas estrangeiras especializadas em operações contraterroristas poderá vir a acontecer, em função do evoluir da situação. Com ou sem uma intervenção externa, o que se configura quiçá mais importante é uma ação diplomática regional e internacional junto ao governo tanzaniano, para que este país controle (e seja apoiado para tal, caso necessário) com maior eficácia a movimentação dos terroristas no interior do seu território, sob pena de as ações em território moçambicano não surtirem efeito. A ligação orgânica transfronteiriça entre terroristas, que permite a entrada e saída de combatentes e o respetivo reabastecimento, tem de ser objeto de ação coordenada entre os dois países e de apoio diplomático forte dos respetivos parceiros.

Por fim, a União Europeia deveria assumir uma posição mais proativa e rápida no apoio aos deslocados internos e a situações de fome, subnutrição e acolhimento em geral. E, neste campo, Portugal tem um papel central, dada a sua posição neste semestre como Presidente do Conselho da UE. Neste campo, as considerações políticas são secundárias, face às realidades humanitárias — e a ajuda que a Europa pode dar está muito além do que o que tem feito.

Nota: fontes que o autor utilizou para escrever este texto não são aqui citadas por motivos de precaução para com alguns dos autores; elas provêm de estudos feitos por investigadores moçambicanos, de informações captadas em órgãos de comunicação e relatadas por jornalistas e residentes em Moçambique e em Cabo Delgado e de obras publicadas por autores que estudam a evolução do conflito.

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