895kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Caetano Veloso Lounging
i

Caetano Veloso lançou o movimento Tropicalismo

Bettmann Archive

Caetano Veloso lançou o movimento Tropicalismo

Bettmann Archive

Caetano: um doce bárbaro com 80 anos

Se nestas oito décadas não o tivéssemos ouvido, as mesmas oito teriam sido outra coisa qualquer. Porque o mundo é admirável, mas não tão admirável até ter sido cantado por Caetano Veloso.

    Índice

    Índice

Em 1997, Caetano Veloso lançou um disco chamado Livro e um livro que podia ter-se chamado Disco, tanta foi a dedicação do músico brasileiro à arte de compor, mas que acabou por intitular-se Verdade Tropical, numa referência ao movimento que o tornou popular, o Tropicalismo, ao lado de Tom Zé, Gilberto Gil e muitos outros.

A páginas tantas de Verdade Tropical, surge a primeira referência às futuras amizades que viriam a definir o futuro de Caetano: “Caetano, venha ver o preto que você gosta”, dizia dona Canô ao filho, e o filho (o próprio Caetano) anuía e sentava-se à frente da televisão, em cujo ecrã surgia Gilberto Gil. Caetano, que faz hoje 80 anos, leva uma vida disto: citar ou homenagear aqueles que admira nas letras das canções ou na sua própria biografia – dizem que não há génios humildes, e certamente Caetano tem o seu lado de diva, mas há pelo menos génios gratos pelo génio dos outros, génios que se espantam com o mundo e que não acham que este se reduz ao seu umbigo ou à sua garganta. De todos os génios que o mundo conheceu, Caetano será talvez o génio mais agradecido pelo génio dos outros.

A capa de "Verdade Tropical", na edição da Companhia das Letras

É importante regressar a Verdade Tropical porque, mesmo que Caetano tenha acrescentado ou retirado um ponto a esta ou àquela história, é ali que ficamos a conhecer como Caetano olha para a sua infância, para as suas parcerias musicais, para a Bahia onde cresceu, para a infinita cultura brasileira, para o Brasil, para a América que o fascinava – enfim, ficamos a conhecer como Caetano olhava para o mundo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Não ficamos, no entanto, a conhecer como Caetano conheceu Paula Lavigne, sua ex e atual mulher, que mesmo durante o período em que estiveram separados continuou a ser a empresária dele. E não ficamos a saber porque Lavigne contou esses detalhes numa entrevista à revista Playboy, o que provocou um escândalo de tal monta que a levou a exigir a Caetano que retirasse do livro as referências à intimidade do casal.

Caetano Veloso and Maria Bethania in concert The Brazilian brothers Veloso-Bethania in a concert during Saint Isidro Feasts

Certamente dona Canô não imaginaria nada disto há 80 anos, quando deu à luz o quinto filho; mas alguma coisa musical haveria nos genes da família porque dois filhos mais tarde nasceria Maria Bethânia

Cover/Getty Images

O que está em causa, à luz da lei atual, é um crime de pedofilia: Paula confessou ter perdido a virgindade com Caetano, quando ela tinha 13 anos e ele 40. A confissão foi feita no período em que ambos estavam divorciados e houve movimentos cívicos a querer levar Caetano a tribunal – mas à época dos acontecimentos não havia leis que punissem este tipo de situação, pelo que Caetano nunca sofreu qualquer tipo de acusação.

Este é apenas um dos muitos escândalos que marcaram a carreira de Caetano (embora o único de cariz sexual), a maior parte dos quais culturais e políticos – a sua aparição na Música Popular Brasileira foi uma revolução que abalou os valores conservadores da cultura da época (e atiçou a censura); a sua posição sobre a ditadura brasileira valeu-lhe o exílio, que ele considera o período mais difícil da sua vida.

Coração de Caetano é coração vagabundo

Certamente dona Canô não imaginaria nada disto há 80 anos, quando deu à luz o quinto filho; mas alguma coisa musical haveria nos genes da família porque dois filhos mais tarde nasceria Maria Bethânia, a mais nova dos sete irmãos de dona Canô com Seu Zezinho. A Bahia ainda não era a entidade mítica em que se tornou mais tarde na obra de Caetano – Santo Amaro, onde viviam, era uma terra pequena, rural, de escassa sofisticação.

Mas às vezes a sofisticação não está no que nos rodeia, mas dentro de nós – ou, no caso de Caetano, nos ouvidos: aos 17 anos ouviu “Chega de Saudade”, a canção e álbum de João Gilberto, descobriu a bossa-nova e, com ela, todo um novo mundo, uma forma de fazer canções que desconhecia. A sua voracidade não ficou por aí: mais tarde absorveria o rock que vinha de Inglaterra e dos Estados Unidos com a ferocidade dos devotos, mas um devoto que só sabe fazer as coisas à sua maneira – a génese do Tropicalismo é essa: ir buscar a cultura baixa e esquecida do Brasil e misturá-la com a pop estrangeira.

A obra de Caetano, seja em single ou LP, seja cantada por si ou por outros, é tão vasta e admirável que por vezes parece que ele conseguiu escrever uma canção para homenagear tudo o que de belo há no mundo: da beleza concreta de São Paulo à Baía da Guanabara, dos Mutantes a João Gilberto, do pagode ao camarão ensopadinho com xuxu.

Mas antes do Tropicalismo houve o primeiro êxito – pela voz da irmã, que gravou “Sol Negro”, uma extraordinária canção e uma das primeiras das quais Caetano se orgulhou. Pela vida fora Caetano faria muito dinheiro a compor para outros ou a permitir que artistas mais populares fizessem versões de canções suas. Na altura, compor para os outros era uma necessidade, uma forma de sobreviver financeiramente, mas também de começar a sua carreira musical, quando ainda ninguém o conhecia.

O seu primeiro êxito em nome próprio seria “Coração vagabundo” (que permanece um clássico muito apreciado), incluído no seu primeiro LP, Domingo, de 1967, a meias com Gal Costa. Nesse mesmo ano, Caetano lançou o seu primeiro e homónimo disco inteiramente a solo, que incluía um trio de canções que antecipou a revolução que vinha aí: “Tropicália” diz ao que vem logo no nome, tal como “Soy loco por ti América” – mas foi “Alegria, Alegria” a causar escândalo, com as suas guitarras elétricas; a comoção que a canção causou ao ser apresentada no Festival de Música Popular Brasileira não fez com que Caetano recuasse na sua vertigem revolucionária – antes pelo contrário, fê-lo crer que estava no caminho certo (até porque os músicos da sua geração estavam do seu lado).

Um ano volvido e saía essa obra-prima coletiva que foi Tropicalia ou Panis et Circencis (julho de 1968), o disco que anunciou ao Brasil e ao mundo que a música popular brasileira nunca mais seria a mesma. O facto de ser um disco coletivo (que incluía Tom Zé, Os Mutantes, Gal Costa, Nara Leão, Gilberto Gil ou Torquato Neto, entre outros) é importante porque assinalava que o Tropicalismo, que rejeitava a ideia de baixa cultura e fazia questão de ir buscar géneros musicais tidos como baixos e misturá-los com a rock, a pop e o sinfonismo, não era uma ideia solta de um artista, mas um movimento, uma forma de olhar o mundo partilhada por toda uma geração.

Photo of Gilberto GIL and Caetano VELOSO

Uma das muitas ocasiões em que Caetano Veloso dividiu o palco com Gilberto Gil, provavelmente uma das parcerias mais frutuosas da história da música popular brasileira

Redferns

O que levou a mais um escândalo: durante a apresentação de “É Proibido Proibir”, numa eliminatória do 3.º Festival Internacional da Canção da TV Globo, Caetano – que escrevera o tema e se fazia acompanhar pelos Mutantes, reagiu às vaias do público e do júri improvisando um discurso em que dizia “Vocês não estão entendendo nada!”, frase que ficou para a história da MPB.

1968 é, portanto, um ano marcante na vida de Caetano e é-o mais ainda porque no final do ano ele e Gilberto seriam presos, o que não foi propriamente surpreendente, tendo em conta as posições de esquerda de ambos e o facto de ambos já terem visto várias canções suas serem censuradas (não no sentido atual de “cancelado”, mas verdadeiramente impedidas de passar na rádio). Um par de meses depois o par seria solto, mas a vida no Brasil tornar-se-ia impossível – em 1969 Caetano, Gil e as respetivas mulheres aterravam em Londres (onde viriam a conhecer José Afonso, na gravação de um disco do cantor português).

“Com fé em Deus, eu não vou morrer tão cedo”

Uma possível definição de ironia é o disco que mais se odeia da própria discografia tornar-se, durante anos, o mais vendido (o que não é o mesmo que dizer que as suas canções são as mais populares da discografia de Caetano). Foi o que aconteceu com Transa, de 1971: cantado em português e inglês, misturava baião e forró com blues e reggae – e o seu som rústico sofisticado era e é uma bomba, uma obra-prima, tanto nos ritmos escolhidos como nas melodias como no delicado equilíbrio entre melancolia, raiva e alegria de estar vivo: “Nine out of ten movie stars make me cry / I’m alive”, cantava Caetano em “Nine Out of Ten”, uma das mais míticas canções de Transa.

A entrada nos anos 80 vê Caetano tornar-se uma estrela, em particular quando edita Totalmente Demais, delicioso disco ao vivo, de 1985; é nesta altura que Caetano entra na sua fase clássica, num suceder de obras-primas, uma sequência imbatível em que Caetano combina géneros rurais com técnicas sofisticadas de arranjos ou com o rock, entregando grande canção atrás de grande canção atrás de grande canção.

Caetano nunca tocou Transa na íntegra ao vivo e só muito recentemente conseguiu tocar uma ou outra faixa do disco em palco – durante anos recusou-se mesmo a falar do disco, assinalando-o como o disco que menos apreciava na sua discografia; mas é muito possível que essa tenha sido uma reação a ver um disco seu tornar-se (ao longo dos anos) um êxito no seu Brasil natal, quando o disco, para ele, significava falta de liberdade.

Esta é a fase mais experimental de Caetano, cujo expoente máximo é Araçá Azul (de 1973), um disco em que praticamente não existe aquela estrutura (verso-ponte-refrão) a que vulgarmente chamamos canção. O descalabro comercial foi de tal ordem que o disco foi retirado de circulação – o tempo, contudo, tornou-o numa peça de coleção, muito à conta da extraordinária faixa homónima com que o disco fecha: “Araçá Azul” dura 1m20 de absoluta perfeição e é o mais próximo que os homens alguma vez estiveram de Deus, e quem diz isto é um não-crente:

“É sonho-segredo
Não é segredo
Araçá azul fica sendo
O nome mais belo do medo

Com fé em Deus
Eu não vou morrer tão cedo

Araçá azul é brinquedo”

Cateano voltou ao Brasil em 1972, dando início a uma época confusa: apesar de todos os discos dessa década e do início da década de 80 terem grandes temas, eram um pouco desequilibrados e por vezes sentia-se uma certa falta de fio condutor; mas isto não invalida que nesse período Caetano não tenha escrito uma série de canções extraordinárias, certamente das melhores da sua carreira, e que foram êxitos na sua voz ou de outros – “Tigresa”, por exemplo, começou por se tornar popular na voz de Gal Costa, antes de o próprio Caetano (entre muitas outras pessoas) a regravar; “Um índio” é dessa época, a extraordinária “A Tua presença morena” é dessa época, “Cajuína” é dessa época e ainda hoje toda a gente no Brasil as conhece.

Prenda dele, prenda nossa

A entrada nos anos 80 vê Caetano tornar-se uma estrela, em particular quando edita Totalmente Demais, delicioso disco ao vivo, de 1985; é nesta altura que Caetano entra na sua fase clássica, num suceder de obras-primas só possível em alguém no topo da forma: Circuladô (de 1991), Circuladô Vivo (o ao vivo de Circuladô, de 1992), Tropicália 2 (de 1993, a meias com Gilberto Gil), Fina Estampa (de 1994 e o correspondente ao vivo, de 1995), Livro (de 1997), Prenda Minha, o admirável ao vivo de 1998, repleto de canções desconhecidas de outros e novas e velhas canções suas, sumptuosamente arranjadas, e Noites do Norte, de 2000, constituem uma sequência imbatível em que Caetano combina géneros rurais com técnicas sofisticadas de arranjos ou com o rock, entregando grande canção atrás de grande canção atrás de grande canção.

Caetano Veloso no palco do Coliseu dos Recreios, onde atuou ao vivo em setembro de 2021

KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

De certa maneira, o grande Caetano acaba aí; houve novas polémicas, em particular à volta da sexualidade das letras de (2006), um disco mais pop, colaborações que merecem palmas (como a sua produção para João, Voz e Violão, disco de regresso de João Gilberto e, como cantou Caetano, “melhor que silêncio só João”), houve inúmeros prémios (incluindo um Grammy e mais outras duas nomeações, isto para não falar de vários Grammys Latinos), variadíssimas causas, mas o que não houve mais foi um disco imbatível, uma obra-prima de uma ponta à outra.

Mas também não é necessário: a obra de Caetano, seja em single ou LP, seja cantada por si ou por outros, é tão vasta e admirável que por vezes parece que ele conseguiu escrever uma canção para homenagear tudo o que de belo há no mundo: da beleza concreta de São Paulo à Baía da Guanabara, dos Mutantes a João Gilberto, do pagode ao camarão ensopadinho com xuxu, nada ficou de fora, nem os géneros menores da música brasileira, nem o cinema brasileiro (“E o samba quis dizer/ Eu sou o cinema”, cantava, a meias com Gilberto Gil, na genialíssima “Cinema Novo”, de Tropicália 2), nem as comidas do Brasil, nem Gaudí, nem Lévy-Strauss, nem João, sempre João, melhor que silêncio só João.

E, se me permitem a heresia, melhor que João só as visões das coisas grandes e pequenas que há no mundo e saíram mais belas da garganta de Caetano. Porque o mundo é admirável, mas nada é admirável até ter sido cantado por Caetano.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.