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O pós-guerra do título “podem ser guerras de sexos, guerras internas”, o que faz sentido, se tivermos em conta que quase tudo em Úria é sempre interior – mais que observar o movimento do mundo ele observa o movimento das entranhas
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O pós-guerra do título “podem ser guerras de sexos, guerras internas”, o que faz sentido, se tivermos em conta que quase tudo em Úria é sempre interior – mais que observar o movimento do mundo ele observa o movimento das entranhas

O pós-guerra do título “podem ser guerras de sexos, guerras internas”, o que faz sentido, se tivermos em conta que quase tudo em Úria é sempre interior – mais que observar o movimento do mundo ele observa o movimento das entranhas

"Canções do Pós-Guerra": o disco da liberdade para Samuel Úria

Parece simples, mas às vezes é uma guerra danada um tipo ser o que é, rebelde por não ser revolucionário. Com as novas canções, Samuel Úria conseguiu-o, e agora apresenta-as ao vivo.

Onze anos depois de se estrear nas edições oficiais de discos, com Nem Lhe Tocava, deixando para trás quase uma década de discos auto-editados, Samuel Úria encontra-se numa posição curiosa: é conhecido de muitos, mas está longe de ser um sucesso de vendas; tem o respeito dos pares, ao ponto de “sentir que sou consensual”, mas por outro lado ser consensual “é pior que ser um alvo a abater”. Chegou, desconfia, àquela fase em que o que quer que faça “já não aquece nem arrefece, nem se diz muito mal nem muito bem, porque já não és relevante no zeitgeist”. Isto, diga-se, é Samuel Úria em discurso direto – e de bom humor, na altura em que edita novo disco, Canções do Pós-Guerra, conjunto de canções que agora apresenta ao vivo, esta terça, dia 6, em Lisboa (Teatro Tivoli BBVA), quarta-feira, dia 7, no Porto (Casa da Música).

Em compensação, lembra, ele tem uma “liberdade imensa” para fazer tudo o que lhe apetece. Numa vida prévia, em que lançava discos em edições semi-clandestinas através da editora FlorCaveira, Úria granjeou reputação como baladeiro alternativo – mas na altura de gravar o seu primeiro disco, Nem Lhe Tocava, de 2009, o que ele fez foi “fazer um disco sem nada de alternativo, até parodiei a noção que havia de mim sobre ser baladeiro, logo na primeira música. Depois pus instrumentos supostamente foleiros, como acordeão, numa canção”.

[ouça “Canções do Pós-Guerra” e veja os vídeos das canções aqui:]

A ideia era “rejeitar uma aura messiânica” que começou a haver sobre a malta da Flor Caveira – ele, Tiago Guillul e B Fachada, entre outros, editaram pela Flor Caveira na mesma altura, uma altura em que a imprensa os descobriu e os tornou assunto de capa de jornal. “A minha resposta a isso foi fazer um disco não inovador. E pode ter sido uma deceção para quem esperava que eu fizesse outra coisa, mas as canções sobreviveram. Há canções que ficaram para sempre e ainda hoje me pedem em concerto”.

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Num mundo de coisas que não duram, de modas que nascem já com o prazo de expiração ao virar da esquina, num mundo em que todos os dias milhares de pessoas repetem em uníssono que temos de ser disruptivos e romper com o passado, Úria tomou uma decisão drástica: não ser um inovador, ser um autor clássico. E essa “rebeldia de não ser revolucionário tirou pressão para sempre” na forma como Úria encara os discos. Porque aprendeu que “marimbar-me para as expectativas pode ser a receita certa para eu não ficar acabrunhado em relação a fazer um disco. Não penso no público, faço o que quero”.

A capa de "Canções do Pós-Guerra", o novo álbum de Samuel Úria (Valentim de Carvalho)

O discurso não se reduz ao discurso, equivale à prática: à segunda canção do disco, uma bonita balada acústica chamada “Cedo” (o tipo de balada que teimamos em qualificar como “uriana”, mesmo que ele não escreva tantas baladas), segue-se “Fica Aquém”, um blues disfuncional que muito deve a Tom Waits: abre com um piano maligno e é servida por percussões sombrias, com uma linda melodia a oferecer contra-ponto ao negrume, antes de os coros a encherem de luz – os coros estão por todo o lado em Canções do Pós-Guerra.

A expressão “Pós-Guerra” pode levar-nos a pensar que Úria está a pensar no mundo que virá depois da atual polarização descambar na quase destruição da humanidade, ou então que se dedicou a fazer canções sobre a Cortina de Ferro, a expansão da indústria americana na década de 50, mas não, isto não é Coca-Cola vs KGB, estas guerras, a avaliar pelas palavras, são de outra ordem, mais interior.

"Tendo a achar – e isto é o meu lado romântico e preguiçoso – que quando estou a esvaziar o que tenho cá dentro e estou a ser muito sincero, as pessoas pelo menos entendem que existe essa sinceridade. E tenho a felicidade de ter um público que não desiste à primeira e quer um consumo que não é imediato.”

O real por vezes tende a ser mais simples que os conceitos que criamos para o explicar; e Úria confessa que a primeira guerra “que se manifesta no espírito do disco é uma guerra conceptual que” ele tem com o seu manager “quando ele diz ‘Então agora como é que vamos fazer?’”. “Eu acho que as discografias não têm de ser um passo à frente a seguir a outro passo à frente e não quis fazer um disco que estivesse à frente do anterior. De modo que quis ganhar essa guerra com um recuo. Quis eliminar os trejeitos pop do meu anterior disco [Carga de Ombro, de 2016], e por isso é que muita da eletrónica [de Carga de Ombro] não teve seguimento. Quis anular o disco anterior. Essa terá sido a primeira guerra”.

Mas como guerra enquanto conceito dá “para albergar uma data de coisas”, o pós-guerra do título “podem ser guerras de sexos, guerras internas”, o que faz sentido, se tivermos em conta que quase tudo em Úria é sempre interior – mais que observar o movimento do mundo ele observa o movimento das entranhas.

Na altura em que compunha o disco ele andava a ler poetas do pós-guerra e notou que na poesia que lia “nem havia o lado de reconstrução do mundo nem o otimismo dos boomers, até era muito introspetivo”. Esses poetas eram Elizabeth Bishop, da qual ficou fascinado, Larkin, que ainda conhecia mal, Ted Hughes. Úria também se apercebeu que o poeta do pós-guerra que mais leu (e ouviu) era Leonard Cohen e que Cohen “vai buscar muito aos salmos do rei David, que são literalmente bélicos, mas ele adapta-os e a temática mais presente é o arrependimento, a culpa e o perdão”.

"Marimbar-me para as expectativas pode ser a receita certa para eu não ficar acabrunhado em relação a fazer um disco"

Arrependimento, culpa e perdão são temas obrigatórios para um católico e estão presentes por toda a obra de Úria – nem preciso de reler as letras para o saber: sou amigo de tanta gente que está fascinada com as letras dele e que as escalpeliza como que à procura de uma chave para a sabedoria, vejo, nos concertos, tanta gente a cantar com ardor as letras, que é mais que óbvio que algo na sua escrita encantou a aldeia de gauleses que são os seus fãs.

Ele concorda: “Tenho tido a felicidade de uma fação do público valorizar a minha escrita e darem uma atenção às minhas letras que nem sempre é comum. O facto de eu não ser explícito faz com que as pessoas se apoderem dos significados. Então encontram na letra coisas que lhes são caras. Também tendo a achar – e isto é o meu lado romântico e preguiçoso – que quando estou a esvaziar o que tenho cá dentro e estou a ser muito sincero, as pessoas pelo menos entendem que existe essa sinceridade. E tenho a felicidade de ter um público que não desiste à primeira e quer um consumo que não é imediato”.

Se o retrato do seu público estiver correto, então é de esperar que haja um orgasmo coletivo daqui a um par de meses, quando o disco (que não é obrigatoriamente fácil) tiver crescido o suficiente dentro dos fãs – que dizer de um disco que passa dos coros monumentais de “As Traves” (estupenda canção, que podia ser uma daquelas canções dos 60s que Scorsese coloca nos falsos travellings que monta quando corpos estão a ser despejados em valas) para o folclore delicado de “A Menina”? Que dizer de um disco que passa da contenção de “Guerra e Paz” para a pop avariada de “A Contenção”, com um piano repetitivo a martelar? Que é um disco cheio de canções que precisam de tempo para revelarem uma miríade de pormenores deliciosos – um grower, como se costuma dizer. Um grower cheio de coros, menos gospel do que é costume, mais chanson.

"Canções do Pós-Guerra" é um disco estranho, fora de tempo, que não tomou banho nem escovou os dentes – e é, talvez, o disco em que Samuel Úria está mais próximo de Sami, a alcunha pela qual os amigos o tratam.

O que não invalida que, na prática, este seja o disco mais folky de Úria, o disco em que o que o passado tem de sujo e impuro mais está à vista. Ele quis isso, quis “recorrer a esse lado folky, porque assenta em princípios muito simples mas depois tem se conseguir algum universalismo, algo de clássico nas melodias, para que a canção sobreviva ao barro inicial”. A referência a Tom Waits não é, portanto, inusitada: “Acredito muito no que ele faz desde os anos 80, algo muito bluesy mas com muitas camadas, muito bluesy. E uma das coisas de que mais gosto dele é a espacialidade que ele dá às canções. Quando vamos para estúdio, há um microfone em cada coisa – o Waits não faz isso, apanha a reverberação da bateria. Tentei fazer algo semelhante, gravando tanto as peles como as paredes”.

O que retira ao disco alguma limpeza, mas confere-lhe uma rugosidade, o sebo das coisas que já cá andam há muito. Canções do Pós-Guerra é um disco de agora que parece ter sido feito há muito tempo, parece ter passado por uma trabalheira danada para conseguir finalmente chegar até nós. Entre as baladas e a distorção do passado da folk e do blues, Canções do Pós-Guerra é um disco estranho, fora de tempo, que não tomou banho nem escovou os dentes – e é, talvez, o disco em que Samuel Úria está mais próximo de Sami (a alcunha pela qual os amigos o tratam). Parece simples, mas às vezes é uma guerra danada um tipo ser o que é.

Senhores ouvintes, este é Sami. Considerem-se apresentados.

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