Acabado de ser reeleito presidente do PS, e dois dias depois do congresso em que António Costa anunciou uma série de medidas de olhos postos no Orçamento, Carlos César recebeu o Observador no Salão Nobre do Largo do Rato para deixar avisos à navegação. Em plena negociação orçamental, César alerta: a estabilidade política não pode fazer-se à custa da estabilidade económica e social e é preciso respeitar o papel da concertação social. E como, no entender do socialista, este Orçamento vai já definir o “perfil” do próximo, as “preocupações” que assume também se estendem por estes dois anos.
Sobre o tema que dominou os bastidores, mas não o palco do congresso, assegura que as conversas à volta da sucessão no PS são “fantasiosas” porque Costa deve mesmo ficar para lá de 2023 — “o que está bem, em geral, não se muda”. E o que está bem também se deverá à falta de comparência da oposição — para Rui Rio e o PSD, César reserva ironias e ataques em série, considerando que o partido atravessa uma “crise de identidade”, com uma “liderança errática” e que não recusa “amancebar-se” com o Chega. Marcelo, avisa, deve ficar como está e como esteve no primeiro mandato: em “colaboração profunda” com o Governo.
[Veja aqui os melhores momentos da entrevista a Carlos César:]
Qual foi a ideia de suscitar nesta altura, neste congresso, um debate sobre a sucessão a António Costa no partido?
Foi uma ideia muito desenvolvida pelos jornalistas, mas que não teve expressão do ponto de vista do Congresso. Na verdade, naqueles dois dias de trabalho ouvi mais jornalistas a falar de sucessão do que delegados.
Não foram os jornalistas mas o presidente do partido quem escolheu os nomes que se sentaram na Mesa do Congresso, entre os quais aqueles de que se fala mais.
Sim, foi escolhido por mim em articulação com o secretário-geral. Mas a mesa do Congresso são 20 pessoas, umas escolhidas pela sua notoriedade, outras pela sua posição institucional e inerência de cargos e outras ainda porque eram importantes do ponto de vista da organização e da condução dos trabalhos.
E no caso destas quatro qual foi o critério?
Nesse caso, misturou-se a notoriedade com as respetivas posições institucionais. O que disse sobre essa matéria é evidente: a Mesa é evidentemente uma fotografia e as fotografias são interpretadas de acordo com aquilo que as pessoas têm maior sensibilidade para apurar. No meu caso foi dar notoriedade a quem já a tem e de transpô-la para a imagem do Congresso.
Quando colocou naqueles lugares Marta Temido é porque concorda com António Costa e também ela, daqui a dois anos, poderá ser uma sucessora?
Por uma razão que, afinal, se apurou como adequada. Marta Temido tem hoje uma grande notoriedade, liderou um processo — e continua a fazê-lo — que tem a ver com a condução da pandemia, do ponto de vista das infraestruturas de Saúde e dos cuidados preventivos associados. É natural que quiséssemos dar uma ênfase àquela que foi a líder, até agora, desse processo.
Concorda com António Costa quando ele diz que também Marta Temido tem condições para daqui a dois anos entrar nesse leque de opções para a liderança do PS?
Tem ela como naturalmente uma imensidão de pessoas. A ironia do secretário-geral foi condizente com a inutilidade da pergunta. Não vejo grande coisa nisso. Esta questão da sucessão não tem nexo e é um pouco absurda. Não é algo que ocupe sequer uma parte significativa dos dirigentes e muito menos dos militantes do PS, a nossa concentração é nas eleições autárquicas e, por outro lado, no controlo deste processo da saúde pública e da recuperação da economia e do equilíbrio e da tranquilidade social que são as tarefas mais imediatas.
Não acha que esta escolha acabou por alimentar essa conversa durante o Congresso?
Diz-se muito que o secretário-geral disse que decidiria em 2023 sobre a sua recandidatura. Mas é evidente que é assim. Estamos agora em eleições autárquicas e eu não conheço nenhum candidato a uma Câmara que se esteja a candidatar a dois mandatos. Estão a candidatar-se a um e depois verão se são de novo candidatos ao mandato seguinte. Portanto, é absurdo que o secretário-geral do PS que acabou de ser eleito tenha de dizer quantos mandatos pretende estar no futuro e a quantos se irá candidatar. Há à volta disto uma construção sempre muito fantasiosa que se mediatiza com maior facilidade do que se anuncia uma medida concreta para uma determinada área de intervenção que cabe ao Governo ou ao PS fazer.
Esta concentração em nomes específicos não condiciona depois a escolha dos militantes PS, fazendo com que se pareça que há aqui uma sucessão quase dinástica?
Não há preparação de nomes. A nova geração que emerge no PS emerge de forma natural e em todos os sentidos. São pessoas mais novas, de outra geração, que vão conquistando uma maturidade que os habilita mais tarde, em função do seu desempenho, a poderem ser candidatos a lugares de maior notoriedade no PS. Mas isso ver-se-á no futuro. Tenho até experiência pessoal, nos Açores, de processos de sucessão em que, ao contrário do que se diz, não fui eu que designei o meu sucessor. Acompanhei, em conjunto com alguns membros do PS que tinham essa possibilidade e até aspiração, e na reflexão que fizeram entre si houve um apuramento que levou à candidatura então apresentada.
Mas o momento prepara-se com tempo e não apenas em 2023, certo?
Prepara-se com naturalidade. Esta geração — e não têm de ser necessariamente mais novas do ponto de vista da idade do que o atual secretário-geral, não vejo necessidade absoluta que isso aconteça — e as alternativas que surgirão no seu tempo devido resultarão do percurso que essas pessoas entretanto fizerem. Não sabemos se daqui a três anos alguma dessas pessoas manterá sequer a disponibilidade para a atividade política ou se entretanto não seguiu outro caminho.
No seu caso já vai no seu quarto mandato como presidente do partido, tal como António Costa que é líder há quatro mandatos — quando é que é uma boa altura para sair?
No caso de presidente tenho de confessar que pela natureza do cargo, que é protocolar, supranumerário e supraestrutural, é normalmente atribuído às pessoas com maior antiguidade partidária. Portanto, o meu grande apport curricular nesta matéria é justamente ser militante do PS desde há muito e de ter feito um percurso que é reconhecido.
Em 2005 foi um Governo no PS, em acordo com o PSD, que instituiu a limitação de mandatos para os autarcas e alguns partidos transpuseram essa regra para os seus estatuto e no PS há limitações, por exemplo, para os membros do secretariado. Não era importante dar este sinal?
Nos cargos executivos justifica-se, de facto, que exista limitação de mandatos e sou responsável por isso nos presidentes dos governos regionais, que não existia nos Açores e não existe ainda na Madeira. Os cargos executivos devem ter limitação de mandatos.
E o de secretário-geral do PS? Não provoca uma tentação de eternizar um líder num partido?
Não creio. O secretário-geral tem uma função especial e não de gestão dos assuntos públicos e, de resto, o cargo de primeiro-ministro não é exercido necessariamente pelo secretário geral ou líder de um partido. Em regra é assim que acontece, mas sendo embora chamado para esse efeito, pode o partido chamar outra pessoa para desempenho desse cargo.
Pode acontecer isso em 2023?
Não, não creio. Essa questão, como já se disse, será colocada na devida altura. Mas ninguém tem qualquer expectativa de que o PS não prossiga, do ponto de vista da sua liderança, o seu curso atual.
Há vários socialistas, como Francisco Assis, Fernando Medina e José Luís Carneiro, que vieram dizer que gostavam que António Costa continuasse para lá de 2023. Também é o seu desejo?
Todas as pessoas que estão próximas da gestão atual e atentas aos desenvolvimentos atuais no PS sentem isso. O partido está bem, António Costa tem sido capaz, pela sua liderança e capacidade de gestão interna, de manter o PS unido e de mantê-lo como o maior partido português e com um desempenho ao nível do Governo que é reconhecido pelas portuguesas e os portugueses. Portanto, não se muda, em geral, o que corre bem.
No Congresso disse que o partido não vive numa “paz fria”. Mas o silêncio de Pedro Nuno neste Congresso não mostra isso mesmo?
Não, ele justificou bem isso, não tem de intervir em todas as áreas. No Congresso anterior o Pedro Nuno Santos tinha feito uma intervenção onde teve o cuidado de se diferenciar em alguns aspetos que considerou relevantes, necessidade essa que não observou neste Congresso. Ele é hoje um militante associado aos principais órgãos do PS, é co-gestor da linha política do PS e para além disso é um ministro de grande qualidade responsável por dossiês dificílimos com que o Governo se confronta e que terá a seu cargo investimentos muito vultuosos no âmbito do Plano de Recuperação e de Resiliência. É nisso que ele deve estar concentrado, está bem concentrado nessas áreas e está a ter um desempenho que era o esperado: de um bom ministro e um ministro entusiasta.
Já tem um preferido para essa corrida futura, está visto.
Não, não tenho. Tenho muito boa relação pessoal com Pedro Nuno Santos e conheço-o bem, acho que é um dos militantes jovens mais distintos do PS.
Tem características para ser um bom líder do PS?
Há imensa gente com essas características e seria uma injustiça distinguir um deles.
Então quer dar exemplos de vários para não distinguir apenas um?
Não, não dou exemplos.
O facto de Pedro Nuno Santos já ter trabalho feito junto das estruturas partidárias dá-lhe melhores condições?
Como outros o terão ou até, se assim os militantes acharem mais interessante, outros que não tenham esse passado. A matéria é um pouco egoísta do ponto de vista do interesse público porque, na verdade, as pessoas não querem saber o que é que daqui a não sei quantos anos acontecerá na liderança do PS, mas o que acontecerá no país.
António Costa quando fala nesse futuro tem insistido até que pode ser uma sucessora. Também gostava que fosse uma mulher? Era importante?
Não tenho opinião sobre isso. Sucessor ou sucessora espero que, quando isso acontecer, seja alguém com qualidade e prestígio e faça o PS continuar a ter uma posição preponderante na vida política portuguesa.
Na última legislatura esteve na bancada parlamentar. Ana Catarina Mendes tem feito bem o seu trabalho como sua sucessora?
Não acompanho com grande assiduidade o dia a dia do trabalho parlamentar, mas o desempenho em geral do PS tem sido positivo e para isso contribuem não só os que estão no Governo, como os que estão no Parlamento e até os que estão nas autarquias locais por todo o país. O PS é todo um conjunto de pessoas e de níveis de intervenção, e pode haver num caso melhor ou menor desempenho, mas do ponto de vista global o PS tem procurado corresponder e tem correspondido ao que os portugueses aspiram ter no exercício do poder.
Continua a estar apenas disponível para o cargo que exerce atualmente, o de presidente do PS ou sente falta da experiência executiva? Se for chamado por Costa para o Governo essa disponibilidade muda?
É evidente que o exercício do poder executivo é mais realizador do que o da influência ou da palavra, mas eu já exerci esse poder executivo durante muitos, muitos anos, fui dezasseis anos presidente do Governo Regional.
E sente falta disso?
Não, sinto que isso me deu capacidade e discernimento para poder aconselhar quem me pede conselhos ou aconselhar quem eu gosto de aconselhar.
A sua ideia de futuro é manter-se como está agora, apenas como influenciador?
Com a ideia de cumprir as minhas obrigações como presidente do PS, de ajudar quem pede ajuda ou de aconselhar quem eu acho que necessita de conselhos.
Mas já encerrou a sua carreira política, do ponto de vista de cargos de primeira linha?
A razão pela qual estou a dar esta entrevista é porque não encerrei a minha atividade política. O meu empenhamento cívico não é revogável, em particular no que se refere à atividade política, incluindo a partidária. Estou associado ao PS a que pertenço desde 1974, com o qual partilhei momentos de grande dificuldade, de tenacidade, outros mais confortáveis e realizadores e é esse percurso que continuo a fazer com muito gosto. Sendo útil e ocupando os cargos que, em determinada fase, acho que são úteis ao meu partido e nos quais me sinta confortável.
E no caso da Presidência da República? É uma hipótese?
Não, temos um Presidente da República em exercício e um clima de tranquilidade institucional e ninguém está a pensar nas próximas presidenciais ou, pelo menos, eu não estou a pensar nelas.
O último Presidente da República socialista foi Jorge Sampaio, já foi há algum tempo. O PS arrisca-se a ficar 20 anos fora de Belém. Não é importante preparar esse momento?
Este não é o tempo dessa reflexão. Tenho dito, até em muitas reuniões internas, que a prioridade do PS é fazer com que o país saia tão depressa quanto possível e o melhor possível desta crise que foi demolidora. Atingiu gravemente o equilíbrio das famílias, os seus rendimentos, lesou de forma estrutural o nosso tecido empresarial, que colocou à vista as fragilidades e vulnerabilidade e até a artificialidade do emprego, dos modos de produção, da iliteracia digital, da inadequação das qualificações. Esta crise fez vir ao de cima uma série de insuficiências com que o país continua a viver e, sobretudo atingiu o país quando a sua economia e setor financeiro ainda não tinham recuperado por completo da últimas crise.
No início do ano, nas Presidenciais, disse que Ana Gomes era rude e que era incapaz de votar em alguém assim. Votou em Marcelo Rebelo de Sousa?
Eu aprecio uma parte da intervenção de Ana Gomes, designadamente a sua coragem e arrojo, e também a utilidade da sua intervenção em alguma áreas a que o país necessita de prestar maior atenção. Em todas as envolvências que dizem respeito à fragilidade dos esquemas preventivos face à corrupção e abusos de poder.
Mas mesmo assim não foi suficiente para votar nela. Votou em Marcelo?
Não, não foi suficiente. Votei secreto e isso é uma grande conquista dos portugueses, poderem votar em que entendem sem terem que dar conta disso.
Que avaliação faz do mandato de Marcelo?
Faço uma boa avaliação.
Costuma dizer-se que o segundo mandato é mais livre porque já não há expectativa da reeleição. Tem medo que mude alguma coisa neste segundo mandato?
Depende das circunstâncias e as que temos hoje não mudaram onde mais se justifica a postura que ele teve no primeiro mandato que é de colaboração institucional. De acolhimento do valor da intervenção das oposições, mas de profunda colaboração do Governo e da estabilidade política. Creio que as intervenções do Presidente da República, mesmo quando são discordantes do Governo, são aquelas a que se pede que um Presidente da República tenha atenção. Não vejo que a relação se tenha alterado com valor suficiente para a classificarmos de tendencialmente diferente.
Não houve falta de debate interno no PS sobre Presidenciais? O Congresso foi adiado já para depois dessas eleições e agora Ascenso Simões falou nesta questão, mas pouco mais se discutiu o assunto.
Não creio. A eleição do Presidente é unipessoal, não deve ser transportado para um órgão da Presidência um conceito estritamente partidário, nem um mandato estritamente partidário, por isso é natural que o PS, olhando o perfil do Presidente da República, deseje apenas que esse perfil corresponda a um desempenho com fronteiras largas.
António Costa falou nisso, na intervenção final do Congresso. Teme essa intervenção presidencial mais presente no segundo mandato? É que tem sido uma tentação de alguns Presidentes.
Nem sei se isso se pode dizer no plural. É certo que há um novo mandato e que as condicionante são outras e que o Presidente não pode ser reeleito e tem outra liberdade em relação às instituições que o podem ou não apoiar. Mas os valores a que o Presidente da República se quis associar livre e voluntariamente foi o de manter a estabilidade política, de considerar que isso era fundamental para o país. Se isso era fundamental antes da pandemia, muito mais fundamental é depois da crise que atravessamos e face ao que o Presidente tem chamado a atenção que é que vamos ter ao nosso dispor financiamentos elevadíssimos que temos de executar num espaço de tempo relativamente curto e que é importante que não haja interrupções institucionais que prejudiquem essa execução. O valor da estabilidade é claramente reforçado.
Na sua intervenção no Congresso focou o combate à corrupção e as obrigações de transparência dos decisores políticos e públicos. Isso passa pela regulamentação do lóbi, que está a ser tratada no Parlamento, ou pela declaração que pede Rui Rio para que os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos declarem se pertencem “a organizações ou associações de caráter discreto”, como a maçonaria?
Penso que o máximo da transparência do ponto de vista de registo de interesses é o melhor para a democracia, quer para o próprio decisor, quer para aqueles que o avaliam. Evidentemente, há aqui dois planos: há uma obrigatoriedade normatizada e uma postura pessoal. Ou seja, há um conjunto de declarações de pertença a determinados interesses, ou mesmo organizações, que deve ser do foro da decisão pessoal. E há outro que deve ser plasmado na lei. Não creio que por se ser da Opus Dei ou do Sporting se deva ser obrigado a declará-lo. Não vejo necessidade disso.
É diferente ser da maçonaria e ser do Sporting.
Mas eu gostava, quando defendo um Estado laico, dizer que não sou da Opus Dei. Ou quando falo de futebol, dizer que sou do Sporting, ou que não sou. Isso é uma questão pessoal. Mas creio que é muito importante que se alguém está a decidir, por exemplo, em matéria de política energética, se saiba se é acionista de uma empresa do setor. O que não quer dizer que quem decida sobre essa matéria, mesmo sendo acionista de uma empresa do setor, não o decida de acordo com o interesse público. Mas é importante saber que teve um interesse particular.
Mas quando fala de pessoas que influenciam as decisões está a falar de quem?
Há pessoas que acompanham a atividade política, críticos da atividade política; há pessoas que decidem em matéria judicial sobre questões que têm grande relevância… não creio que essas pessoas devam estar excluídas do conhecimento que a generalidade das pessoas deve ter sobre os seus interesses…
Quando diz que são críticos, que funções são essas?
Estava agora a ocorrer-me jornalistas, mas não estava a falar especificamente deles.
Jornalistas, juízes…?
Sim, todas as atividades profissionais que envolvam um interesse público muito evidente e muito sensível e que sejam decisivos do ponto de vista ou da formação de opinião ou das decisões finais têm toda a vantagem em que seja conhecido o seu núcleo de interesses. Para se perceber se a sua decisão pode ou não ser influenciada. Acho que devemos trabalhar sobre estas matérias sem especial preconceito. Sem devassa da vida privada. É na procura desse equilíbrio, com serenidade, que se deve fazer um trabalho para que a sociedade portuguesa e sobretudo a formação e tomada das decisões seja o mais transparente possível. Temos todos a ganhar com isso.
Isso deve ser feito agora?
Acho importante que tivesse sido feito ontem. Portanto, logo que possa ser feito, deve ser feito.
É uma proposta que o PS já está a trabalhar?
É uma proposta sobre a qual existem várias sensibilidades e várias opiniões, que trespassam os partidos políticos e a generalidade dos observadores. Portanto é preciso um debate sobre essas matérias, porque o grande problema que envolve matérias desta natureza é os seus limites: até onde devemos ir, seja no registo de interesses, seja nas incompatibilidades… Tudo isso faz parte de uma reflexão muito serena e despida de preconceitos.
No início deste ano foi noticiada a existência de uma investigação a si e aos seu filho, no DIAP de Ponta Delgada. Na altura disse não ter conhecimento de nada. Já sabe do que se trata? Foi interrogado?
Não, o que me disseram é que isso tinha sido uma denúncia anónima mas que não tinham especial interesse nessa investigação. Esse é outro dos problemas: da celeridade da Justiça e do sistema…
A questão foi suscitada pela primeira vez em 2017.
Eu, por exemplo, apresentei uma queixa em tribunal contra uma pessoa justamente por uma denúncia que me parece ser essa, uma pessoa que já tinha sido condenada noutro processo idêntico… já lá vão uns anos e os tribunais não se decidem.
O seu antecessor no Governo Regional também diz que “corre uma campanha de descrédito deveras repugnante”. Também vê isso nos Açores, nesta altura?
Vejo isso em geral, por ciclos que têm a ver com o envolvimento das pessoas em cargos com maior ou menor notoriedade. É verdade que isso acontece em todos os lugares. O que é importante é que os organismos de decisão judicial sejam rápidos em todas as circunstâncias. É muito fácil difamar, fica feita a difamação, e depois leva muito tempo a ser reposta a verdade. Quando ainda era adolescente, lembro-me de um juiz ter sido acusado de uma série de irregularidades. Esse juiz deixou de ser juiz e seguiu outra atividade profissional. Ao fim de muitos, muitos anos, esse juiz que andou sempre nas primeiras páginas dos jornais teve uma notícia numa das páginas interiores, e num canto inferior, a dizer que afinal aquilo não tinha razão de ser e tinha sido absolvido. A vida tem isso: os políticos têm de contar com essa desvantagem entre a capacidade difamatória e a reposição da verdade. Isso acontece com todos.
Mas a altura em que esta notícia aparece acha que tem a ver com o ambiente político na região?
Não sei, não posso dizer isso.
Mas acha que a denúncia teve motivação política?
Acho que na atividade política em geral, e isso nota-se nas instituições parlamentares, o diálogo político degradou-se muito. A oratória política, enfim, também se degradou, não só no seu conteúdo como especialmente na forma. Isso é um pouco arrastado pelo ambiente mais negativo das redes sociais — ou até arrasta as redes sociais para esse ambiente mais negativo.
Nos Açores, o Chega retirou a confiança política a um deputado regional que apoia o PSD. Isso acaba com as críticas que o PS fez ao PSD sobre esta solução maioritária nos Açores?
Eles têm dois deputados, um deles ainda é relevante nessas contas…
Mas parece haver ali alguma instabilidade.
O que releva é que quando é necessário tomar grandes decisões, pelos vistos, André Ventura tem de visitar o presidente do Governo regional, que o recebe no palácio de Sant’Ana, que é a sede do Governo, e à saída falam de dois dirigentes partidários.
Vasco Cordeiro dizia há uns meses, em entrevista ao Observador, que o Governo regional era um brinquedo nas mãos de André Ventura. Concorda?
Acho que este Governo dos Açores subsiste porque alguns pequenos partidos, como o Chega, o sustentam e porventura — o porventura não era intencional… — percebo que o que está em causa é que têm a ideia de que não seriam reeleitos se as eleições ocorressem de novo já. Porque os açorianos aspirariam a regressar a uma estabilidade comprovada. E, portanto, tendencialmente, a distribuição partidária nos Açores seria retomada, votando no PS os que acharam que podiam pregar um susto ao PS…
Acha que já estão arrependidos.
Devo dizer que nos Açores o PS teve 41% de votos, além de ter sido vencedor. Mas temos de respeitar que do ponto de vista parlamentar as soluções podem ser alternativas, como já aconteceu no continente.
Vasco Cordeiro avisou no congresso que o apoio do Chega ao PSD nos Açores “pode estar mais perto do que parece” de acontecer no país. Concorda? Os Açores foram um balão de ensaio para os futuros entendimentos de Rio a nível nacional?
Sim, temos esses sinais. Ainda há pouco tempo o presidente dos autarcas sociais-democratas fez uma declaração pública dando conta da intenção de em várias câmaras do país serem feitas coligações dessa natureza, pós-eleitorais.
Mas acha que Rio tem a mesma intenção a nível nacional?
Sabe, é que o doutor Rui Rio é um pouco instável e não é fácil detetar o que ele dirá no dia seguinte. Ele já disse uma coisa e o seu contrário; a única forma que temos de averiguar realmente o que acontece com o PSD não é se é respeitada a vontade do seu líder, mas o que de forma factual se vier a verificar.
O PS desconsiderou esse risco, essa possibilidade de entendimento?
O PS tem consciência disso, é por isso que pede um reforço da confiança.
Mas nos Açores falhou na avaliação desse risco? Não se tomou o Chega a sério?
O PS teve uma vitória muito significativa, não há nenhum país na Europa democrática onde o partido do Governo tenha a mesma votação que o partido da oposição até nos Açores. O sistema eleitoral nos Açores, no qual tenho a primeira responsabilidade, estimula muito as representações dos pequenos partidos, o que é muito bom do ponto de vista da democracia. Nesses pequenos partidos surgiu o Chega.
Dizia, depois do acordo nos Açores, que Ventura é por enquanto uma ameaça maior ao PSD do que ao país. Mantém essa opinião?
Sim, mantenho, aliás está um pouco à vista. A generalidade das sondagens evidencia que o PS tem vindo a reforçar a votação que teve no último ato eleitoral…
Mas Ventura conseguiu 500 mil votos nas presidenciais.
É um caso diferente, uma eleição pessoal.
Mas mostra uma disponibilidade dos eleitores para aquele discurso…
Mostra, evidentemente, uma disponibilidade para aceitação de um determinado argumentário e importa que os partidos reflitam sobre ele. Mas aquilo com que nos confrontamos hoje é que há dois grandes partidos referenciais na vida política portuguesa. Um deles, o PSD, vive, digamos, um problema de identidade que não está a ser, pelos vistos, bem resolvido e que introduz alguma perda eleitoral e de influência e de liderança, que reparte com o Chega — com o qual, pelos vistos, não rejeita um amancebamento.
Acha que isso pode ser resolvido com uma mudança de líder no PSD? Essa crise de identidade?
Isso o PSD é que saberá.
José Luís Carneiro dizia, nas jornadas do PS, que o PSD estava à espera de um salvador de Massamá ou de Bruxelas.
(Risos) É possível que alguns militantes do PSD tenham essa aspiração. É verdade que esta liderança do PSD é um pouco confusa. Depois do congresso, a crítica do líder do PSD era que António Costa tinha usado a sua intervenção para anunciar medidas que tinham influência nas eleições autárquicas. Quer dizer… o que é que António Costa faria no discurso final? Não podia anunciar medidas? Então de que é que ele falava? Depois, tinha passado umas horas, quando fui de novo ver na televisão o que ele tinha dito nesse comentário, e ele estava a dizer que estava a fazer um grande esforço nas autárquicas para ganhá-las daqui a quatro anos! Não se compreende muito bem como é que uma liderança destas, tão errática do ponto de vista dos objetivos, pode congregar aquele partido. Mas esse não é um problema do PS. O problema do PS é resolver as questões com que o país se confronta. Se não o fizer, aí, sim, é que o PS será vítima de si próprio e não terá sucesso em próximas eleições.
Falando das condições políticas para esse exercício. O PS estabeleceu a fasquia de ganhar a maioria das câmaras. Seria dramático perder câmaras que foi importante ganhar em 2017, como Almada?
O PS, nestas eleições, desta vez não ganhará algumas das câmaras que ganhou nas últimas; e algumas que não ganhou, desta vez vai ganhar.
Mas se houver um recuo nas câmaras onde avançou em 2017, é um resultado de onde se podem retirar conclusões a outros níveis?
O nosso objetivo é ganhar câmaras e juntas de freguesia que nos permitam continuar a ter a presidência das associações municipais de municípios e de freguesias. Se me perguntar se gostávamos de ganhar todas as grandes cidades, evidentemente tínhamos esse gosto. O mesmo gosto que tenho por Lisboa é o que tenho pelo Corvo.
Olhando para o exemplo de Almada, que conquistaram ao PCP nas últimas autárquicas. Se perdessem essa câmara, até dava jeito para o Orçamento?
Creio que não. Ainda ontem vi um comentador do PCP a responder a essa matéria e estou de acordo com ele. O Orçamento não tem de ser determinado do ponto de vista do seu conteúdo e da sua votação pelo resultado das eleições autárquicas. É evidente que as autárquicas têm sempre uma conotação muito forte do ponto de vista das lideranças partidárias, da saúde dos partidos… E de outros desenvolvimentos. Mas é uma conotação absolutamente injusta. Nas autárquicas há pessoas que votam de maneira diferente para a assembleia de freguesia, a assembleia municipal e a câmara municipal. E de certeza que votariam de forma diferente para a Assembleia da República e o Governo. É absolutamente injusta essa apropriação da vontade dos eleitores por jogo político.
Então não há nenhuma leitura nacional a fazer sobre os resultados autárquicos.
Há sempre uma leitura. Se o PS tivesse um resultado catastrófico, ou absolutamente fulgurante e imprevisto, evidentemente há uma leitura subsidiária que se faz. Mas se as oscilações não são muito salientes ou decisivas, as autárquicas têm o interesse que têm, que é o local.
Está convencido de que o PCP vai apoiar o PS até ao final da legislatura?
Não sei. O que sei é que o PS tem o dever de procurar que a estabilidade política se mantenha e que os Orçamentos sejam aprovados. Sem essa situação e esses instrumentos, será muito difícil executar como tem de ser executado o Plano de Recuperação e Resiliência e os fundos comunitários que nos estão disponibilizados. E a estabilidade não é só partidária. Acho que temos de prestar atenção, mais atenção, a outras instituições que fazem parte da edificação da estabilidade política e social e do clima económico. É importante que a concertação social, não sendo um parque de estacionamento prolongado das reformas, seja um local por onde transitam as principais decisões do país, e que portanto os parceiros sociais — sejam as associações empresariais, sindicais, as instituições particulares de solidariedade social — tenham uma maior intervenção na definição política e na construção dessa estabilidade. Às vezes vejo legislação publicada pelo Governo e pela Assembleia da República, de transferências de poderes para autarquias e outras instituições, que descura muito o papel que as instituições de solidariedade social podem e devem ter.
Mas tem havido várias figuras do PS a elogiar a estabilidade que o PCP ajudou a dar, até já depois da geringonça. Confia que vai continuar?
É verdade, o PCP tem tido um comportamento muito responsável nessa matéria, porque tem privilegiado um conjunto de medidas setoriais que lhes são relevantes. Portanto tem uma metodologia no relacionamento com o Governo de ir conquistando passo a passo. E não de fazer uma globalização mediatizante, como acontece com o Bloco de Esquerda, que torna mais difícil a perceção e a formação de acordos. Evidentemente que o PS tem limites… a estabilidade não pode ser feita a qualquer preço. Há divergências que são relevantes entre o PS e o PCP e o Bloco. Temos conceções diferentes do papel do setor público e do privado, no plano das relações internacionais…
Mas ainda é possível recuperar o Bloco de Esquerda neste plano orçamental?
Isso depende do BE…
Também do PS, é uma negociação.
O diálogo está aberto, está a ser concretizado, e veremos até onde pode ser alcançado. Eu tenho uma visão otimista sobre o desenlace quer deste Orçamento, quer do próximo. Mas também tenho preocupações…
Já do próximo? Porquê?
Porque este Orçamento carrega o posterior, portanto é assim que a coisa vai naturalmente acontecer. Mas tenho preocupações… a estabilidade política não pode comprometer a estabilidade económica, nem social. Portanto podemos avançar na maior justiça das relações laborais, ter em conta as capacidades das empresas para satisfazer determinados requisitos, erradicar — como disse e muito bem António Costa — a pobreza infantil, temos de compreender que não é uma pobreza setorial…
Explique só melhor essa ideia dos dois orçamentos. O PS neste orçamento vai trabalhar já para comprometer os partidos até ao final da legislatura?
É natural que isso aconteça em parte, porque este próximo orçamento é muito influenciado pelos instrumentos que lhe estão associados, que é o quadro comunitário e o PRR. Portanto vê-se com certeza neste Orçamento o perfil do seguinte. E num plano político, a verdade é que este Orçamento precede o último da legislatura, portanto há aqui também uma influência e um contexto que condiciona mais todas as formações parlamentares. Portanto é nesse sentido que o digo. Os partidos em geral, independentemente das suas divergências, não desejam — certamente não o farão — ser motores de uma instabilização política do país que interrompa um processo de investimento que não pode ter essa interrupção e que seria interrompido se mergulhássemos numa situação de indefinição quanto ao Governo.
[Veja a entrevista na íntegra:]