É quase como se toda uma geração de fadistas se tivesse perdido. Carlos do Carmo, que era para muitos o mais importante fadista vivo, para quase todos uma das maiores referências da música portuguesa da segunda metade do século XX, morreu esta sexta-feira, dia 1 de janeiro, com 81 anos.
Símbolo maior de uma geração fadista que apareceu a seguir a Amália Rodrigues, teve uma carreira (nacional e internacional) com que poucos rivalizam, no número e qualidade de discos editados e nos palcos pisados. Recuperou, ainda, o protagonismo dos fadistas homens, entrando numa galeria de notáveis que inclui, por exemplo, Alfredo Marceneiro — o “Ti Alfredo” que um dia disse à mãe de Carlos do Carmo, a grande fadista Lucília do Carmo, que “o rapaz tem muito jeito”.
Os prémios foram muitos, em Portugal — Globos de Ouro, um prémio José Afonso, uma Medalha de Mérito Municipal… — e no exterior, que o reconheceu como merecedor de um prémio Goya e de um Grammy latino. Jorge Sampaio, que apoiou, atribuiu-lhe o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique. Marcelo Rebelo de Sousa, que não apoiou, fê-lo Grande-Oficial da Ordem do Mérito. Fernando Medina, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, entregou-lhe as chaves da cidade e António Costa, primeiro-ministro, a Medalha de Mérito Cultural, no seu concerto de despedida dos palcos.
Durante a carreira, que durou mais de 50 anos, levou novos letristas para o fado — de Júlio Pomar a Nuno Júdice, de Saramago a Lobo Antunes — e construiu, com Ary dos Santos (seu grande parceiro até 1984, ano em que Ary morreu), parte incontornável da história deste género musical, em discos como Um Homem na Cidade e Um Homem no País. Cantou no Olympia de Paris, na Alte Oper de Frankfurt, no Canecão do Rio de Janeiro, na nova-iorquina The Town Hall — e um pouco por todo o mundo, na verdade, além de ter pisado a grande maioria dos palcos nacionais de renome .
Passou pela televisão (serviu de apresentador em “Carlos do Carmo”, onde conversava com convidados), foi objeto de exposições e documentários e tornou-se embaixador do fado dando a cara por ele, na bem-sucedida candidatura desta cultura musical a património imaterial da humanidade.
Além do que legará à família, deixará parte do seu espólio e da sua obra ao Museu do Fado — essa foi, pelo menos, a intenção que chegou a expressar em entrevistas, dizendo que era o que fazia sentido. A sua história começou no final dos anos 30, em 1939. Terminou agora, muitos êxitos depois, da “Gaivota” de Amália que também ficou sua e que lhe pediam sempre para cantar, a “Fado do Campo Grande”, de “Homem na Cidade” e “Cacilheiro” a “Por Morrer uma Andorinha” e “Lisboa Menina e Moça”.
A infância, Sinatra, o rock and roll e os estudos na Suíça
O seu nascimento antecipou os chamados “anos de ouro” do fado no século XX, era que começou na década de 1940 e terminou na década de 1960 — mas até foi o rock and roll, a canção francesa, a música brasileira e os standards americanos de Sinatra que o cativaram primeiro, antes de se deixar convencer totalmente pela canção que fazia questão de lembrar que era de Lisboa (só depois se popularizando pelo país) e não nacional, porque nacional era o hino.
Nascido em 1939, seis anos depois de Fernando Maurício e menos de três anos depois da sua amiga Maria da Fé — com quem conviveria e ombrearia nas casas de fados, num despique saudável entre O Faia e o Senhor Vinho —, Carlos do Carmo cresceu no bairro da Bica, em Lisboa, filho da grande fadista Lucília do Carmo (da geração de Maria Teresa de Noronha, Argentina Santos e, claro, Amália Rodrigues) e do antigo comerciante livreiro Alfredo Almeida. Este, enlevado de paixão, trocara os livros pelo mundo dos fados, mais familiar à mulher, passando a gerir a casa de fados O Faia. Não deixou, porém, de contagiar o filho Carlos com o gosto pela leitura, narrando-lhe as notícias do jornal quando este ainda não sabia ler.
A família era reconhecida nos bairros de Lisboa, graças à fama da mãe (conseguida mais nas casas de fados do que por discos ou pela rádio), mas não era uma família de classe originalmente média-alta. Lucília, por exemplo, era filha de um operário fabril e de uma doméstica e tinha cinco irmãs. Carlos do Carmo chegou a recordar essas origens e como influenciaram a mãe numa entrevista: “Nunca foi um pessoa de muito carinho. Foi sempre uma mulher talvez sofrida e isto tem a sua lógica”. Ao Público, em 2008, corroborou: “Era uma pessoa especial, teve uma infância dura, pertence àquela clássica família portuguesa operária que tem seis filhos — aos nove anos foi para a fábrica trabalhar em vez de ficar a estudar. Havia uma dureza dentro dela, do sofrimento, do conhecimento da vida.”
Lucília do Carmo nem sempre esteva presente durante a infância de Carlos do Carmo, devido à vida de artista que o filho também experimentaria — e às digressões que fez no Brasil e em Moçambique. Este, contudo, nunca se sentiu “traumatizado”, como veio a assegurar. Estava também acompanhado “pelo pai, pelos tios — onde passava fins de semana — e pelos avós, pais da minha mãe, onde ia nos outros fins de semana”. E pelos moradores da Bica, à época verdadeiramente vizinhos, alguns dos quais miúdos que tal como ele se aproveitavam das encostas do bairro e dos declives das ruas para fazer “corridas com os skates da época”, umas “tábuas de madeira” que levavam “sabão por baixo” e que os transportavam “por ali abaixo a ver quem chegava primeiro”. O “ali abaixo” era a Travessa do Cabral — e o mais rápido ficava encarregue de avisar “quando vinha o elevador”. As zonas menos íngremes tinham outro aproveitamento: o futuro fadista e os amigos de infância faziam ali “grandes jogatanas de futebol com bolas de trapos”.
Em criança, Carlos do Carmo era “um incontinente verbal”, como chegou a revelar numa entrevista. Falava que se fartava, fazia “relatos de hóquei em patins na cozinha” — e não se atemorizava nem com os gritos de “Ó Carlos, cala-te um bocadinho” da sua tia Daniela. Quem também o aturava era “o senhor Artur, o padeiro”, que o ia buscar à janela (Carlos do Carmo descia-a) quando o rapaz não tinha aulas, queria brincar e estava sozinho em casa, voltando a empurrá-lo por ali acima quando Lucília do Carmo ou Alfredo Almeida davam sinais de proximidade.
A música esteve presente desde cedo: ainda Carlos do Carmo estava na barriga da mãe e já a ouvia cantar, com o xaile colocado para “disfarçar a barriguinha”. O gosto foi-se acentuando através da música que lhe era mostrada em casa, mas antes do fado foram outros tons musicais a apaixoná-lo, como os ritmos brasileiros que a mãe lhe apresentou quando levou do Brasil (onde fora cantar) para Lisboa discos de 78 rotações com canções de Luiz Gonzaga, grande compositor e cantor nordestino, e Dorival Caymmi. Outras cantigas que lhe ficavam no ouvido eram as “canções da moda” que ouvia na rádio: “Cantava-as, macaqueava aquilo. Uma coisa que sempre gostei de fazer, cantar. Mas cantar num ato livre, simples, despretensioso, sem outro objetivo que não fosse o prazer”, apontou, em entrevista ao Observador.
As canções brasileiras, que o entusiasmaram também por motivos políticos na adolescência e juventude — a Música Popular Brasileira (MPB) estava então fortemente conotada com a esquerda —, foram as primeiras que cantou, em versões que poucos ouviram. Como aos filhos que tendem a fugir à música dos pais, para mais quando esta estava para tantos associada a um regime que estava nas antípodas de Carlos do Carmo (muitos “camaradas seus, aliás, não perceberiam o seu posterior fascínio, mas acabaram por se reconciliar com o fado também por causa dele), a sedução não foi imediata. “Tive um período na minha adolescência em que contestei o fado seriamente. Não queria ouvir, achava-o uma coisa menor, terrível. Qual é a palavra que eles usam agora em relação aos mais velhos? Careta! Achava o fado careta”, relatou numa entrevista à Blitz.
As preferências eram outras: além da música brasileira, também a francesa, a italiana e Frank Sinatra, que ouviu aos 12 anos e nunca mais largou, chegando a cantar, já fadista a caminho da consolidação, versões deste em concerto e com orquestra. O fascínio foi tanto e tão duradouro que Carlos do Carmo conseguiu acabar por ter “a coleção completa” de discos do cantor, como apontou numa entrevista, chamando-lhe até “grande fadista”. Com ele reteve a importância da dicção das palavras, de que também se apercebeu vendo o pai dar aulas de dicção à mãe. “A voz do Sinatra nem se fala. O que me fascinava nele? Vou usar umas palavras inglesas: “O phrasing, o timing, o balanço… Porque é bom lembrar que ser o melhor cantor de jazz do mundo, normalmente esse prémio foi sempre atribuído a cantores negros. E o Sinatra foi o único branco que conseguiu ganhar isso. Sem esforço. Foi unânime”.
As influências abriram-se mais tarde, mas até se deixar cativar por outros mestres da canção — como Jacques Brel e Tony Bennett, além de Sinatra — e do fado — como Amália Rodrigues, Maria Teresa de Noronha, Alfredo Marceneiro e Carlos Ramos, com os quais conviveu, sobretudo os dois últimos —, foi contagiado pelo rock and roll dos anos 1950 e pelo yé-yé dos anos 1960. Dançava rock, imitava a pose de rock star ainda na década de 1950 e daí partiu para outras latitudes, nomeadamente para o jazz de Miles Davis e Neil Armstrong.
A música corria na família (materna), mas a carreira musical ou no fado não era um cenário que considerasse na adolescência. Terminado o liceu, interpelado pelo pai sobre o que queria fazer a seguir, sugeriu a advocacia, rumo tido como o mais seguro para quem gostava mais das letras do que das ciências económicas e da matemática. O percurso acabou outro. A família não se poupou a investimentos e por decisão do pai “endividou-se até ao tutano”: Carlos do Carmo foi estudar para um colégio na Suíça, “caríssimo”, no qual “os italianos e os alemães do pós-guerra faziam a passagem à faculdade”. Dali, saltou para um curso de hotelaria no mesmo país mas na região francesa, e não germanófila, da Suíça. “Trataram-me sempre como um príncipe e não me deixaram faltar nada”, apontou sobre os pais. Só aconteceu porque o pai era “maluco”, chegou a dizer: “Então ele não tinha dinheiro para mandar cantar um cego e manda o filho para o colégio mais caro do mundo? É maluco. Mas maluco saudável”. Depois, voltou para Portugal e a sua vida daria uma grande volta.
Carlos do Carmo em entrevista. “Vou dizer-lhe uma coisa: detesto vedetas”
A morte do pai, a gestão d’O Faia e o começo como fadista
Tinha 22 anos e a vida parecia-lhe, à época, uma auspiciosa promessa empresarial. “Estava convencidíssimo de que ia ser um engenheiro hidráulico de olhos azuis, diretor de uma unidade hoteleira no estrangeiro”, contou numa entrevista à revista Seleções do Reader’s Digest. A morte súbita do pai, que Carlos do Carmo acredita ter sido vítima de um aneurisma na aorta, trocou-lhe as voltas: “A minha mãe era a cabeça de cartaz [da casa de fados O Faia] e o meu pai era o gestor. Ou a minha mãe contratava alguém, e sabemos que muitas vezes isso pode não correr bem, ou entrava eu. Respeitei a memória do meu pai, respeitei o trabalho da minha mãe e segui em frente com a casa”, referiu à mesma publicação.
A mudança foi tão abrupta que exigiu rapidez de decisão, já não de jovem mas de homem feito — com a dolorosa morte do pai, um “desgosto profundo” de que demorou muito a recuperar, transformou-se em apenas um dia de ex-futuro gestor hoteleiro a gestor de uma casa de fados. “O meu pai morreu e eu, 24 horas depois, era patrão de 23 pessoas”, chegou a dizer.
Fez-se responsável. A primeira tarefa foi por as contas em dia, já que o pai endividara-se e era preciso pagar a fornecedores — mas com tempo, porque O Faia tinha a corda na garganta. Para sorte de Carlos do Carmo, talvez também graças a algum engenho de comunicação que adquiriu nos estudos, os fornecedores não puxaram a corda, salvando-lhe a casa. Sobre esses tempos, chegou a recordar o sentido de dever mas também a alegria: “Senti esse dever para com o meu pai, como é óbvio, e para com a minha mãe. Porque a minha mãe era a cabeça de cartaz e o gestor era o meu pai. Mas devo dizer que ao fim de algum tempo estava a dar-me prazer”, referiu, em entrevista ao Observador.
Entre um a dois anos depois de assumir a gestão de O Faia, Carlos do Carmo começou a cantar por prazer, mas as rádios rapidamente o colocaram sob escuta. À meia-noite, “de fatinho e gravata”, às vezes “podre de cansado” e a levar “com o fumo das pessoas” (como lembrou ao Diário de Notícias), trocava as contas pela cantoria. O autor de Um Homem na Cidade chegou mesmo a contar que um dia Alfredo Marceneiro ouviu-o cantar e disse à mãe de Carlos do Carmo: “Ó Lucília, tem atenção ao miúdo que ele tem muito jeito”. Vindo de uma das mais notáveis referências do fado, a mensagem não era recado, “era uma ordem” — e os primeiros discos de Carlos do Carmo tiveram no “Ti Alfredo”, como chamava ao mais velho, um ouvinte em primeira mão. A primeira vez que cantou perante um público, porém, “foi numa festa muito popular das noivas de Santo António, em que a vedeta era o António Calvário. E as pessoas passavam por mim como um cão rafeiro. Eu não existia”, recordou.
O apelido foi em simultâneo uma ajuda e um obstáculo à afirmação. Havia, naturalmente, quem lhe prestasse atenção e quisesse ouvir como cantava porque conhecia os fados da mãe. Por outro lado, as comparações foram durante bom tempo inevitáveis: “Nos primeiros anos, muita gente, com muita naturalidade e muita ternura, dizia-me assim: ‘O menino canta muito bem, mas sua mãe é que era’. Não me sentia magoado, mas isto implicava ir buscar um caminho. Conseguimos, depois, naquela casa de fados, ter dois públicos que se iam conhecer um ao outro. Eram os mais velhos que ficavam fascinados a ouvir o miúdo e eram os mais novos que se fascinavam a ouvir a mais velha. E não havia competição”, recordou à Seleções da Reader’s Digest.
Ao Observador, recordou assim as comparações: “Modéstia à parte, trouxe muita gente para o fado. Mas muita gente. Muita gente. E essa muita gente que vinha para o fado e vinha ouvir-me, ouvia a minha mãe e ficava maravilhado. E depois havia os fãs incondicionais da minha mãe, que me diziam com toda a calma: ‘Ó miúdo, tu cantas bem, mas a tua mãe…’. Digamos que isto não é assim tão moralizador, não é… Mas muito bem, convivemos os dois muito bem, eram momentos diferentes e fazíamo-lo como deve ser feito”.
Era preciso insistir, continuar a cantar n’O Faia durante as décadas de 1960 e 1970 (nesta última, já a caminho da consagração) e continuar a dar à rádio material para o revelar ao país que não chegava ao Bairro Alto. Com os anos, Lucília do Carmo foi abrandando o ritmo até deixar de cantar em definitivo e Carlos do Carmo foi ganhando estatuto de estrela da casa. Ficou ali perto de 20 anos. O Faia viu-o crescer, de cantor de fados de singles e EPs (mini-álbuns) a cantor com álbuns completos editados, de O Fado de Carlos do Carmo e O Fado em Duas Gerações (os primeiros discos, o segundo dos quais gravado com a mãe) a discos com orquestra (logo em 1972), um álbum com o título sintomático Êxitos (no ano seguinte, 1973) e os clássicos Uma Canção para a Europa (1976) e Um Homem na Cidade (1977). Dois anos depois do álbum de 1977, deixaria O Faia e dedicar-se-ia somente à carreira artística.
Conquistar o país nos anos 1970
Se os anos 1960 foram ainda os seus tempos de revelação no fado, a década seguinte foi de afirmação completa e de entrada para a galeria de notáveis. Perfecionista no canto, de ouvido atento, Carlos do Carmo não gostava especialmente de ouvir os seus discos — se passasse muito tempo com eles, os erros que encontrava multiplicar-se-iam.
Mesmo o fadista, contudo, reconhecia sem pruridos o mérito dos seus álbuns dos anos 1970 e do seu percurso paralelo aos discos nestas décadas, passasse ele pelos concertos — que abordava “como os touros nas pegas”, levando “tudo à frente”, ensopando a camisa — ou pela invulgar participação no Festival da Canção ainda no ano (politicamente) quente de 1976. Nessa edição, interpretou todas as canções a concurso, vencendo com “Uma Flor de Verde Pinho”, com poema de Manuel Alegre e música de José Niza, para desgosto dos eleitores à esquerda de Alegre e dos ouvintes aficionados de Fernando Tordo, Ary dos Santos e da canção que o duo compôs: “Estrela da Tarde”, a segunda classificada, que Carlos do Carmo não interpretou com menor dedicação.
https://www.youtube.com/watch?v=9oS5Mc2pTn8
A década de 1970 foi também aquela em que Carlos do Carmo mais inovou: cantou fados com arranjos musicais inusitados para a tradição do género (desde logo acompanhado por orquestra) e começou a demanda de desfiar poetas e compositores alheios ao fado a escrever para si. Ary dos Santos seria o mais famoso, o seu colaborador de muitos anos, com quem fez Um Homem Na Cidade e, já nos anos 1980, Um Homem no País, editado um ano antes de Ary dos Santos morrer. Ficou a faltar o terceiro disco, O Homem no Mundo. “Quando for ter com o Ary acabamo-lo… Eram três discos. Ele morreu… E faltou esse”, afirmou em 2008 ao DN. Ao Observador, recordou como a relação de amizade e trabalho começou: “Houve uma aproximação. E ele tinha desejo de fazer um disco sobre Lisboa. E eu disse: Zé Carlos, contigo faço tudo, vou até ao fim do mundo”.
Preconceituoso? Purista? Nada disso, antes pelo contrário
É difícil situar Carlos do Carmo no legado do fado: abraçou a tradição mas também encontrou nela pontos de fuga, sem proceder a uma rutura estilística demasiado agreste. Em grande medida, nesses anos 1970 e nos anos seguintes — em que cantou poemas de Lobo Antunes, Saramago, Vasco Graça Moura e Nuno Júdice, em que cantou composições de José Luís Tinoco, Fernando Tordo ou António Vitorino de Almeida —, encontrou o que hoje se considera um ponto de equilíbrio entre tradição e modernidade, convocando novos poetas, novos compositores e novos ouvintes (sobretudo, mas não só, do campo político de que sempre se assumiu, a esquerda) para o fado, sendo também capaz de convencer os ouvintes mais exigentes e tradicionais de que há inovações valiosas.
Mais tarde, o fadista gravaria mesmo com um contrabaixista — e de renome: Carlos Bica — e acabaria por tocar com grandes pianistas (algo cada vez mais comum entre fadistas), clarinetistas e percussionistas. Bernardo Sassetti e Maria João Pires seriam dois dos colaboradores. Curiosamente, contudo, o primeiro fado que Carlos do Carmo gravou, intitulado “Loucura”, teve logo um acompanhamento inusitado: “piano, baixo, bateria, guitarra elétrica e um coro de três senhoras”, revelou ao jornal Público em 2013. “Os puristas só não me mataram porque eu não andava muito à solta na rua”, brincava ainda.
Nem sempre as suas propostas musicais foram consideradas elo de ligação equilibrado entre tradição e modernidade, entre casas de fado e grandes palcos — quando decidiu gravar com uma orquestra, por exemplo, já mais conhecido, “não houve pessoa nenhuma da minha [sua] família que escapasse, toda a gente foi insultada”, referiu em 2008, em entrevista ao Diário de Notícias, acrescentando: “Era ‘maluco’, onde já se via cantar fado com uma orquestra?”
Numa entrevista ao jornal português (sediado no Luxemburgo) Contacto, o fadista explicou o que aconteceu nesses anos: “Sempre tive o espírito centrado no respeito pela tradição do fado. Quando fiz Um Homem na Cidade, havia uma situação muito clara. A esmagadora maioria dos compositores tinha desaparecido ou estava velha e tínhamos de nos socorrer de novas pessoas para compor. Hoje são compositores clássicos, mas na altura Ary dos Santos, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho ou António Vitorino de Almeida tinham os seus próprios universos musicais. Eles vieram para o fado, abriram as mãos e o coração e fizeram e continuam a fazer um excelente trabalho”. Ao DN, resumiu assim: “Eu sou um grande maluco. Tenho este ar assim muito certinho, mas gosto de que tudo o que são tabus e barreiras seja derrubado. Se conhece um bocado da minha vida no fado já reparou que tenho mexido nisso tudo”.
A despedida do homem da cidade: quando Carlos do Carmo disse adeus aos palcos em Lisboa
O traço de irreverência equilibrada de Carlos do Carmo, alguém que conhecia a fundo a história do fado, era apaixonado por ela, mas gostava de visitar também aqui e ali outras estéticas, viu-se na forma como abraçou o chamado “novo fado” e as novas abordagens ao género musical de jovens fadistas. Em 2008, numa entrevista, elogiou Mariza, descrevendo-a como “uma grande profissional”, alguém que faz “um trabalho muito bem feito, muito profissional e sério”. Talvez mais curioso ainda, falou de “uma menina” que não era “ainda mediática” mas que “de certeza vamos ouvir falar e que canta extraordinariamente bem o fado”. O seu nome? Carminho. Só no ano seguinte, 2009, “a menina” lançaria o seu primeiro disco. Dizia Carlos do Carmo um ano antes: “Isto não vos diz nada, mas estejam atentos (…) É uma menina do outro mundo”.
Falando de Mariza e recusando purismos, chegou a lembrar de memória (numa entrevista) que a própria Amália Rodrigues, 40 ou 50 anos antes, “quando sentia num determinado momento do espetáculo que aquilo estava centrado na tristeza, começava a cantar uma coisa [diferente], um vira, um malhão e punha as pessoas a bater palmas porque havia necessidade de descomprimir”. Ora Mariza, recordava, também oscilava entre fados tristes e canções alegres e mais ligeiras: tem “aquela componente africana dela que dá uma ligeireza muito grande às coisas — [mas] ligeireza no sentido nobre da palavra. (…) Quase flutua, dança e de repente fica muito estática para cantar um fado mais profundo, mais sério”.
Ao jornal Público, em 2008, defendeu que “o fado só pode ser rico na diversidade” e até deu exemplos para mostrar que essa diversidade é antiga: “Lembro-me sempre da velha geração: o que é que a Lucília [do Carmo] tinha a ver com a Maria Teresa de Noronha? O que é que a Maria Teresa tinha a ver com a Amália? O que é que a Amália tinha a ver com a Hermínia? E a Maria José da Guia, a Berta Cardoso.” O interesse pelas margens do fado tradicional era permanente e os elogios a Pedro da Silva Martins, por o desconstruir no tema “Desfado”, que compôs para Ana Moura, eram regulares. O convite a grande parte da nata do fado nacional para duetos no disco Fado É Amor, de 2013 (cantou com Camané, Mariza, Carminho, Ana Moura, Ricardo Ribeiro, Raquel Tavares, Cristina Branco, Marco Rodrigues, Aldina Duarte, Mafalda Arnauth e fez um dueto com excertos de gravações da mãe, Lucília do Carmo), pode ser visto quase como bênção aos seus descendentes na interpretação fadista.
A atenção a outros fenómenos da música portuguesa, cujo diálogo com o fado chocaria puristas, revelou-se também no seu apreço por Sam the Kid, que se apropriou de excertos do fado de Carlos do Carmo para o tema “Viva!”, de homenagem a Carlos Paredes). Voltou a revelar-se mais recentemente, com a colaboração com o DJ e produtor musical de eletrónica e hip-hop Stereossauro, no disco Bairro da Ponte lançado no início de 2019.
Stereossauro estava a fazer um disco em que tencionava criar um diálogo entre gravações de Amália com vozes de fadistas vivos, batidas de música eletrónica e hip-hop e acordes de guitarra portuguesa quando foi abordado por Carlos do Carmo. “Ouviu o trabalho que estava a fazer e abordou-me. Queria participar”, recordou Stereossauro ao Observador. Desafiado a recriar “Cacelheiro”, enviou uma proposta a Carlos do Carmo pensando que este iria “odiar, detestar”. A resposta foi outra, “que tinha gostado muito e que queria ir para estúdio gravar”. Estiveram juntos “umas boas horas”, com Stereossauro deliciado a “ouvi-lo falar” e a “ouvi-lo contar histórias”.
Conquistar o mundo a partir dos anos 1980 (com menos atenção nacional)
A consagração nacional aconteceu nos anos 1970, mas a afirmação internacional aconteceu na década seguinte. A porta de entrada para o grande mercado internacional era o Olympia e Carlos do Carmo estreou-se na sala parisiense em 1980, que era à época gerido pela família Coquatrix. “Lançava artistas”, nas palavras do fadista. A partir daí nunca mais parou: houve “discos gravados lá fora” e concertos dados em todo o mundo, em grandes salas de espetáculo (e mais tarde em festivais de fado, por exemplo em Madrid e Nova Iorque).
Curiosamente, os grandes anos de afirmação no exterior (os 80’s) coincidiram com alguma falta de vitalidade no fado no país, no que respeita ao aparecimento e afirmação de fadistas com grandes carreiras musicais — não cingidos só às casas de fados — e ao interesse do público e da rádio.
Camané, por exemplo, já cantava desde o final dos anos 1970 (começou com pouco mais de 10 anos) mas só lançou o seu primeiro álbum pela editora “major” EMI, hoje Warner Music, em 1995. Havia nessa época “um preconceito enorme”, lembrou Camané ao Observador. Por tudo isto, os discos de Carlos do Carmo dos anos 1980 passaram mais despercebidos do que os da década anterior e só depois da comoção nacional com a morte de Amália, em 1999, o país reconciliou-se com o fado e assistiu à afirmação de uma nova geração de fadistas (no plural) com grandes carreiras. Na década de 2000, afirmaram-se em definitivo Mariza, Ricardo Ribeiro (apesar do seu primeiro disco ter saído no final dos anos 1990), Ana Moura, Raquel Tavares e Carminho (ainda que o seu primeiro disco tenha sido editado mesmo no final da década, em 2009).
A década de 1980 foi a “mais dura” para o fado em solo nacional que viveu, dizia Carlos do Carmo em 2008 ao jornal Público, acrescentando: “Perguntavam-me muito [na altura] se o fado iria acabar. E eu pensava que a Amália estava a cantar e andava por esse mundo fora, eu estava a cantar e andava por esse mundo fora e por cá tínhamos o guardião dos bastidores disto tudo que era o Fernando Maurício. Por isso, pensava: ‘Isto não acaba, têm é de aparecer miúdos’. Começaram a aparecer e nunca mais parou.” À Notícias Magazine, em 2014, corroborou: “Fui tendo discos gravados lá fora, na Polónia, em França, num tempo em que o fado aqui em Portugal, isto eram anos 80… (…) Quando comecei a cantar lá fora, quando ir para cada país pressupunha um visto, ao pisar o palco sentia muito esse orgulho. Falava dos meus poetas, da minha cidade, da minha terra”.
Carlos do Carmo confirmou mais tarde o estatuto de embaixador mundial da cultura musical que era também sua quando deu a cara, ao lado da fadista Mariza, pela candidatura do fado a património imaterial da humanidade. Convencida com os argumentos portugueses, de fadistas, músicos e da Câmara Municipal de Lisboa — através da empresa de gestão cultural EGEAC e do Museu do Fado —, a UNESCO respondeu positivamente.
De esquerda, sem subterfúgios: “Não sou feijão frade”
Nunca se furtou a lutas e assumiu sempre a sua tendência para a esquerda. “Não faria sentido termos a liberdade e, para não desagradar a umas senhoras ou senhores, dizer que a minha política era o trabalho… As pessoas tomam as suas posições. (…) Cantar o fado em liberdade é muito bom”, chegou a dizer numa entrevista.
A música nunca foi panfletária, contudo: como fazia questão de lembrar regularmente, mesmo na parceria com Ary dos Santos — nos anos frescos da democracia, na segunda metade dos anos 1970 e no início dos anos 1980 — tentava lembrar o poeta de que queria letras que não resvalassem para “a canção revolucionária”. Tinha alergia, aliás, às canções excessivamente datadas, que mais do que refletir apenas versassem o espírito da época em que foram feitas. Gostava de as ouvir mas não eram para ele, porqe no fado procurava a intemporalidade e as grandes emoções que há muito ocupam os escritores, cantores e fadistas.
Ainda assim, Carlos do Carmo assumiu apoio a políticos, envolveu-se em campanhas sem nunca ter sido militante de partidos e foi até mandatário da candidatura de António Costa a primeiro-ministro, embaraçando inclusivamente o candidato a primeiro-ministro com um discurso invulgarmente direto e sem subterfúgios para a linguagem política (falando num nome proibido: Sócrates). Anos antes, quando ganhou o prémio Goya, recebeu os parabéns — via telegrama — de Mário Soares, Jorge Sampaio e Ramalho Eanes, três ex-presidentes da República oriundos da esquerda.
Foi próximo de Álvaro Cunhal, mas garante que não ficou comunista, muito menos comunista convicto — contou até uma vez que depois de apoiar a Aliança Povo Unido contra a Aliança Democrática, viu “o dr. Cunhal” e, agradecendo-lhe os tempos de resistência ao regime ditatorial (para Carlos do Carmo e para muitos, fascista), avisou-o de que se governasse tê-lo-ia como emigrante. Em entrevista ao Observador, lembrou uma “relação muito afetuosa” com o PCP, de que nunca foi militante mas para o qual cantou “milhares de vezes” sem receber “um cêntimo” — e falou da amizade com Cunhal, com quem não falava de política “porque o Cunhal era um artista. Imagina-me agora eu a falar de política com o Cunhal? Nem pouco mais ou menos. Quando estive doente a priemira vez, o Cunhal não largava o telefone da minha mulher, muito à séria, bem preocupado”.
Durante anos, semeou inimizades e rejeição veemente de ouvintes de outras tendências políticas, tal a clareza e vigor com que sempre defendeu as suas ideias. “Tive um longo percurso das pedras, tomei posições políticas neste país que não são as melhores para quem quer fazer uma carreira artística e para quem quer o benefício dos media e dos patrocinadores. Escolhi o pior caminho. Mas valeu a pena. Porque se uma pessoa faz as coisas pelas suas convicções, mesmo que erre, não fica de mal consigo próprio”, defendia.
Embora nunca inteiramente consensual, nunca a salvo de acusações de “comunista” atiradas como insulto, foi-se tornando com os anos mais respeitado até pela maioria dos ferozes opositores políticos. Em 2008, ao Diário de Notícias, defendeu essa ideia: “Sou um homem de esquerda e espero morrer assim. E foi este lado mais polémico da minha história que levou a que o meu público se dividisse, entre pessoas que me agrediam e pessoas que me apoiavam. Hoje, penso que as coisas serenaram e que os meus adversários políticos me aceitam melhor porque perceberam uma coisa: é que não sou feijão frade. Não sou uma pessoa de circunstância, que é de esquerda hoje porque é o que está a dar e a seguir é de outra coisa”. Sobre o respeito que o país lhe tinha, apontou em conversa com o Observador: “Sinto estima na rua. Não é preciso ir mais longe. Sinto-o no trato, não é um trato de consumo. As pessoas falam-me das suas vidas”.
Em 2016, fez definitivamente as pazes com boa parte da “metade” direita do “país político”, para utilizar duas expressões do agrado de quem lançou o fumo branco. Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da República eleito com o apoio de PSD e CDS-PP, condecorou-o com o título de Grande-Oficial da Ordem do Mérito. Nesse dia, o presidente da “distensão” descreveu Carlos do Carmo como alguém que “enche a alma dos portugueses”: não de alguns portugueses, mas “dos” portugueses. Ao Observador, o fadista que gostava de se reclamar “portuga” referiu após a condecoração: “Tenho aqui muitos prémios dos mais variados países e dos mais variados sítios, mas os da minha terra têm um significado especial”. E acrescentou: “Dá-me jeito continuar a viver mais uns quantos anos”.
Carlos do Carmo “muito honrado” após ser condecorado pelo “amigo” Marcelo Rebelo de Sousa
Foi a vontade de viver mais uns anos — mas também a de “não estar em decadência em cima do palco” — que o fez anunciar a despedida dos concertos com dois espetáculos em 2019, nos Coliseus de Porto e Lisboa. “Uma pessoa chega a determinado momento da sua vida e começa aquilo que nós chamamos o inverno. Eu não gosto de lhe chamar decadência. O inverno. E o inverno é bem mais fresquinho que a primavera. E nessa circunstância, para não estar em decadência em cima do palco, é uma altura boa de sair. 80 anos de idade, cantei no mundo inteiro, poucos foram os países onde não cantei. Cantei em toda a minha terra. Fui sempre bem recebido em toda a parte. Além de que tenho três médicos que dizem: ó Carlos, você corre é o risco de cair no palco por causa do coração e cai para o lado. Disse: Epá, isso é bestial, é uma morte gloriosa. Resposta do mais novo: Não me lixe. Pronto. Eu sou bem mandado”.
A paixão pela mulher, o casamento e os problemas de saúde
Paralelamente à carreira musical, a vida pessoal teve os seus momentos conturbados, envolvendo doenças e álcool — embora garantisse sempre que nunca fora “bêbado profissional”. Acabou por travar a fundo, por ordem médica. No período mais complicado de doenças, a mulher Judite foi uma grande âncora de apoio. O casamento não foi perfeito, claro — a uma revista nacional, o casal chegou a assumir que esteve perto de se separar —, mas manteve-se até ao fim. E em entrevista ao Observador, em 2019, Carlos do Carmo saiu-se mesmo com esta tirada: “A minha amiga Pilar que me perdoe, mas se houvesse justiça era a Maria Judite que devia ter ganho o Nobel.”
O relacionamento começou de forma invulgar: ela era uma fã de Carlos do Carmo e os dois acabaram a casar-se num ápice. Tinham ambos 24 anos e só namoraram durante seis meses, numa época de namoros muito longos. “Ficámos os dois praticamente sem família, a família da Maria Judite quase toda morreu, a minha família quase toda morreu; reconstruímos, fizemos uma nova família com filhos”, recordou numa entrevista.
Durante o namoro, eram comuns as idas à praia. A mulher, fã de fado, esperava ouvi-lo cantar fados solenes, mas ele poucos sabia ainda cantar de cor, numa fase inicial, “por isso cantava-lhe muitas canções do Sinatra”, chegou a contar. Admitia que nem sempre fora um pai presente, fruto dos concertos, mas os filhos garantiam-lhe que isso não os marcara. A mulher, “pessoa de uma grande vitalidade, de um grande caráter, de uma imensa solidariedade” que tinha “grande pachorra para me [o] aturar”, também teve de suportar muitas vezes a distância: “Cheguei a tê-la à minha espera no aeroporto com uma mala com roupa para o frio, porque vinha do Brasil e ia para o Canadá. Dois beijinhos, as crianças a correr, e lá ia para outro avião”, referiu um dia.
Depois de uma dura queda num palco em Bordéus com 50 anos, os problemas de saúde foram aumentando com os anos, fruto em parte de uma vida com “muita boémia”, dos cigarros que fumava “compulsivamente”, do whisky que adorava beber. Com 60 anos, teve um aneurisma na aorta abdominal que descreveu como “violento”. Foi sujeito a cirurgias à aorta (três vezes), teve uma tuberculose, sofreu de problemas de coração, chegou a estar à beira de uma embolia e esteve quase a desistir da vida no hospital, garantindo numa entrevista que foi a mulher que lhe deu força: “A única coisa que tinha palpável era o peito do pé. De resto todo eu era tubos. E ela massajava-me os peitos dos pés. Era como se me transmitisse a vida. Até que chegou o dia em que lhe disse: ‘Estou farto, exausto, não quero mais. Tens tudo organizado, os teus filhos vão dar-se bem contigo e tu com eles. Vocês, graças a Deus, não ficam mal. Eu tenho de ir embora, não aguento mais isto.’ E ela: ‘Nem penses.’ Houve um momento em que desisti. E aí ela não deixou. Levou uma mala de livros e leu-os todos duas vezes porque estava ali sentada, sempre perto”.
Em 2014, à então revista Blitz (antigo jornal, hoje publicação digital), numa entrevista, resumiu aquilo que achava que não lhe iria permitir viver muito mais anos: “Sou um gajo todo marcado: tenho um pacemaker, seis anestesias gerais, uma tuberculose…” Cinco anos depois, em 2019, voltou a ser internado, depois de uma fratura do colo do fémur.
O legado é histórico. Sobre Amália Rodrigues, chegou a dizer que era “a voz de um século” e que poucos tinham sido os países que tinham tido uma voz desse gabarito no século XX. Não era suspeito, dado que o relacionamento com Amália era “maravilhoso” quando Carlos do Carmo era rapaz mas o tempo afastou-os. Ele, porém, também foi uma voz do século, marcante, emblemática, capaz de convocar novas gentes para o fado. Não foi, claro, Amália Rodrigues, com quem ninguém rivalizará, mas se “são meia dúzia de fadistas que se destacam na história do fado”, como Carlos do Carmo chegou a dizer, ele será por certo um deles.
Em 2012, quando morreu o maestro Pedro Osório, o fadista disse: “É mais um companheiro que fica pelo caminho… Um dia serei eu. Vamos indo uns atrás dos outros”. Depois de ter anunciado o adeus aos palcos, depois de tentar gravar um último disco de estúdio (que estava prometido para 2021), esta sexta-feira o dia chegou: Carlos do Carmo morreu com 81 anos. Um possível epitáfio apresentou-o o próprio fadista, numa entrevista de 2008: “De maneira nenhuma me tomem como um deusinho de coisa nenhuma, sou um sujeito cheio de defeitos. Mas há uma coisa, eu diria duas, que não sou: nem sacana, nem desleal. Tenho outros defeitos.”