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É fácil esquecer que Carminho tem 34 anos. Há mais ou menos 20 que canta em casas de fado de Lisboa, primeiro como menina mascote a quem os adultos achavam graça, depois como fadista de corpo e inteiro. E há nove anos que grava discos. Se Maria, o seu novo álbum (quinto de estúdio e quarto de originais), que edita na próxima sexta-feira, não soa a revelação, é só porque atrás há Fado, há Alma, há Canto. Palavras fortes a que agora soma mais uma, o seu nome próprio que até aqui tinha ficado na sombra. Fado, Alma e Canto: discos de uma fadista que parecia menos miúda do que na verdade era, que se aventurou a cantar o que sabia e podia dizer com a vida que tinha.
Paralelamente aos discos de originais, Carminho foi cantando outros ritmos e estilos sem perder o identificativo que lhe é familiar desde que ouvia música ao colo da mãe (Teresa Siqueira), desde que veio para Lisboa com 12 anos com os pais e se introduziu nas casas de fado, desde “os anos zero”, expressão sua: fadista. Basta ouvir a primeira canção do seu novo álbum, “A Tecedeira”, para se perceber que Maria é um disco de fado, um disco de uma fadista — e que é um disco despojado, íntimo. Não há guitarra portuguesa, não há sequer música, é só com a voz e com palavras que escreveu, a capella, que Carminho começa a desvendar o “álbum mais pessoal” que fez. Um disco, lá está, de fado, despudoradamente e inequivocamente de fado.
É fácil esquecer que Carminho tem 34 anos. Não deu grandes passos em falso, diz que só começou a gravar discos quando tinha alguma coisa para dizer (e teve convites para o fazer antes). Mas Carminho tem 34 anos e nos últimos quatro, desde Canto, diz que aprendeu muito sobre si. Conheceu-se melhor, viveu mais, entendeu a canção que ouviu “uma vida inteira”, como canta em “Poeta”. Canta como uma mulher que já nem é menina e pode agora apresentar-se sem filtros. Canta como Maria do Carmo.
Olhando para o seu passado, para o que gosta de ouvir e cantar no fado, Carminho percebeu uma coisa, como nos diz em entrevista: que para si o fado “é muito mais as emoções, a sensação e a dinâmica do que se ouve do que propriamente se é tocado desta ou daquela forma. Ou como é cantado”. Depois de viajar por Portugal e pelo mundo, com digressões europeias, idas à América, um Brasil conquistado com fado e parcerias com boa parte das estrelas maiores da música brasileira (Chico Buarque, Milton Nascimento, Marisa Monte), Carminho quis voltar à origem.
Primeiro, pensou no que aprendeu com o fado. Pensou no que ele lhe deu, no que gosta nele, e apercebeu-se de que há um ambiente “que não é música mas é som” que nem é sempre é captado em estúdio. Diz que podia ter ido captá-lo cantando ao vivo numa casa de fados, mas quis tentar recriá-lo em estúdio. É possível registar esse ambiente solene, fadista, não só com guitarra portuguesa (tocada por três grandes intérpretes, Bernardo Couto, José Manuel Neto e Luís Guerreiro), viola de fado (Flávio César Cardoso) e baixo acústico (José Marino de Freitas) mas também com um tema à capella, com um descarnado tema com guitarra elétrica tocada por Carminho (“Estrela”), com pedal steel, instrumento típico do folk e country norte-americanos, tocado por Filipe Cunha Monteiro (Tomara, Márcia) também com um arco de violino sobre as cordas; e com piano, tocado por João Paulo Esteves da Silva? É. Maria prova-o, é um grande disco de fado.
É no final de um dia longo de entrevistas que encontramos Carminho, nos escritórios da sua agência de management. É lá que nos diz que nunca tinha feito um disco tão pessoal porque “não sabia bem quem era” (isto demora tempo), que “não quis fazer nenhuma cedência” artística, que este é um retrato honesto do que aprendeu com o fado, com as pessoas próximas, com aquilo que já viveu. É lá que nos diz que se não estivesse disposta a cantar-se em disco não tinha dado o passo de escrever mais, dirigir os músicos, assumir a produção, estar envolvida nas misturas finais do som.
É também sentada no sofá que nos diz que se este disco não fosse “verdade”, palavra que usa com confiança mas também com solenidade, seria um problema porque é ela que todos os dias tem de “cantar as canções e arranjar forças para sentir que são verdade”. É lá que nos confessa que houve uma fase em que por cantar fado não era “cool” e só nas casas de fados não se sentia estranha. Cantar, garante ainda, resulta mais de uma necessidade de se expressar para sobreviver emocionalmente do que de uma vontade de subir a um palco ou de ser famosa. É já ao fim de uma hora de entrevista que lhe perguntamos se sente que é a “mulher vento” que canta neste disco, a mulher que nasceu para cantar e tem como destino cantar. “Sinto”. Está dito.
“É preciso passarmos pela dificuldade, depressão. Sermos testados pela vida”
Ainda fica nervosa com as reações das pessoas às canções novas, sejam pessoas próximas ou ouvintes em geral? Ou já tem uma segurança que afasta os nervos todos?
Não sinto muito nervosismo. Também só consigo lançar um disco quando acredito mesmo nele, quando tenho uma segurança de que estou a lançar aquilo que realmente quero. A partir daqui, as pessoas podem ter as suas visões e opiniões, gostar ou não gostar. É óbvio que queremos que as pessoas gostem, mas sinto-me tão segura e feliz pelo disco que fiz que já tenho a felicidade do meu lado, a realização pessoal. Ao vivo há nervos, existe uma adrenalina e uma expectativa porque o público é sempre novo e as salas são sempre diferentes. Mas não são nervos bloqueadores, são nervos que potenciam a energia do momento. Ter nervos que bloqueiam é uma chatice porque depois esquecemo-nos das letras, do que vamos dizer, isso prejudica o concerto. Mas a adrenalina de esperar para ver quem está do outro lado é fabulosa.
Já estava a pensar neste disco há dois ou três anos, não é? Há um ano disse que gravar um disco passa por “desencavar a verdade, aquilo que sou neste momento para que o disco represente a pessoa que sou agora”. Mas não é doloroso desencavar essa verdade?
Tudo o que nasce, nasce de um parto — e o parto pressupõe às tantas uma dor. A capa do disco reflete um gesto de descobrir e de romper, de passar de uma fase para outra. Há sempre uma dor, um esforço, uma carga que é necessária. Mas é uma carga fortificante, porque é com os desafios e contrariedades da vida que percebemos que temos capacidade de descobrirmos coisas sobre nós, sermos diferentes e melhorarmos a nossa vida. Quando está tudo muito confortável, provavelmente não haverá grande evolução. Desacomodar traz-nos dificuldades mas resultados diferentes, novos. Pensar num disco novo é ir buscar canções que não canto, canções que ainda não tenho, é escolher poemas e definir quais dizem respeito à minha vida, quais quero apresentar às pessoas, com quais é que me identifico. Tenho de fazer uma triagem e ir dentro de mim procurar essa verdade. É de facto um processo delicado, demorado e que traz questões, dores e alegrias. Traz muitas emoções. Foi muito emocionante fazer este disco.
Também tenta desencavar uma verdade sobre si na escrita dos outros? É um critério importante para escolher que canções dos outros vai cantar?
É, porque a partir do momento em que escolho um tema de outro autor estou a tomá-lo como meu. De alguma maneira, estou a tornar minhas as palavras escritas por outros. Tenho de me identificar com as palavras e dar-me tanto a elas na interpretação que as transforme no meu próprio discurso. Há muitos poetas que acabam por escrever e dizer muito melhor aquilo que sinto do que eu, quando escrevo. Mas há essa dualidade, porque também quero escrever e expressar-me através da escrita e da composição. Este disco acaba por ser mais íntimo, mas também me revela mais, porque há uma maturidade que me ajudou a assumir certas coisas em mim que há algum tempo não era possível assumir, não teria a força e a confiança para o fazer. Vamos ganhando confiança ao longo da vida para podermos assumir quem somos.
Como assim?
É preciso passar por esses estágios de dificuldade, às tantas, de depressão ou de sermos testados pela vida, para sabermos crescer. É isso que nos obriga a sair do lugar em que estamos e a ir para outro. Esse crescimento trouxe-me segurança. Já não tenho medo de fazer a travessia dali para aqui. É quase como o abismo antes de se saltar do ninho para voar: a partir do momento em que saltas a primeira vez já não tens medo. E aqui há um salto: para produzir um disco, para compor mais temas e para assumir as minhas palavras. Para ser mais simples e concisa, também: o disco é mais minimal e isso vai ao encontro daquilo que o fado é para mim. Este disco é um disco de fado.
É, efetivamente. Mas antes de irmos ao disco, pergunto-lhe: não é diferente cantar palavras suas de cantar palavras dos outros? As suas sabe por que as escreveu…
Não, porque também sei porque escolhi os outros poemas. As palavras passam a ser tão minhas que às tantas esqueço-me quem as escreveu, quando as canto. Quando canto um tema as histórias aparecem, depois ao longo da vida vão-se alterando. Por exemplo, desde o meu primeiro disco que canto a “Escrevi o Teu Nome no Vento”, cantei-a em todos os meus concertos. E foi sempre único, porque o sentido e as histórias [da canção] foram-se transformando.
Escreve desde o primeiro disco, mas quando lançou esse álbum disse logo que só colocava canções com textos seus porque sentia que tinham qualidade para lá estar. Foi uma avaliação difícil?
Houve esse dilema. Assumir o que escrevo foi progressivo. Desde o primeiro disco que escrevo e tenho algumas pessoas no meu circuito pessoal, que não são muitas mas que são importantes, para me criticar e ajudar a ver as coisas que possa não estar a ver e decifrar. No final sou eu que escolho aquilo de que gosto. A atitude de assumir aquilo de que gosto já vinha a ser descoberta desde então, mas está-se a aprumar e a desenvolver cada vez mais, está a crescer e isso é muito bom. Muitas vezes temos a sensação: que pena que é crescer. Temos pena de já não sermos crianças. Mas também é muito bom crescer, é muito bom estarmos conscientes do que somos, saber que não temos de ter medo de nos assumirmos com aquilo que somos — com as nossas fragilidades, com os nosso traços de personalidade. Há qualquer coisa de único e especial que se torna mais forte quando nos conhecemos e nos aceitamos. Isto numa perspetiva de nos podermos transformar e melhorar.
O disco começa com um tema a capella. E aí basta-lhe a voz, a forma como diz as palavras, como gere os silêncios, para percebermos que a Carminho é fado. É uma declaração de intenções?
Foi um exercício que fiz quando comecei a pensar neste disco — um exercício de origem, de pensar naquilo que o fado me ensinou, mesmo que fosse para fazer um disco de rock ou outra coisa qualquer. Fui pegando em todas as matrizes que aprendi desde que canto ao colo dos meus pais, com seis anos e em cima da cama deles, até às casas de fado em que fui crescendo. O que é que foi ficando? Há muita coisa que aprendemos inatamente. Como aprendi a cantar o fado desde que nasci há muita coisa em que não pensava conscientemente. Era tão natural, era como falar português. Quando há um exercício de pensamento regressivo, há uma aprendizagem com um olhar mais maduro sobre o que éramos na infância e aquilo que nos tocava. Nesse exercício percebi que para mim o fado é muito mais as emoções, a sensação e a dinâmica do que se ouve do que propriamente se é tocado desta ou daquela forma. Ou como é cantado.
Foi tirar as vestes ao fado?
Houve um exercício de subtração aos elementos que têm sido somados ao fado como tendência das últimas décadas. Senti uma vontade grande de subtrair, de chegar à essência, de voltar à minha origem. Portanto fui subtraindo os elementos, fui tirando um a um até perceber que se houvesse só uma voz já poderia haver fado. Comecei a ver o fado num sentido energético e fundamental, comecei a ver na voz fadista uma voz que tem um traço e uma linguagem que traz o fado consigo. Parti desse princípio, do minimalismo máximo. A partir daí comecei a somar elementos com cuidado e com consciência do que queria dizer. Houve três fundamentos neste disco…
Quais foram?
O primeiro é a voz ser o elemento principal. O segundo, o facto de o ambiente ser algo tão importante como cada um dos elementos musicais. É importante porque uma vez que se tira o fado das casas de fado e ele vai para o estúdio, retira-se-lhe algo que pode não ser música mas é som, ambiente, silêncio, vácuo. É tudo isso, é uma energia que está muito relacionada com o ambiente que existe quando se está em comunidade a cantar fado. Podia ter voltado à casa de fados e captar essa essência ao vivo, mas tive vontade de interpretar esse ambiente e retratá-lo de uma forma estilizada. Achei esse exercício mais pertinente para mim. E aí entra uma certa secura e o Filipe Cunha Monteiro, que entra com este instrumento novo para o fado — ou novo para mim — que é a pedal steel, um instrumento da música country e folk americana. Ele manipulou-a com pedais e com um arco de violino com que tocou as cordas. Aquilo traz uma atmosfera e um ambiente de som que conta histórias. E as histórias são o terceiro fundamento do disco e do fado. O fado também me tocou porque contava histórias que me soavam realmente verdadeiras — pelo menos tentava passar uma verdade nas histórias e nas personagens. Para mim, este é um disco de fado e é um disco que fala sobre o que aprendi com o fado ao longo destes anos.
“Não sabia bem quem era”
Foi fazendo coisas um pouco paralelas ao fado — cantar com os Tribalistas, com os HMB, com o Pablo Alborán. Este disco não tem um dueto vocal e é um disco de fado, como já disse. Há vontade de separar as águas, entre o que é um disco seu e o que são esses encontros?
Não sei… não é uma preocupação separar águas porque não é feito de forma premeditada, não se premedita um convite de algum artista para cantar. Fui sempre muito abençoada com os convites que tive e com as parcerias que tive. No meu disco [de versões] do Tom Jobim, tenho quatro parcerias importantes e fascinantes para mim, com o Chico Buarque, a Maria Bethânia, a Marisa Monte e a Fernanda Montenegro. No disco Alma há uma edição especial em que tenho três parcerias, também brasileiras. Aí, nessa entrada pelo Brasil, houve participações que acabaram por integrar os meus discos, mas tem de fazer sentido. Este disco era tão pessoal e homónimo, tanto que se chama Maria, que é o meu nome, que não houve o ímpeto de convidar ninguém. As canções têm uma vida própria e pedem as coisas, muitas vezes pedem um dueto, uma companhia. Aqui não aconteceu.
Não queria fazer e não fiz nenhuma cedência ao que queria para este disco. Isso foi muito bom para mim. Foi muito importante ter o apoio da minha editora e do meu manager João Pedro Ruela, que me deixaram livre e sem nenhuma pressão. Poderia lutar, mas o apoio é sempre um conforto para alma. Não ceder era inevitável porque estava falar do que aprendi com o fado, daí não ter feito sentido trazer também um produtor. Este é o meu retrato do fado, do que aprendi com a minha mãe e com o meu pai — que não canta mas também me ensinou muito sobre fado –, das coisas que vivi. Uma mudança e uma transformação tem de ser feita de dentro para fora, não vai ser alguém de fora a vir dizer-te porque é que estás diferente, para onde é que evoluíste. Há alturas em que é importante delegarmos essa visão e queremos ter uma visão de fora. Neste caso, era importante a visão vir de dentro.
É eclética naquilo que ouve? Na música portuguesa, fora do fado, há pessoas com quem tenha afinidades, pessoais ou artísticas?
Há imensas. Oiço muita música e há muita altura em que nem sequer oiço fado, porque canto tanto fado que… [risos]. É sempre importante ouvir fado, vou muitas vezes a casas de fado e oiço muitos discos, tenho uma coleção de discos que para mim são importantes em termos de pesquisa. Mas oiço muita música portuguesa, nas suas várias fases — a parte anterior à dos nossos compositores de intervenção, que pegaram na tradição da música portuguesa e basearam-se nisso, mas também o que eles fizeram e as desdobragens e interpretações que se fizeram desde aí. Também oiço o pop e o rock que são feitos em Portugal.
Saiu há pouco tempo um disco do Tiago Bettencourt, de quem falo não por ser meu amigo mas porque acho que é um escritor de canções incrível. Também a Joana Espadinha, que foi minha parceira neste disco. Enviou-me uma canção [“O Menino e a Cidade”] feita propositadamente para mim quando não a conhecia. Foi um presente vindo não sabia bem de onde. Pedi-lhe só para esperar dois anos [risos], porque queria ficar com o tema. Mais tarde, quando estava a fazer este disco, convidei-a para minha casa para a conhecer e ela trouxe-me logo mais temas. Um deles era “As Rosas”, que fecha o disco. Vi ali uma compositora que me ouviu. Nunca ninguém compôs algo tão próximo daquilo que gosto e daquilo que sou como ela. Foi uma grande lufada de esperança e ar fresco ter uma compositora parceira. Somos as únicas compositoras inéditas do disco, as canções inéditas são todas nossas. Acho que esta relação vai continuar, certamente.
Acha importante haver um aumento de compositoras mulheres? Intérpretes houve sempre bastantes, compositoras nem tanto.
É verdade e no fado é uma coisa um bocadinho rara. Há algumas mulheres compositoras, mas é um meio em que tradicionalmente é muito a mulher que canta e interpreta e o homem que toca a guitarra, é o poeta e até é o dono da casa de fados. Há aqui também uma libertação de uma mulher que encontra espaço. Mesmo uma mulher produzir um disco é raro no fado. Sinto-me uma privilegiada por saber que o faço com vontade e consciência. Se sentisse que não era o caminho também não iria comprometer um disco meu. Assumir composição e produção foi o que acreditei, o que quis fazer e estou muito feliz com o resultado. Fico feliz que haja uma abertura a mulheres na conceção dos discos. Não acho que as mulheres não tenham sido capazes de o fazer, havia era uma pressão social que era exercida. Já não há muitas razões para continuarmos a achar que tem de ser assim, há muitas vitórias e muitos passos dados nesta direção.
O que é a levou a querer fazer nesta altura “o disco mais pessoal”?
Todos os meus discos foram feitos um bocadinho por mim. Escolhi repertório, relacionei-me com a música e estive presente na definição da produção. Agora, nunca tinha produzido um disco ou assumido o que aqui assumi porque não estava preparada para o fazer. Tudo acontece no momento certo e estar preparada é saber que tenho alguma coisa a dizer e capacidade para conduzir os músicos que vão tocar. Sempre soube o que gostava e não gostava de ouvir. Não quis fazer um disco mais íntimo antes porque também não sabia bem quem era. As pessoas vão crescendo e vão aprendendo a saber quem são.
Esse cuidado não existia antes, já? Antes de gravar o primeiro disco já tinha tido oportunidade de o fazer, mas preferiu esperar.
É uma busca de pertinência, uma busca de sentido para as coisas. A falta de sentido torna tudo vazio, porque o disco até pode sair, mas ao vivo sou eu quem tem de cantar todos os dias as canções e quem tem de arranjar forças para sentir que aquilo é verdade. Sou eu que tenho depois de passar uma verdade para os outros. Não tenho como fazê-lo de outra forma.
“Ir ao supermercado é uma espécie de Disneylândia. Diz-me que não sou um saltimbanco”
Há pouco falava de pessoas com quem conversa antes dos discos, a quem mostra canções. Alguma dessas pessoas é a pessoa que lhe ligou antes desta entrevista [a mãe, Teresa Siqueira, também fadista]?
Sim, sem dúvida, a minha mãezinha está sempre presente. É muito conhecedora e é muito exigente, mas ao mesmo tempo também gosta muito de mim. É uma crítica perfeita porque não tem nada a ganhar nem a perder comigo, só quer o meu bem. Depois é preciso haver outro tipo de críticas, porque as nossas mães são sempre um pouco tendenciosas [sorri]. A crítica da minha avó, por exemplo, não serve, é sempre tudo fantástico e espetacular, é tudo tão bom que deixei de levar a sério [risos]. Coitadinha, é tão apaixonada por aquilo que faço e por mim que não consegue ver nada de mal, é tudo perfeito. Temos de ter alguém que não nos querendo influenciar e só querendo o nosso bem, consiga ver quando estamos melhor e quando estamos menos bem. É importante.
Passa bastante tempo em digressão e algum tempo fora — pela Europa, também no Brasil onde tem tido reconhecimento. Quando regressa, quais é que são as primeiras coisas que faz? Consegue desligar-se da música?
Difícil… muito difícil. É o meu grande desafio: conseguir descansar a cabeça do que faço. Não fecho a porta do meu trabalho, a porta do meu trabalho é a minha cabeça, aquilo em que estou a pensar, aquilo que oiço. É difícil. Mas falava da minha mãe e é curioso: a minha mãe mora num bairro mais caseiro, Campo de Ourique. Uma das coisas que mais me descansa a cabeça é, como dizemos as duas, “ir espairecer”, que é andarmos ali à volta no bairro de Campo de Ourique. Ir espairecer é, sei lá, ir à farmácia, ir a uma loja, ir às compras, ir ao supermercado. Essas coisas corriqueiras da vida trazem-me um bocadinho de segurança, ajudam-me a libertar a cabeça. De alguma maneira são coisas que me dizem que também tenho uma rotina, que não sou um saltimbanco, que também tenho de ir à farmácia como toda a gente, que também tenho de pagar contas ou ir ao supermercado. Curiosamente, é o exercício de fazer essas tarefas que para muita gente cansam e são muito chatas, porque são rotineiras. Para mim que não é rotina, ir ao supermercado é uma espécie de Disneylândia.
Mas é uma Disneylândia com pedidos de fotografia e interpelações de pessoas. Ou isso não costuma acontecer?
Acontece de vez em quando, mas Campo de Ourique é um sítio por onde passo tantas vezes que as pessoas já me conhecem dali. Foi lá que vivi a minha vida toda desde que estou em Lisboa, porque antes vivi no Algarve. Agora moro noutro bairro, mas voltar ali é voltar à minha rotina. É uma boa dica para conseguir desligar: “Mãe, vamos espairecer”. São rotinas que me aproximam das pessoas que amo e que me tornam mais normal.
Se fosse uma artista popular norte-americana, talvez fosse mais complicado. Teria de viver numa espécie de micro-sociedade, naqueles bairros mais restritos, sempre com segurança atrás…
Isso é uma prisão, não é? Deixarmos de poder ser anónimos deve condicionar muito o bem-estar. Não quero imaginar o que possa ser, só o facto de não desligar da minha vida artística e profissional já é uma prisão. Ter momentos para poder estar com as pessoas de quem gosto, à vontade, sem ter que pensar no trabalho, descansa-me muito a cabeça. Tenho que encontrar um equilíbrio com o facto de aparecer de vez em quando. Também não sou a pessoa mais popular [risos]. Acho eu, não faço ideia. As pessoas quando vêm ter comigo vêm sempre com uma generosidade muito grande. É isso que sinto sempre, vêm contar-me o que é que sentiram com as coisas que ouviram. Isso para mim é uma bênção, porque muitas vezes dá-me pistas sobre o que as pessoas sentem do que vou escolhendo. Tenho que estar muito segura do que faço, mas ouvir isso dá conforto, é gratificante saber que as pessoas gostam.
Para escrever, precisa de algum enquadramento específico? De uma rotina?
Não, sai sempre de impulsos. Ou saem poemas inteiros, ou são rascunhos que têm depois de ser trabalhados ou ficam só como pequenos pensamentos. Mas são sempre impulsos. Tento não travar esses momentos, às vezes estou a meio de uma coisa qualquer com alguém e tenho de parar e gravar no telefone o que me surgiu. Acontece às vezes a meio da noite.
Se não anotasse ficava mais tarde a remoer, não?
É, sabendo que me lembrei de uma coisa que gostava e depois esqueci-me. A maior parte desses impulsos acabam como ideias pequenas que não se desenvolvem, mas o que escrevi e ficou registado nunca teve propriamente um método. Talvez por isso não seja uma escritora de canções assim muito consistente, não trabalho muito, devia trabalhar mais.
Já recebeu muitos convites para escrever para outros?
Não. Talvez duas ou três pessoas mas não. E nunca escrevi para ninguém.
É uma coisa que gostava de fazer?
Se alguém gostasse de cantar as coisas que escrevo seria uma honra para mim.
Na sua página oficial de Facebook, uma pessoa viu o anúncio de que ia lançar um disco chamado Maria. E disse que a escolha do nome era uma falta de originalidade, porque aparentemente o Miguel Gameiro tem um disco chamado Maria e a pessoa achou que havia aí uma ligação qualquer. Como é que se consegue gerir o ambiente nem sempre saudável das redes sociais, tendo mais de 300 mil pessoas que podem ver e comentar o que escreve?
Há uma responsabilidade na gestão. Ter 300 mil pessoas a seguirem-me no Facebook impõe-me uma responsabilidade moral e artística. As redes sociais são uma voz e uma oportunidade grande quando temos muitas pessoas a ouvir-nos. Imaginemos que tenho três seguidores: também tenho responsabilidade, mas ela aumenta quando o alcance é maior. Tenho de enviar para as redes sociais aquilo em que acredito, tenho de ter uma consistência no pensamento e nas mensagens. Uso as redes sociais para o meu trabalho, é o que me interessa, é o meu grande assunto ali. É esse assunto que trato. As pessoas depois têm todo o direito de interagir. Assim como posso usar aquela página para dizer o que sinto, penso e faço no meu trabalho, as pessoas podem reagir. Mas também elas são mais ou menos responsáveis por aquilo que dizem.
Não tenho de ficar presa, e não fico, à opinião e à vontade das pessoas em se manifestarem. As pessoas não têm de ter só boas opiniões, mas quando a opinião não faz sentido não me afeta, não me custa. Também não sou vítima de haters, graças a Deus. Não sei porquê, talvez porque me exponho menos e há menos aspetos da minha vida para utilizar. As pessoas podem sempre dizer coisas sobre o meu trabalho, mas senti sempre um respeito grande, nunca sofri com nenhum hater.
E casos contrários, de stalking [perseguição]?
Há pessoas que são muito presentes nas minhas páginas, querem e pedem muitas coisas. Mas isso mostra amor, mostra dedicação. Ter fãs é ter pessoas que nos cuidam, que têm connosco uma atitude de amor. A minha música pode consolar, pode alimentar, pode inspirar outras pessoas. Se eventualmente o faz e é importante, ainda bem. A verdade é que também outros músicos me fizeram isso a mim, também me inspiraram a criar e também me ajudaram a ultrapassar coisas que as pessoas vivem. Estamos cá uns para os outros.
Estava a pensar em atitudes menos saudáveis de stalking. Nunca as sentiu?
Em tempos um fã que escrevia sempre de um modo que não percebia, usava palavras portuguesas, mas as palavras juntas não formavam frases com sentido. Aquilo metia um bocadinho de medo. Depois dizia que queria casar comigo [risos], mas era assim num português macarrónico que não conseguia perceber. Mais do que ficar assustada, não percebia o que é que aquela pessoa me estava a querer dizer. Agora, nunca senti nada de sério e ainda bem. Também recebemos o que damos (e vice-versa, se calhar). Nunca fui muito invadida porque nunca me expus muito.
“Houve uma fase em que ser o que era não era muito cool“
A canção “Estrela” tem um destinatário, não tem? “Tu és a estrela que guia o meu coração (…) tu és a estrela e eu sou o peregrino”. É uma canção religiosa?
Também, mas não só. É uma canção para várias pessoas em particular, que são pessoas que me guiam. Como acho que cada uma delas é muito especial, pus só “tu és” e não [começa a cantar] “vocês sãaaao as estreeelas” [risos]. São algumas pessoas e podem vir a ser muitas mais, eventualmente, com a vida. Oxalá inspire outros a dizer o mesmo a outras pessoas. Nós não somos sozinhos, é impossível sermos. A canção tem uma fé muito implícita, tanto nos outros como em Deus. É uma fé de confiança, de saber que alguém me vai guiar. É engraçado que se estivermos numa estrada e ela for curva, não vemos o fim da estrada e isso não nos amedronta. É um bocado estranho: se não vemos quem é que nos diz que não há um abismo a seguir, um buraco? Vamos na estrada e cada vez que a estrada avança vai-nos mostrando o resto do caminho. Isso é que traz confiança. Andando, vamos descobrindo o caminho por nós mesmos. Caminhar é ir contra os próprios medos e confiar.
O fado deixou-se mesmo da vadiagem e é todo intelectualizado [como canta na canção “Pop Fado”, do novo disco]?
[risos] Isso é tão engraçado, é uma sátira a mim própria. E esse fado é de 1966, é do António Calvário, que fui conhecer pessoalmente para pedir autorização para gravar o tema. Não o conhecia, fomos tomar um café os dois, conhecemo-nos e contámos muitas histórias.
É engraçado como estes temas se perpetuam e repetem. Já naquela altura havia o medo de haver qualquer coisa que fosse conspurcar o fado, que fosse retirar-lhe a essência. Acho que introduzi um bocadinho de humor sobre mim própria e sobre a minha geração. O facto do tema poder continuar a aplicar-se é engraçado, prova que o fado terá sempre alguém num extremo que o puxa para um caminho contemporâneo e alguém no extremo oposto que se sente desconfortável e ofendido porque querem mudar o fado — e a pessoa tem medo que ele desapareça. Os dois extremos são fundamentais para o fado se manter. Por um lado, é importante haver quem preserve a raiz do fado com aquela rigidez que não permite exceções. Por outro, é importante também haver quem não se esqueça que está no dia de hoje, que o fado é uma língua viva de retrato social do presente e que não pode ficar refém do passado. É bom haver quem ache que quem não se reinventa e continua nas versões dos que já foram também não está a dignificar o passado. Há esta dualidade e a letra satiriza as duas posições. Estamos no presente e temos que ser o que nós somos. Esse tema vai continuar a existir daqui por mais 60 anos.
Mas não é vital conhecer a história do fado e a sua linguagem para o fazer avançar?
Acho que sim. Numa linguagem de raiz, as mudanças fazem-se de dentro para fora, é aquilo em que acredito. [pausa] Mas posso estar enganada, não ponho essa hipótese de lado. Mas acredito nisto: conhecendo bem a linguagem há uma seiva que nos alimenta e quando se vem de fora não se está alimentado. É como uma árvore: podemos querer que ela cresça muito, mas não a podemos sustentar no ar só com as folhas e a copa, ela morreria sem a raiz. O fado é uma forma de expressão que tem uma raiz e que tem características. Há cantautores que são influenciados por várias coisas e não têm um estilo próprio mas criam o seu e isso também é legítimo. Quando se muda muito e se tenta fazer muitas alterações, pode-se largar a raiz e aí pode eventualmente morrer o género de onde a música vem, neste caso ela deixar de ser fado. Mas a música não morre nem perde a validade ou a pertinência. É verdade que o fado também muda de fora para dentro, porque é influenciado pelo mundo, mas é importante conhecer bem a raiz.
Havendo cada vez mais cantores de fado, é-lhe fácil identificar quando alguém não vem dessa raiz?
É, não é difícil. Mas também não sei se interessa assim muito.
Disse um dia que foi com o fado que aprendeu “a ler, a escrever, a ver o mundo, a beber café, a ter as minhas amizades, se calhar a viver as minhas emoções”. O que é que isto quer dizer? Como é que o fado lhe molda as emoções e as amizades?
O fado tem-me ensinado que cada palavra tem uma energia própria, que a forma como se diz as palavras traz uma emoção. Acabou por influenciar a forma como via o mundo, como identificava os elementos mais importantes por exemplo num poema. Ensinou-me a ler poemas, a interpretar, a cantar e a comunicar. Daí, é um fio que se puxa e nos leva a outros lugares. Houve uma altura da minha infância em que o fado não era muito querido das pessoas da minha geração. Isso também me ensinou a crescer, foi uma dor que me deu capacidades para encarar o mundo e para saber escolher os meus amigos, para saber o que era a empatia. Não posso negar o meu fado para ser tua amiga, tenho que ir com tudo o que sou. Foi uma aprendizagem. Lembro-me que quando fui viajar, pensava: como é que me posso apresentar? Quando estás a viajar durante um ano com a mochila às costas, sozinha, e e todos os dias há pessoas que não vais voltar a ver que te perguntam ‘quem és?’, não vais ficar comprometida com elas. Podes escolher dizer que és uma atriz de cinema, uma enfermeira, qualquer coisa. Eu arrisquei ser o que era, mas com algum medo no início, porque me lembrava dessa fase em que ser o que era não era muito cool.
Teve mesmo essa rejeição? Os seus colegas de escola ouviam-na cantar e não ficavam impressionados, riam-se?
Acontecia isso fora de ambientes de casa de fado, onde estava protegida pelos meus pais e pelas pessoas que comungavam do mesmo prazer que era o fado. Aí, tinha uma espécie de alívio, respirava fundo, sentia-me em casa — mesmo rodeada de mais adultos do que de pessoas da minha idade. Sentia-me reconhecida, não artisticamente, mas como alguém que não era estranha, que era normal, que nem passava a ser cool nem deixava de o ser. Fazia parte daquele ambiente.
Fora desse ambiente, o fado trazia estranheza às pessoas que me rodeavam, sentia uma marginalização que acontece naturalmente nessas idades. Não tinha ainda personalidade, tinha medo de ser quem era. Há, nessas idades, uma pressão para se ser cool, para se ser aceite, para se ser reconhecido como alguém que não é estranho. Ser estranho nessas idades é uma coisa que dói muito. É curioso que daí para a frente as pessoas querem ser diferentes e estranhas, mas ali ainda não. Quando comecei a crescer e a perceber que o fado me trazia muito prazer e força, houve um momento em que disse que era fadista, que adorava cantar fado e que ou vinham comigo ou não vinham. A confiança foi crescendo aos poucos. Mas mesmo já nessa viagem, dizer que cantava uma música tradicional do meu país chamada fado e isso trazer curiosidade às pessoas espantou-me.
“Agora entendo a canção que ouvi uma vida inteira”, canta [na canção “Poeta”, do novo disco]. A canção a que se refere é o fado ou é outra coisa qualquer?
A canção é o fado mas também é outra coisa qualquer, nomeadamente o facto das pessoas serem sementes de emoções para os outros, serem fonte de amor. O poeta é o símbolo disso, é a pessoa que escreve os poemas, que sintetiza a vida em pequenas poesias. É uma arte, um dom quase transcendente. Para mim é transcendente que os poetas tenham o dom de sintetizar a vida e o que sentimos, que expressem numa frase aquilo que às vezes não conseguimos explicar em 300 palavras.
É curioso utilizar o “eles”, depois de um disco em que canta canções que escreveu…
Sim, eles, não eu. Há para mim uma relação de diferenciação entre letras e poemas: eles podem ser a mesma coisa ou não. Não me considero poeta, considero que faço letras para fados e gosto muito de cantar as canções. Mas nem sempre as canções são poesia, nem sempre trazem algo novo.
Cantar pela “sobrevivência emocional”, não para ser “famosa”
Começou a cantar muito cedo, na Travessa do Embuçado [casa de fados que pertencia à mãe de Carminho, Teresa Siqueira]. Depois foi estudar marketing e de seguida viajar pelo mundo. O marketing era o plano B da música ou era outra coisa qualquer?
Era o plano A. Não pensava nessa altura que havia a possibilidade de ser fadista de profissão. O fado era tão fácil, tão acessível, estava tão próximo e era tão óbvio que para mim ser profissional passava por tirar um curso, ter uma profissão, um computador [ri-se], um horário e uma tarefa [risos]. Dizia ao meu pai: como é que posso ser fadista? Não pode ser. Ele dizia-me: nem é impossível fazer-se aquilo de que se gosta, na verdade é uma bênção, como também não penses que é uma coisa que não te vai dar trabalho. Disse-me que não era só aquilo que eu pensava que era: abrir a boca e cantar. Isso revelou-se verdade.
Quando o meu curso acabou, comigo super infeliz e sem conseguir vislumbrar nenhum futuro, a viagem foi importante. Já na altura três editoras tinham-me convidado para gravar um disco e tinha managers que me convidavam para fazer algum trabalho, porque estava na [casa de fados] Mesa de Frades, na altura, e havia essa janela para as pessoas me ouvirem. Não aceitei, não estava preparada, sentia que não tinha nada para dizer às pessoas. Mas fiquei com a pulga atrás da orelha: será que posso ser fadista profissional? Será que é uma possibilidade? Se estas pessoas me estão a convidar, três editoras multinacionais a convidarem-me… Depois diziam-me: [diminui o tom de voz, como se estivesse a conspirar] tu não te podes esquecer de uma coisa, o comboio da vida só passa duas vezes e à segunda vai cheio. Tinha a certeza que era mentira. Aí não tinha dúvidas, tinha a certeza que era mentira, que me ia embora e que se fosse para acontecer, aconteceria. Às vezes miúdas mais novas que estão a começar e querem gravar um disco vêm-me perguntar o que devem fazer. Digo-lhes para irem descobrir o que é que têm para dizer, seja aqui, a cantar numa casa de fados, a treinar e a descobrir o talento na prática, ou a descobrirem-se interiormente noutras áreas, estudarem outras formas de expressão, cultivarem-se. Para evitarem lançarem uma coisa que depois não tenha conteúdo, não faça sentido.
Para que não olhem para trás passados 20 ou 30 anos e tenham vergonha…
Ou um ano [risos]. As pessoas mudam tão depressa…
Se tivesse sido impossível viver da música, há alguma coisa que se visse a fazer?
Tenho imensa dificuldade em fazer esse exercício, não sei. Há outras áreas que me interessam: artes plásticas, por exemplo. Falávamos de espairecer e há tempos fui tirar um curso de aguarelas porque me ajudava a descansar a cabeça. Entretanto, deixei de ter tempo, com pena minha, mas há interesses que tenho. Artes, música… acho que estaria sempre ligada às artes, à forma de me expressar. Não canto para ser famosa, canto para sobreviver. Porque isto tem muito mais a ver com as minhas emoções e com a minha sobrevivência emocional do que propriamente com querer ser artista e “famosa” [acentua a palavra com ironia]. Até porque ser artista não tem de ser ter quem nos oiça, pode ser apenas ter a necessidade de nos expressarmos artisticamente formalizando algum sentimento ou pensamento. Formalizá-lo através de um objeto, uma peça, uma expressão performativa. Ser artista, no meu caso, não se deve a uma necessidade de me apresentar em palco, deve-se a uma necessidade de me expressar. Agora, é uma bênção poder expressar-me em cima de um palco e ter quem me oiça. É a maior bênção.
O que é que sente que ficou dessa viagem pelo mundo que antecedeu a decisão de se tornar fadista e cantora profissional? Uma forma de olhar para as coisas, de ver o mundo, de se relacionar com outros?
O que me trouxe sem dúvida nenhuma foi uma consciência do outro e da diferença. Aprender a ouvir e comunicar respeitando a diferença e respeitando o outro. E encontrar uma pertinência no que é diferente. Depois, a superação na prática: ir sem nada, não levar telemóvel, não estar contactável por ninguém, só falar com a família quando ia a um cybercafe em que aproveitava também para fazer uns posts no blogue que tinha. A sensação de estar doente na Nova Zelândia, sozinha e sem ninguém… uma sensação horrível, de desamparo, ainda por cima num país tão asséptico emocionalmente, onde senti uma falta de olhar. As pessoas estavam todas tão confortáveis e tinham um nível de vida tão confortável que não olhavam umas para as outras. Estava doente e as pessoas não me ajudavam, ao passo que na Índia, por exemplo, qualquer pessoa ajudar-me-ia.
Fez-me ficar alerta com o que somos e com o que desejamos ter. A aquisição, a relação com as coisas, o materialismo, são coisas com que me relaciono de outra maneira. Tudo isto são pistas que continuo a pegar para aprender mais, porque continua a ser uma luta [sorri], pelo menos para mim. Aprendi que na dádiva do voluntariado recebemos outras coisas. Como não há uma troca comercial, um pagamento envolvido, as pessoas por norma retribuem-te com o que pensam sobre ti e sobre o que fizeste. São pistas para perceberes quem és, são espelhos de ti. Sendo útil para outras pessoas, trouxe mais do que o que ofereci, porque a mim deu-me coisas para a vida toda, a eles deu-lhes coisas momentâneas, úteis mas que se vão renovando com o tempo e com outros protagonistas.
“É uma vocação que me ultrapassa”
Sente-se a “mulher vento” que canta neste disco? A mulher que nasceu para cantar e que tinha como destino cantar?
Sinto. [pequena pausa] Sinto. Por acaso quem me inspirou a fazer esse tema foi a Marisa Monte, no momento em que estávamos a fazer um concerto juntas nos Jardins de Serralves. Estávamos nos camarins e ela estava a aquecer a voz. Estava muito vento, batiam portas, os músicos já tinham ido embora, estávamos só as duas. Eu ouvia no fundo da sala aqueles uivos que se confundiam com o som do vento e com o bater de portas. Aquilo inspirou-me, fez-me pensar que uma vocação pode ser libertadora para o mundo inteiro mas pode ser uma prisão para a própria pessoa. A “mulher vento” é a voz do vento, tem essa função, esse destino. Se não cantar não há vento no mundo, não se sopram as velas, não se acendem as fogueiras, não são levados os recados dos que esperam para lá do mar. O mundo pararia, é uma peça de engrenagem para que o mundo funcione. Ela poderia ter o desejo de ser outra coisa, mas é uma espécie de destino, para que o mundo funcione tem de se entregar de corpo e alma àquela função de cantar o vento.
De alguma maneira, pode ser um retrato homónimo, embora não seja totalmente fixado. Sinto que cantar é uma vocação que me ultrapassa, tenho de o fazer para ser feliz e provavelmente para fazer feliz os outros, porque só feliz é que poderei tornar feliz os outros. Aquilo que me ultrapassa com o que canto é o que as pessoas sentem. As pessoas dizem-me que são felizes a ouvir-me, mas isso passa pela história da pessoa. É verdade que se eu não fizer canções e não as cantar, elas não existem. É um bocadinho a história das pessoas todas, que têm todas a sua vocação: se pararem, o mundo para. Cada um tem o seu lado cármico, se parar, e às vezes apetece — mas não podemos –, o mundo vai parar.
Quando é que lhe apeteceu?
Quando a alma se acomoda e me mecanizo. É muito importante desacomodar-me sempre e olhar para as canções como se fosse a primeira vez. Só dá vontade de parar quando uma pessoa não consegue fazer de um momento um momento único, um momento realmente especial, quando falta a energia. E aí vem o cansaço e a fraqueza. Mas graças a Deus esses momentos são raros e também nos alimentamos da energia à nossa volta. No meu caso, dos meus músicos, das pessoas que trabalham comigo, da minha família… tudo isto é uma engrenagem.
Já contou uma vez que a Amália a ouviu cantar e que ela não gostava muito de ouvir crianças cantar fado. A Carminho gosta?
Até percebo que a Amália não gostasse porque há poucos fados que uma criança pode cantar, há muito pouca coisa a dizer num estilo destes que tenha sido escrito para uma criança dizer e cantar. Às vezes as pessoas caem no erro de induzir as crianças que estão no fado a cantar fados que são de adulto. Isso chocava provavelmente a Amália e também me choca a mim. Mas ao mesmo tempo é um contra-senso porque é preciso aprender de criança este estilo. Acho que as crianças devem cantar sempre que quiserem. A minha mãe ajudou-me sempre a escolher os poemas, quando era pequenina. E ensinava-me que era importante cantar coisas que conseguisse perceber, para poder trazer uma emoção minha. Isso ensinou-me muito, porque mais à frente quando aprendia mais ia incluindo novos poemas que me fizessem sentido.
Disse uma vez: “Já vi tantas pessoas que vendiam tanto, que faziam tantos concertos e de repente as suas marcas desapareceram. Nada é garantido, é preciso ser-se coerente. Esse é o maior desafio, é o meu maior desafio. Tem que se ir contra a expectativa de outros e dizer que não a coisas que parecem tentadoras”.
Sim.
No seu caso e no seu percurso, que coisas foram essas?
Por exemplo esta questão da cedência do álbum. Há muitas pessoas que não tendo uma vontade de me tentarem, têm uma visão e um olhar sobre o que lhes parece que é o melhor caminho para mim. Não se trata de me quererem induzir num caminho que não é o meu, mas de acharem genuinamente que as ideias que têm me levarão ao meu caminho. Só nós é que podemos saber se as ideias que temos e as que os outros têm nos levarão ao nosso caminho. Contudo, quero ser sempre influenciada pelas ideias que as pessoas me dão, ouvi-las, pensar sobre elas. É muito importante não estar sozinha, acho que a maior parte das pessoas que acabam por desaparecer tinham a sensação de omnipotência, de auto-suficiência. Aí, uma pessoa pode-se esgotar, porque é importante receber de fora como é importante passar por uma triagem própria, nossa.
Também é preciso por vezes dizer que não a coisas que parecem tentadoras. Essas tentações podem ser artísticas mas também mais mundanas. Sabermos que se fizermos uma canção de determinada forma ela vai ser mais ouvida, porque torna-se mais fácil que as pessoas cheguem a ela. Mas isso para mim não é em si uma razão para alterar uma canção. Também sei que expondo mais a minha vida teria mais seguidores, é uma curva matemática que está provada, as pessoas criam mais empatia com quem se expõe mais. Mas não tem de ser um caminho obrigatório, podemos abdicar de alguns benefícios em prol da verdade.
Ainda sente mesmo que há risco de um dia deixar de ser ouvida? Tem uma carreira firmada, tem também, graças a isso, uma máquina em seu redor, um conjunto de profissionais a trabalhar consigo.
Há riscos, claro. É preciso estarmos sempre atentos ao que se faz, ao que outros querem que façamos, àquilo que somos. Temos de estar consciente que as pessoas que nos acompanham também mudam, tal como nós. Este disco era o álbum que queria fazer, mas ele podia não fazer sentido para a minha editora ou para as pessoas que trabalham comigo — e isso podia ser um problema, podia ser difícil. Não sei que o que virá aí mas é importante ter quem nos ajude a trabalhar as coisas. Posso fazer o melhor disco do mundo, mas se não tiver quem o trabalhe e o ajude a desenvolver, quem o promova e quem estiver interessado em saber a história dele, é o pior de todos. Não chegaria a ninguém, seria um objeto obsoleto.
Obrigado, Carminho.
Obrigada.