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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Carne de vitela, maçãs e queijo da Serra. Como a seca ameaça os agricultores portugueses

Em Trás-os-Montes, produzir 1 kg de carne pode vir a custar o dobro. Na Beira Alta, a produção de maçãs está em risco. E na Serra da Estrela, escasseia leite para o queijo. Falta água em todo o país.

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“Fevereiro quente traz o diabo no ventre.”

Hugo Pereira recorre a um provérbio “dos antigos” para antever o que poderá ser o próximo ano para a agricultura em Portugal: um problema grave. O agricultor, natural de Bragança, tem dezenas de hectares de terrenos em Trás-os-Montes, herdados dos seus pais, onde produz carne de vitela, que vende para o circuito de talhos da região Norte. Ouvimo-lo evocar o ditado enquanto percorremos uma das suas parcelas de terreno, 12 hectares semeados com azevém e aveia que deveriam crescer até maio, ser colhidos, secos e enfardados para serem transformados no feno que alimentaria os seus animais durante o ano agrícola seguinte (maio de 2022 a maio de 2023). Está, inclusivamente, hesitante em encomendar as três toneladas de adubo de que precisa para fortalecer o crescimento dos fenos até maio: não só os adubos estão mais caros como, sem água nos solos, o adubo não vai derreter e penetrar a terra, tornando-se inútil. As plantas já deviam, por esta altura, ter mais de 20 centímetros de altura, pintando de verde o enorme terreno — mas a seca grave que atravessa o país de norte a sul deixou-as rasteiras, afogadas em terra seca e poeirenta. Se nos próximos meses não chover “a sério”, dificilmente o feno aqui recolhido permitirá alimentar os animais de Hugo Pereira durante mais de meia dúzia de meses, obrigando à compra de mais alimento e aumentando muito os custos de produção de um quilo de carne — pelo qual os compradores continuarão a pagar o mesmo preço.

A solução poderá ser abandonar a produção. “Se não tenho como alimentar as vacas, não as tenho. Não as vou deixar morrer à fome.”

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Percorremos 150 quilómetros rumo a sudoeste, até Moimenta da Beira, na Beira Alta, a região de origem de mais de metade das maçãs produzidas em Portugal. José Teixeira, responsável da maior organização de produtores de maçã da região, recebe o Observador com menos crença nos ditados populares. Esses provérbios, diz-nos, funcionavam quando os anos eram iguais e previsíveis, mas as alterações climáticas tornaram impossível a confiança na previsibilidade dos anos agrícolas. As árvores das macieiras estão sem folhas, como sempre acontece no inverno, durante a fase de repouso vegetativo que sucedeu à última colheita, entre agosto e outubro, e à queda das folhas no outono/inverno. A partir de março, as árvores começam a abrolhar, com o surgimento dos primeiros gomos, de onde vão surgir mais tarde as flores e os frutos, que vão ser colhidos novamente a partir de agosto. Em março, as macieiras vão precisar de muita água nos solos para que esse processo decorra com eficácia. Era suposto que essa água se acumulasse nos solos durante o inverno, ao ponto da saturação — José Teixeira diz-nos que, muitas vezes, nessa fase, é até difícil entrar com um trator no pomar devido à quantidade de água na terra. O cenário não podia ser mais contrastante: o solo está completamente seco. Percorrê-lo faz levantar pó. Se continuar assim, o início do abrolhamento, em março, terá de ser acompanhado de um início da rega dos pomares (que só deveria começar no fim de abril), gastando mais rapidamente as reservas de água, que, por seu turno, também não foram devidamente reabastecidas no inverno. O resultado? Menos maçãs, de pior qualidade, produzidas com muito mais custos (adubos e energia para bombear água, por exemplo), vendidas a preços muito mais baixos para processamento industrial (compotas, iogurtes, sumos) em vez da tradicional venda de fruta fresca. “Estamos no limiar da rentabilidade”, diz José Teixeira. E um ano de seca pode trazer saldos negativos ao setor.

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Setenta quilómetros a sul dos pomares da Beira Alta, nos arredores de Gouveia, está Ricardo Pimenta a pastorear cerca de uma centena de ovelhas de raça bordaleira com a encosta noroeste da Serra da Estrela em pano de fundo.

Os animais respondem a cada som emitido pela boca do pastor. “Elas sabem bem quem as criou”, explica, enquanto as chama para uma fotografia de grupo. Aquele terreno no sopé da Serra da Estrela é uma das muitas parcelas que Ricardo Pimenta tem à disposição das suas cerca de 300 ovelhas — 80 hectares de pasto, entre terrenos próprios e terrenos cedidos ou alugados. Mas, este ano, falta alimento para os animais. A seca deixa os pastos mirrados, e ouvimos um relato parecido ao de Hugo Pereira, feito em Bragança: “Num ano normal, esta erva devia ter 20 centímetros de altura.” Não passa, agora, de erva rasteira, crescida apenas em alguns pontos do terreno — noutros, só terra empoeirada. As ovelhas estão a comer menos e, por conseguinte, a produzir menos leite. Para assegurar a alimentação correta dos animais, Ricardo Pimenta terá de aumentar a compra de suplementos alimentares (que têm de ser naturais, para que o leite não perca a certificação de Denominação de Origem Protegida), o que subirá consideravelmente os custos de produzir um litro de leite: mais dinheiro gasto, menos quantidade de produto final, que continuará a ser comprado ao mesmo preço pelas queijarias da região que produzem queijo da Serra da Estrela. Neste caso, a falta de alternativas (o leite para o queijo da Serra não pode vir de outra origem que não as ovelhas bordaleiras da região) poderá pôr em causa a capacidade de produção deste queijo ao longo do ano de 2022 — e, eventualmente, levar a um aumento de preços.

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Nos primeiros dias de fevereiro, o Observador visitou estes três produtores agrícolas em Trás-os-Montes, na Beira Alta e na Serra da Estrela, para observar os impactos — presentes e futuros — da seca na agricultura portuguesa. Os dados do IPMA são preocupantes: a totalidade do território nacional encontrava-se, no final de janeiro, em situação de seca (incluindo 11,5% do território em seca extrema, 34,2% em seca severa e 53,7% em seca moderada). São números que contrastam totalmente com fevereiro do ano passado (quando nem um metro quadrado de Portugal continental estava em situação de seca) e com o que é habitual no inverno em Portugal. O país está nesta situação de seca desde novembro de 2021, o que está a deixar os solos portugueses sem humidade. E, ao contrário do que é habitualmente notícia quando há seca em Portugal, não são só o Algarve e o Alentejo que sofrem: falta água em todo o lado, incluindo nas Beiras, no Minho e em Trás-os-Montes. Isso já está a pôr em causa a produção de produtos bem conhecidos dos portugueses, incluindo a carne de vaca em Trás-os-Montes, as maçãs da Beira Alta ou o queijo da Serra da Estrela.

Além de colocar em risco produtos regionais clássicos do país, a seca ameaça a já débil sustentabilidade económica dos agricultores portugueses. O Observador visitou os produtores agrícolas para fazer as contas ao prejuízo que pode advir da seca: para Hugo Pereira, o custo de produzir um quilo de carne de vitela pode duplicar; nas contas de José Teixeira, o custo de produção de um quilo de maçãs pode aumentar em até 50%; e para Ricardo Pimenta produzir um litro de leite de ovelha pode custar mais 25% devido à seca. Nos três casos, uma certeza: ninguém lhes vai comprar os produtos por um preço mais elevado, apesar de custarem mais a produzir. No fim de contas, é o produtor quem absorve a maioria, ou a totalidade, do prejuízo da seca.

Produzir um quilo de carne pode custar duas vezes mais

Hugo Pereira herdou dos pais a exploração de gado que ainda hoje mantém na povoação de Frieira, no extremo sul do concelho de Bragança. A propriedade, pertencente à família desde tempos imemoriais, chegou às mãos da mãe de Hugo ainda como pequena exploração familiar gerida pelos avós. Foram os pais de Hugo que começaram a produzir carne em maior escala. No final dos anos 90, com apenas 20 anos de idade, o filho, que sempre se quisera dedicar à agricultura, pegou na exploração. Uma operação de urgência ao pai obrigou Hugo a interromper os estudos e a tomar as rédeas da exploração. Inicialmente, o agricultor ainda conseguiu viver da produção agrícola — mas rapidamente se desenganou.

“O rendimento só da exploração não era suficiente para dar a educação e o conforto aos meus filhos”, diz, hoje com 43 anos, ao Observador. “Se eu me dedicasse só a isto, tirava 500 euros por mês. Quando fiz o projeto, isto ia ser a minha vida, mas afinal não foi.” Há cerca de 12 anos, pouco antes do nascimento do filho, Hugo Pereira começou a trabalhar na Federação da Agricultura de Trás-os-Montes e Alto Douro (FATA), como técnico de apoio aos agricultores da região. Mantém a sua produção de carne, que ainda é auto-sustentável, mas não consegue obter dali rendimentos suficientes. “Todo o dinheiro que se tira aqui, gasta-se aqui”, resume.

Uma produção tradicional de carne de vaca, como a de Hugo, produz grande parte da alimentação que os animais consomem. Uma das componentes fundamentais são os pastos, alguns naturais, que resultam do crescimento espontâneo de plantas no terreno, e outros semeados pelo próprio agricultor. Outra componente central da alimentação das vacas são os fenos, produzidos através da plantação, colheita, secagem e enfardamento das gramíneas. Olhemos, a título de exemplo, para o primeiro terreno que Hugo Pereira nos mostra. São 12 hectares semeados com azevém e aveia. Todos os anos, o agricultor trabalha a terra, semeia-a, faz crescer o feno, colhe-o, seca-o e enfarda-o, para produzir os grandes rolos de 200 quilos que são levados para as manjedouras das vacas. A colheita é feita em maio e serve para alimentar os animais até ao mês de maio seguinte — enquanto o agricultor repete o processo.

"O rendimento só da exploração não era suficiente para dar a educação e o conforto aos meus filhos."
Hugo Pereira, produtor de carne de vitela

Isto significa que, este ano, as vacas de Hugo Pereira estão alimentar-se dos pastos naturais que existem no terreno agora e dos fenos que foram colhidos em maio de 2021 e estão armazenados nos palheiros.

A seca que afeta o país desde novembro está, por isso, a refletir-se na exploração de Hugo Pereira a dois níveis. No que toca aos pastos naturais, estão mais secos do que alguma vez estiveram — e as vacas passam lá pouquíssimo tempo. Sem encontrar alimento, forçam o regresso às manjedouras, onde se alimentam de feno em maior quantidade. A menor disponibilidade de pastos naturais significa que as reservas de feno estão a ser consumidas a um ritmo superior ao habitual. Mas o problema não se esgota aqui: nos terrenos onde Hugo está a produzir os fenos que deveriam alimentar os animais entre maio de 2022 e maio de 2023, a seca está a dificultar seriamente o crescimento das plantas.

Os minúsculos rebentos verdes não se elevam a mais de cinco centímetros do chão seco, quando por esta altura deveriam estar acima dos 20 centímetros. Entre o trabalho da lavoura e as sementes, Hugo Pereira já investiu neste terreno este ano cerca de 3 mil euros. Para produzir os rolos de feno, o agricultor ainda precisará de investir outros cerca de 3 mil — incluindo largas centenas de euros em adubos (que, sem água, se poderão revelar inúteis), horas de trator, combustíveis, enfardamento, e por aí fora. No final, a produção de feno em 12 hectares custa cerca de 6 mil euros. Num ano normal, o feno oriundo deste terreno alimentaria todos os animais de Hugo Pereira durante quase dois anos. Este ano, a perspetiva mais otimista aponta para um produto final que dará para apenas seis meses.

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Isto significa que o agricultor arrisca ficar sem capacidade de assegurar, na sua exploração, o alimento necessário para os animais no próximo ano agrícola. “As reservas vão-se gastar este ano”, assevera Hugo Pereira. “A mim, a seca vai ter repercussão no próximo ano. Até ao final deste ano, tenho reservas. Mas, e depois?”

Depois, as alternativas não são animadoras. Uma delas passa por comprar mais rações, alimento que atualmente é dado como complemento à alimentação natural. Outra passa por comprar fenos a produtores de forragens, que terão necessariamente de vir de regiões onde a produção é feita com recurso a regadio, como o Ribatejo ou Espanha — e, naturalmente, também essas regiões estão a sentir o efeito da seca. No fim de contas, o que se perspetiva no horizonte é um enorme aumento de procura de rações e fenos no próximo ano, com o consequente aumento de preços para os produtores de animais. Aliás, alguns desses aumentos já começaram a sentir-se, bastando para isso a perspetiva de uma subida da procura. Um saco de 30 quilos de ração já subiu de 11 para 12,50 euros, o que aumenta substancialmente o custo de uma encomenda de grandes dimensões.

Feitas as contas a todos os custos, Hugo Pereira calcula que gasta cerca de 5,50 euros para produzir um quilo de carne de vitela. Trata-se de um valor bem acima daquele que lhe pagam pela carne — “num dia bom”, 4,50 euros por quilo. No ano passado, sob o argumento de que as vendas para restaurantes tinham baixado abruptamente devido à pandemia, os negociadores de carne conseguiram baixar para cerca de 4,15 euros por quilo o preço a que compraram a carne aos produtores.

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Com uma venda de cerca de duas dezenas de vitelos por ano, com um peso médio de 180 quilos (as fêmeas) a 230-280 quilos (os machos), Hugo Pereira consegue vender um vitelo por cerca de mil euros, o que o deixa com um rendimento total de menos de 20 mil euros com a venda da carne. Basta recordar que só com a produção de fenos no seu terreno de 12 hectares gastou 6 mil euros. Juntando a esse gasto todo o restante gasto com a manutenção da quinta, com as rações, com os combustíveis, com os arranjos do trator, com a eletricidade, entre outros gastos, a despesa da quinta rapidamente supera a receita. No final, só mesmo os eventuais subsídios que o agricultor receba permitem fazer face à despesa e amealhar algum dinheiro no final da produção. Mas, com a seca, nem isso será suficiente. Hugo faz as contas por alto, avisando que há vários fatores em causa, e estima que, no pior cenário, o custo de produção de um quilo de carne pode aproximar-se dos 10 euros no próximo ano. Será incomportável.

Hugo Pereira ainda lembra outros tempos, em que a produção de carne lhe permitia viver. “Há 20 anos, com as condições que tenho aqui, eu vivia”, garante, dando alguns exemplos. “Um saco de ração que há 20 anos custava 300 escudos [2 euros] hoje custa 12,50 euros. Um litro de gasóleo agrícola que custava 50 escudos [34 cêntimos] passou a 1,20 euros. Uma saca de adubo passou de 500 escudos [3,37 euros] para 18,50 euros.” E a carne? “O preço da carne de há 25 anos é rigorosamente igual ao de hoje.”

Aos vitelos que Hugo tem na quinta ainda não falta comida, mas a médio prazo a seca pode tornar absolutamente incomportável a manutenção da exploração. No final da conversa com o Observador, o agricultor decide-se a encomendar o adubo — faz a encomenda mesmo ali, ouvindo do outro lado a notícia de que a Rússia interrompeu a exportação de nitrato de amónio, um elemento fundamental para a produção de adubos e fertilizantes, o que promete fazer subir os preços. “Se não encomendasse e depois chovesse, arrependia-me”, desabafa Hugo, para quem só mesmo o “vício” da agricultura evitará um encerramento total da exploração. Esse poderá ser o destino de outros produtores, avisa Hugo, que conhece bem o setor na região devido ao seu trabalho na FATA. Se as grandes superfícies preferirem importar mais carne para manter os preços, em vez de pagar mais pela produção nacional, então o grande impacto da seca, nas prateleiras dos supermercados, vai estar mais presente na origem do que nos preços — que se situam, habitualmente, entre os 10 e os 20 euros por quilo, consoante as peças.

Quanto a Hugo, se os custos se tornarem efetivamente incomportáveis devido à seca, a opção será não emprenhar as vacas reprodutoras para o ano, vender a maioria delas para abate (para hambúrgueres ou outras carnes menos nobres, poderá vendê-las a 2 euros por quilo) e guardar algumas apenas “para as ver andar ali”.

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O custo de produzir um quilo de maçãs pode superar a receita

Quando pensamos em maçãs portuguesas, é inevitável que nos lembremos de Alcobaça e das frutas da região Oeste. Mas a verdade é que perto de 60%  da produção nacional de maçãs tem origem na Beira Alta, e não no Oeste. É um potencial de produção de cerca de 40 mil toneladas de maçãs todos os anos, produzidas em 1.500 hectares distribuídos por cerca de 300 produtores — embora os granizos tenham reduzido a produção nos últimos anos. “Falta-nos marketing”, lamenta José Teixeira, o engenheiro agrónomo de 51 anos que há dois coordena a organização de produtores Beyra Douro Fruits, com sede em Moimenta da Beira, enquanto conduz o Observador por um pomar de 5,5 hectares em Vila da Rua, às portas da sede do concelho.

A paisagem é desoladora, mas ainda não é efeito direto da seca. Entre outubro e março, as macieiras encontram-se em repouso vegetativo, depois de terem visto as folhas caírem durante o outono e o inverno. Nesta altura, as árvores não têm grande atividade nem precisam de água para sobreviver — mas era suposto que, durante o inverno, a água da chuva se acumulasse em grande quantidade nos solos, de modo a saturá-los e a permitir o correto desenvolvimento das macieiras a partir de março. É nesse mês que decorre o abrolhamento, fase do ciclo anual da macieira em que as árvores retomam a sua atividade normal, crescendo as folhas, as flores e os frutos. Aí, as macieiras precisam de muita água, aproveitando toda a humidade que foi acumulada no solo ao longo do inverno para dar início ao processo de crescimento e amadurecimento dos frutos, que se prolonga até agosto. Durante todo esse período, os pomares são regados com técnicas de rega gota-a-gota.

Entre agosto e outubro, os produtores colhem os frutos, num processo gradual que está relacionado com as variedades de maçã — as Gala são as primeiras, em meados de agosto, e as Fuji são as últimas, em outubro. A partir daí, os pomares entram numa nova fase de repouso vegetativo, voltando a acumular água nos solos para o próximo abrolhamento.

Vista aérea do pomar à esquerda. À direita a barragem do Vilar praticamente seca

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“As árvores vão começando a entrar em atividade devagar, como um carro a desenvolver na autoestrada”, compara José Teixeira. “Daqui a um mês, vamos ter o abrolhamento. No inverno, vamos podando e controlando as infestantes.”

O reflexo da seca já é bem visível nos solos, profundamente secos e empoeirados, mas ainda não se traduz num impacto no desenvolvimento das árvores. “Devíamos começar a regar em abril. Elas agora estão em repouso vegetativo, não precisam de água. O abrolhamento começa em março e em condições normais teríamos água no solo, pois a água é fundamental para isto. Assim, provavelmente vamos ter de começar a regar um mês ou dois mais cedo”, explica o responsável da organização de produtores, salientando que é preciso substituir, artificialmente, a água que não se está agora a acumular nos solos. “Se usássemos a prática de regar só a partir de meados de abril, íamos ter problemas.”

Contudo, começar a rega dois meses antes não é uma resposta suficiente para entender o impacto da seca na produção de maçãs na Beira Alta. José Teixeira lembra que a grande maioria dos pomares da região são regados com água proveniente de charcas, poços e furos alimentados pelos lençóis freáticos — a barragem de Vilar, no rio Távora, no concelho vizinho de Sernancelhe, só serve mesmo os poucos agricultores que têm terrenos nas proximidades da albufeira. “Vamos gastar os lençóis freáticos e as charcas mais cedo e eles não se vão renovar este inverno. Podemos secar completamente as fontes de água.” Isto pode significar chegar à fase em que era necessário regar as árvores e já não haver água suficiente para o fazer — ou, pelo menos, não sem elevados custos acrescidos.

"Vamos gastar os lençóis freáticos e as charcas mais cedo e eles não se vão renovar este inverno. Podemos secar completamente as fontes de água."
José Teixeira, responsável da organização de produtores de maçã Beyra Douro Fruits

O engenheiro agrónomo dá o exemplo concreto das maçãs Golden, a variedade de maçãs douradas, muito comum à mesa dos portugueses, que preenche grande parte do pomar em que nos encontramos. Habitualmente, segundo as contas de José Teixeira, o custo de produção destas maçãs situa-se entre os 20 e os 25 cêntimos por quilo, um custo que já inclui todo o trabalho agrícola nos pomares, a água para a rega, os combustíveis, os adubos, a energia e o processo industrial associado à calibração e embalamento das maçãs. Depois, cada quilo deste fruto é vendido às grandes superfícies comerciais por um preço entre os 25 e os 30 cêntimos — o que significa, nas palavras de José Teixeira, que o setor já está “no limiar da rentabilidade”. Para o produtor, a margem de lucro é de cerca de 5 cêntimos por quilo. Mas, quando chegam às prateleiras dos supermercados, as maçãs Golden vêem o seu preço disparar para valores seis vezes superiores, em torno dos 1,90 euros por quilo.

Com a seca, os custos de produzir o mesmo quilo de maçãs vão disparar, avisa José Teixeira, colocando vários cenários em cima da mesa.

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Por um lado, se a seca afetar as reservas normais de água, mas ainda assim houver água disponível para os esforços de rega (por exemplo, em lençóis freáticos mais fundos ou em barragens), então os agricultores terão de fazer um investimento energético muitíssimo maior para assegurar o abastecimento de água — por exemplo, para bombear água a partir de regiões mais profundas — além de que, obviamente, estariam em causa mais dois meses de rega. Segundo José Teixeira, só com a rega nestes moldes os custos de produção de um quilo de maçãs Golden poderiam aumentar em cerca de 20%, ou seja, colocando-os justamente entre os 25 e os 30 cêntimos, o preço a que os produtores vendem as maçãs às grandes superfícies. Neste cenário, diz o engenheiro agrónomo, as maçãs poderiam manter uma qualidade suficiente para “aspirar a um valor normal de venda”. Na prática, o melhor cenário já indicia uma perda de praticamente toda a margem de lucro dos produtores.

Contudo, a situação pode ser ainda mais grave, se for impossível assegurar o abastecimento das quantidades normais de água, independentemente do investimento energético feito pelos produtores. “Para regar mais, é preciso haver água”, constata José Teixeira. A consequência mais dramática poderá advir mesmo da falta de água, que obrigará os produtores a regar menos do que deveriam para assegurar a qualidade do produto final. Essa perda de qualidade vai refletir-se em maçãs mais pequenas (abaixo do calibre pretendido pelos supermercados) ou com mais defeitos estéticos (um dos principais critérios para a grande distribuição). Talvez seja possível vendê-las, para os calibres inferiores, a 15 cêntimos por quilo. Senão, a única forma de os produtores obterem receitas a partir dessas maçãs será vendê-las a um preço muito mais barato (entre 5 e 10 cêntimos por quilo) para a indústria de processamento de alimentos — para fazer sumos, iogurtes, compotas e todo o tipo de ouros produtos.

Ou seja, um quilo de maçãs que já vai custar pelo menos 25 cêntimos a produzir poderá acabar a ser vendido por apenas 5 cêntimos. E este agravamento dos custos não tem em conta, segundo José Teixeira, os aumentos dos preços dos combustíveis, dos adubos e dos fitofármacos, motivados pela crise energética. Com estes fatores em conta, o custo de produção de um quilo de maçãs pode este ano subir em 40% ou 50%, estima o engenheiro agrónomo.

No fim de contas, uma coisa será praticamente certa: dificilmente os produtores receberão mais um cêntimo pelas maçãs, mesmo que gastem mais dinheiro para as produzir. A criação da organização de produtores, há cerca de dois anos, já contribuiu para reduzir a exposição dos pequenos agricultores à ditadura dos preços definidos pelas grandes superfícies. “A grande distribuição punha as empresas umas contra as outras”, diz José Teixeira, lembrando que ainda subsiste no setor a prática dos leilões de compra de fruta promovidos por algumas grandes superfícies, que fazem baixar os preços até ao limite do esforço dos agricultores. Se a seca se mantiver como apontam as previsões do IPMA, então é muito provável que a produção de maçãs nacionais baixe consideravelmente este ano — e nas prateleiras dos supermercados haverá mais fruta importada.

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Produzir um litro de leite pode vir a custar mais 20 cêntimos

O brinco azul na orelha direita das ovelhas que rodeiam Ricardo Pimenta não engana: são todas da raça bordaleira, a espécie ovina da Serra da Estrela que dá o leite com o qual se faz o famoso queijo da Serra da Estrela. Se o rebanho for submetido a uma inspeção da entidade certificadora e houver uma única ovelha sem aquele brinco, que comprova a inscrição do animal no livro genealógico da raça bordaleira, a certificação DOP pode ser retirada a Ricardo Pimenta, arruinando-lhe o negócio. O pastor mostra, por isso, com orgulho os brincos azuis em todas as ovelhas que acompanha numa das suas propriedades, à beira da estrada nacional 17, nos arredores de Gouveia, com a Serra da Estrela em pano de fundo. Tem ali vários hectares de pasto semeado para as ovelhas — e esse é outro dos requisitos para ter a certificação. Pelo menos 90% do alimento das ovelhas têm de ser oriundo de pastos naturais ou semeados, arbustos e outros alimentos naturais crescidos na Serra da Estrela, uma vez que esse equilíbrio tem influência na qualidade do leite.

O clima é igualmente fundamental. “Têm de ser pastagens em altitude com estas ovelhas. Estas ovelhas noutra parte do país não davam o mesmo leite. Outras ovelhas aqui também não”, explica ao Observador.

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Este ano, porém, tudo isto parece estar sob ameaça. As condições meteorológicas correspondem àquelas que fizeram do queijo da Serra da Estrela aquilo que é. “Este calor não é normal nesta altura do ano”, diz Ricardo Pimenta. E a seca está a impactar diretamente a alimentação das ovelhas. O pasto, que por esta altura deveria estar alto e verdejante, não passa de algumas ervas rasteiras no meio da terra — tanto que as próprias ovelhas não querem ficar ali muito tempo, por falta de alimentos.

Ricardo Pimenta, hoje com 43 anos de idade, nasceu “no meio das ovelhas”, na mesma quinta que hoje gere. A produção de leite de ovelha na família vem do tempo dos seus avós, que antes de se mudarem para Angola já tinham gado na Serra da Estrela. Retornados depois do 25 de Abril, os avós abriram a exploração em 1977 e os pais sucederam-lhes. “O meu pai ainda produzia leite e queijo”, lembra Ricardo Pimenta. “Mas, quando o meu pai faleceu, dediquei-me à produção só de leite.” Foi uma tendência na região: tal como no caso de Ricardo, a maioria das explorações que produziam leite e queijo especializaram-se só num dos elementos da cadeia. Mas esta história familiar está, agora, ameaçada.

"Neste momento, por causa da seca, já estou a produzir menos 15% de leite”, diz o pastor. “Se continuar assim, podemos chegar ao fim de fevereiro com menos 30% ou 35%."
Ricardo Pimenta, produtor de leite de ovelha para queijo da Serra da Estrela

A redução da quantidade e qualidade dos pastos já está a afetar, naturalmente, a quantidade de leite produzido pelas ovelhas. “Neste momento, por causa da seca, já estou a produzir menos 15% de leite”, diz o pastor. “Se continuar assim, podemos chegar ao fim de fevereiro com menos 30% ou 35%.” Todos os anos, Ricardo Pimenta produz na sua quinta cerca de 35 mil litros de leite — pelo que os prejuízos podem situar-se verdadeiramente na ordem dos milhares de litros por produzir em 2022.

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“Menos litros de leite significa menos queijo”, completa Ricardo Pimenta, sublinhando que, embora o leite produzido em menor quantidade tenha um pouco mais de gordura, isso não compensa a perda absoluta de quantidade. Apesar de estar a produzir menos 15% de leite, Ricardo Pimenta continua a ter exatamente os mesmos gastos totais com a gestão dos animais e da quinta. Até aqui, diz o pastor, produzir um litro de leite de ovelha custava a Ricardo Pimenta entre 80 e 90 cêntimos. O produtor vende a totalidade da sua produção a uma queijaria regional (que se abastece junto de mais de uma dezena de agricultores) a um preço situado entre 1 e 1,50 euros — Ricardo Pimenta prefere não divulgar o preço exato para não colocar em causa as dinâmicas de concorrência. Mas salienta que deveria vendê-lo pelo menos a 1,70 euros por litro, “e mesmo assim não era nada de especial”.

É àquela diferença que o produtor vai buscar os lucros da quinta, mas esta margem pode estar em risco devido à seca. “Vou ter mais custos se tiver de comprar suplemento”, diz Ricardo Pimenta, destacando que a alimentação das ovelhas pode ser suplementada com misturas de cereais, totalmente naturais, e que a falta de pasto obrigará a reforçar esta suplementação. “Uma ovelha que coma 200 gramas de suplemento pode ter de passar a comer 400 gramas.”

“Se isto continuar assim, o custo de produzir um litro de leite poderá chegar a um euro”, antecipa Ricardo Pimenta. Isto significa que o pastor poderá ver a sua margem de lucro bastante reduzida, uma vez que dificilmente as queijarias lhe vão pagar mais por um litro de leite. Novamente, o agricultor coloca a responsabilidade nas grandes superfícies. “Quem compra os queijos às queijarias também não lhes paga mais. As grandes superfícies é que controlam os preços. Eles não me podem comprar o litro de leite a 2 euros e depois vender o queijo na mesma a 16 euros”, sublinha. Atualmente, é possível encontrar o queijo da Serra da Estrela DOP à venda nos supermercados por preços entre os 20 e os 30 euros por quilo. “Não vai aumentar o queijo. São sempre os produtores que absorvem o prejuízo”, atira Ricardo Pimenta.

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