Quando Catarina Vaz Pinto foi indicada em janeiro de 2017 pelo então ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, para um mandato de quatro anos como representante do Estado na administração do Museu Berardo já se acumulavam suspeitas sobre os negócios do empresário cujas valiosas obras de arte compõem aquele museu instalado no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
E quando o Governo, desta vez pelo punho da ministra da Cultura Graça Fonseca, assinou há pouco mais de três meses a continuidade de Catarina Vaz Pinto naquela fundação, já Joe Berardo tinha ido dizer a uma comissão parlamentar de inquérito “não tenho nada” e “não devo nada”, levantando uma onda de críticas, uma vez que era considerado um dos maiores devedores da Caixa Geral de Depósitos, do BCP e do Novo Banco. Foi a 10 de maio de 2019. A audição agitou a classe política a ponto de o primeiro-ministro, António Costa, ter declarado três dias depois que “o país está seguramente todo chocado pelo desplante com que o senhor Berardo respondeu nesta Assembleia da República”.
O choque do chefe do Governo não foi, porém, suficiente para que alguma coisa mudasse no museu — que, em rigor, é uma parceria público-privada, resultado de um acordo Estado-Berardo em 2006, renovado em 2017 e com duração até dezembro de 2022 (documento nunca revelado pelo executivo). António Costa e Graça Fonseca também mantiveram tudo como estava quando, em julho de 2019, centenas de obras de arte do empresário foram arrestadas no museu por ordem de um tribunal, na sequência de uma providência cautelar interposta pelos credores de Berardo, precisamente a Caixa Geral de Depósitos, o BCP e o Novo Banco, que reclamam o pagamento de quase mil milhões de euros. Como tudo ficou na mesma, Catarina Vaz Pinto também continuou como vogal do conselho de administração da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea Coleção Berardo (entidade criada em 2006 para gerir o museu).
Acontece que, além daquele cargo — aliás, não remunerado —, Catarina Vaz Pinto, de 61 anos, casada com o secretário-geral da ONU e ex-primeiro-ministro António Guterres, é também vereadora da Cultura e das Relações Internacionais da Câmara Municipal de Lisboa.
Um plano interno contra a corrupção publicado pela autarquia em fevereiro de 2017 — ou seja, poucas semanas depois de a vereadora se tornar pela primeira vez vogal da administração da fundação que gere o Museu Berardo — estabelecia como “norma de conduta” para os dirigentes e trabalhadores do município “não solicitar ou aceitar ofertas, convites ou favores que possam influenciar ou parecer influenciar a imparcialidade no exercício das suas funções”.
A norma já não aparece na versão mais recente, de 2019, do mesmo “Plano de Prevenção de Riscos de Gestão, Corrupção e Infrações Conexas”. Mas é uma norma em vigor, de acordo com o gabinete de comunicação da autarquia.
Significa isto que estamos perante um caso de conflito de interesses? Do ponto de vista legal, ético ou político Catarina Vaz Pinto, vereadora, pode coexistir com Catarina Vaz Pinto, administradora? Uma porta-voz da autarca disse ao Observador que Catarina Vaz Pinto tem assento na administração do Museu Berardo “a nível individual” e “não como vereadora ou representante da Câmara”.
“Entende a senhora vereadora que a função não está abrangida pelas normas em apreço”, acrescentou a mesma fonte, referindo-se à “norma de conduta” de 2017. Mas não fica claro se esse entendimento se deve ao facto de Catarina Vaz Pinto estar no museu a “nível pessoal” ou de considerar que nenhum vereador de Lisboa deve seguir as “normas de conduta” que o próprio executivo camarário estabeleceu para “membros dos órgãos, dirigentes e trabalhadores”, como se lê no documento de 2017. Ficou igualmente por esclarecer se Catarina Vaz Pinto, ao considerar a função não abrangida pela norma, sugere que os vereadores possam aceitar convites passíveis de influenciar ou parecer influenciar a respetiva atuação. Instada a elaborar sobre este aspeto, a vereadora não fez comentários.
A porta-voz sublinhou que a Câmara de Lisboa “não está representada e não tem qualquer ligação” ao Museu Berardo, mas o assunto é mais complexo. Há documentos coassinados por Catarina Vaz Pinto que descrevem o município como um dos parceiros institucionais do museu.
Contactados nos últimos dias, os vereadores da oposição não se pronunciaram. O Conselho de Prevenção da Corrupção, descrito como “entidade administrativa independente que funciona junto do Tribunal de Contas”, informou não ter competência legal para analisar casos concretos.
“É possível ter interesses particulares desde que não colidam com interesse público”
Para a presidente da organização não governamental Transparência e Integridade, o caso de Catarina Vaz Pinto representa “uma violação” da norma de 2017 “porque a aceitação do convite para o cargo” no Museu Berardo “pode ter implicações na imparcialidade da vereadora”.
Perante os elementos fornecidos pelo Observador, Susana Coroado vai mais longe: “É muito curioso que a norma tenha sido incluída em 2017, quando as questões das ofertas ainda estavam na memória da opinião pública — o Galpgate foi em 2016 — e que tenha discretamente desaparecido em 2019. Isso até livrou o presidente da Câmara de ter que violar a norma para aceitar ser parte da comissão de honra de Luís Filipe Vieira”. Vieira, agora ex-presidente do Benfica, é outro devedor do Novo Banco e, tal como Berardo, foi recentemente detido por suspeitas de crimes relacionados com essas dívidas.
A presidente da Transparência e Integridade, que é também autora de uma tese de doutoramento sobre corrupção e investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, questiona se, mesmo não existindo aqui uma ilegalidade, “não ocorreu a ninguém que nomear uma titular de um cargo político não seria adequado, sobretudo com as agravantes de se tratar de uma pessoa com a tutela de uma área setorial [cultura] e geográfica [Lisboa] onde opera a fundação?”
Outro facto a registar é a declaração obrigatória de rendimentos e interesses, entregue pela vereadora da Cultura junto do Tribunal Constitucional. No documento de 19 de fevereiro de 2019, a autarca não registou “cargos sociais” no Museu Berardo, mas em 28 de dezembro de 2017 tinha declarado essa função, conforme verificou o Observador.
A informação ao Tribunal Constitucional sobre “cargos sociais” exercidos por políticos nos dois anos anteriores à declaração é obrigatória quando estejam em causa cargos em fundações de direito público ou quando, tratando-se de fundações de direito privado, o cargo seja remunerado — é o que diz o formulário preenchido por Catarina Vaz Pinto em 2017 e em 2019. A Fundação de Arte Moderna e Contemporânea Coleção Berardo é juridicamente uma pessoa coletiva de direito privado, de acordo com os estatutos, mas é tutelada pelo Ministério da Cultura.
“Por mais que os titulares de cargos políticos tenham direito a uma vida pessoal e a interesses particulares, devo parafrasear o primeiro-ministro, António Costa, e lembrar que ‘um titular de órgão político não se pode esquecer que o é, nem à mesa do café'”, analisa Susana Coroado. “É possível ter interesses particulares desde que estes não colidam com o interesse público ligado ao cargo político”, acrescenta.
De um ponto de vista meramente legal — e não ético ou de “normas de conduta” —, a presidente da Transparência e Integridade explica que não há certezas sobre o caso da vereadora. “Como de costume”, o diploma que regula o exercício de funções por titulares de cargos políticos “é ambíguo na questão das incompatibilidades”, entende Susana Coroado, pois remete para o Estatuto dos Eleitos Locais, que, por sua vez, volta a remeter para o regime do exercício de funções”. “Perante esta ambiguidade, parece-me que só o Tribunal Constitucional pode decidir”, acrescenta.
De facto, no campo da argumentação meramente jurídica, o gabinete de Catarina Vaz Pinto apresentou ao Observador o entendimento de que o atual regime legal de incompatibilidades, atualizado em 2019 e em 2020 (já depois da entrada da vereadora no museu), estabelece que o exercício de funções políticas em regime de exclusividade, como no caso em apreço, é apenas incompatível com “outras funções profissionais remuneradas ou não” e com a “integração em corpos sociais de pessoas coletivas de fins lucrativos”. E concluiu que a presença da autarca no Museu Berardo “não pode considerar-se como sendo uma atividade profissional” e “não pode considerar-se abrangida por qualquer incompatibilidade”, até porque a fundação que gere o museu não é uma pessoa coletiva com fins lucrativos.
O gabinete da vereadora foi questionado pelo Observador ao longo de vários dias e chegou a prometer enviar “um parecer de 2017 emitido por uma entidade a pedido de Catarina Vaz Pinto”, o qual teria concluído não haver incompatibilidades. Mas esse alegado parecer nunca chegou, mantendo-se aliás a questão de fundo sobre a “norma de conduta” da Câmara e não sobre o regime legal de incompatibilidades.
Câmara foi uma das “várias entidades que ajudaram o museu”
A entrada de Catarina Vaz Pinto “a nível individual” na administração do Museu Berardo em 2017 e 2021 deu-se por acordo entre o Ministério da Cultura e Joe Berardo, como indicam os respetivos despachos de nomeação e os estatutos da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea Colecção Berardo. Do mesmo conselho de administração fazem parte atualmente, como representantes do Estado, o jurista Rui Patrício, advogado de casos mediáticos de corrupção, e o presidente da Fundação Centro Cultural de Belém, Elísio Summavielle, este por inerência de funções.
Os restantes administradores do museu são Joe Berardo (presidente honorário e vitalício), o filho Renato e o advogado André Luiz Gomes. Os três são arguidos desde o início de julho num inquérito judicial à gestão da Caixa Geral de Depósitos por alegadas dívidas de 439 milhões de euros ao banco público e suspeitas de burla, fraude fiscal e branqueamento de capitais, entre outros crimes.
Rui Patrício disse ao Observador não ter “quaisquer declarações públicas a prestar” sobre se tenciona abandonar funções no Museu Berardo face aos crimes que o Ministério Público imputa ao empresário e colecionador de arte. Elísio Summavielle também não fez comentários. Fonte próxima do presidente do CCB referiu que se ele se afastasse do Museu Berardo teriam de lá estar os vogais Delfim Sardo ou Isabel Cordeiro, porque o decreto-lei de 2006 obriga a que haja sempre no museu algum representante da cúpula do CCB.
O caso de Catarina Vaz Pinto é diferente — está por convite e não tinha obrigação legal de aceitar. De resto, o argumento de que a Câmara “não tem qualquer ligação” ao Museu Berardo, apresentado pela porta-voz da vereadora da Cultura não confere com o que dizem documentos assinados pela própria Catarina Vaz Pinto e outros administradores da fundação. Os relatórios de 2020, 2019 e 2018 do Museu Berardo incluem o logótipo de Câmara de Lisboa e a informação de que o município dá “apoio às atividades do serviço educativo”.
No relatório anual do Museu Berardo de 2020, a Câmara surge também descrita como um dos “parceiros” da instituição, juntamente com o Ministério da Cultura, entre outros. No relatório de 2019, a autarquia lisboeta chega a ser referida como uma das “várias entidades que ajudaram o museu nas suas diversas exposições”, nomeadamente “através da cedência de circuitos de MUPI (cartazes na cidade)”. Ou seja, espaços de publicidade.
Câmara gasta 14.500 euros em livros do Museu Berardo
Acresce que, no ano passado, a Câmara de Lisboa gastou 14.500 euros na compra de 200 exemplares de um livro publicado pelo Museu Berardo, como demonstra a plataforma online dos contratos públicos. A verba aparece adjudicada em julho do ano passado mas o lançamento da adjudicação, que supostamente aconteceria antes, tem data posterior: dezembro de 2020. Não há registo público de outros negócios Câmara-Museu Berardo.
Aquela compra foi feita por ajuste direto sem que a decisão fosse levada a reunião de Câmara, o que não é obrigatório por lei. A porta-voz da autarca garantiu que não foi Catarina Vaz Pinto quem decidiu a compra e sim a secretaria-geral da Câmara, “no âmbito da centralização e gestão de aquisição de bens para ofertas institucionais”. A mesma fonte explicou que “o valor da aquisição foi de 14.500 euros acrescido de IVA à taxa legal” e sublinhou: o procedimento “não teve qualquer participação” da vereadora da Cultura, “não existindo assim, nos termos da lei, qualquer conflito de interesses”. Não esclareceu, porém, a eventual incompatibilidade que decorre da “norma de conduta” do documento camarário contra a corrupção em 2017.
Outras compras ou apoios ao Museu Berardo por parte da autarquia não existiram, afiançou a porta-voz da vereadora: “Durante todo esse período [2017 a 2021] nunca a Câmara Municipal de Lisboa apoiou, subsidiou ou estabeleceu qualquer relação de natureza financeira com a fundação”. Mas é ou não correta a interpretação de que a aquisição dos 200 livros configurava, já em 2020, um apoio público a uma instituição liderada por um cidadão sobre o qual recaíam suspeitas graves que eram públicas? O gabinete de Catarina Vaz Pinto deu uma resposta redonda: “A Câmara desconhece os processos de investigação internos das autoridades competentes — neste caso, o Ministério Público — até os mesmos serem tornados públicos.”
Governo deu 2,1 milhões de euros a Berardo em 2021
A Fundação de Arte Moderna e Contemporânea Coleção Berardo tem estatuto de utilidade pública, renovado há poucos dias através de uma lei que PS, PSD e PAN votaram favoravelmente na Assembleia da República. Num despacho de 1 de abril assinado pela ministra Graça Fonseca e pela secretária de Estado do Orçamento — pelo qual o Estado atribui 2,1 milhões de euros ao museu, o que constitui a sua maior fonte orçamental — a fundação surge descrita como uma das várias fundações “tuteladas pela ministra da Cultura”.
Nem Catarina Vaz Pinto nem os outros membros da administração do museu recebem qualquer compensação fixa em dinheiro, nem senhas de presença, e apenas têm direito a lugar de estacionamento. Um antigo membro daquele conselho de administração disse ao Observador que se recorda de as reuniões acontecerem com pouca frequência, mas serem tomadas decisões concretas sobre a gestão do museu, estando Joe Berardo sempre presente. Referindo-se a Catarina Vaz Pinto, acrescentou que esta demonstrava um papel autónomo em relação ao próprio Berardo e não se coibia de discordar de posições do empresário.
O Ministério da Cultura está em silêncio perante um conjunto de dúvidas, incluindo se a ministra considera compatível a presença, a título pessoal, de Catarina Vaz Pinto como vogal do conselho de administração do Museu Berardo, sendo em simultâneo vereadora da Cultura de Lisboa. Numa conferência de imprensa na semana passada, o Observador teve oportunidade de perguntar à titular da pasta da Cultura se vai manter os representantes do Estado na fundação, perante a situação judicial de Joe Berardo. “O assunto será tratado com a reserva que merece”, reagiu Graça Fonseca.
Num comentário global, a presidente da Transparência e Integridade sustenta que “este caso é particularmente grave” por todos os elementos que já são públicos acerca de Berardo. “Independentemente do desfecho judicial, existem más práticas de gestão, utilização abusiva da fundação para interesses pessoais e irregularidades várias, tudo sob o olhar do Estado”, afirma. “Que fazem os administradores nomeados pelo Estado que não veem o que se passa na fundação?” ou “porque foi renovado o estatuto de utilidade pública à fundação se na realidade só é útil à família Berardo e quem gravita à sua volta?” são perguntas que deixa a investigadora Susana Coroado.
Nas últimas décadas, segundo Susana Coroado, “temos assistido a um aumento exponencial de parcerias público-privadas num sentido lato e não apenas nas tradicionais PPP”, o que “comporta riscos elevados de corrupção, promiscuidades e conflitos de interesses vários, que podem e devem ser acautelados através de procedimentos e monitorizações”.