“Se isto está assim em dois meses, nem imagino o que vem aí a seguir. Ou há uma mudança de atitude rapidamente ou só vai piorar.” O desabafo é de um deputado do PSD e ajuda a ilustrar o ambiente que se vai vivendo no grupo parlamentar social-democrata: ainda que não exista um movimento organizado de oposição interna, as trincheiras já estão a ganhar forma.
O episódio em torno da eleição ou não de Rui Paulo Sousa como vice-presidente da Assembleia da República foi apenas mais uma acha para a fogueira. Concertado com Luís Montenegro, a quatro horas da votação e sem que o grupo parlamentar do PSD tivesse deliberado sobre o assunto, Joaquim Miranda Sarmento enviou um email aos deputados para que votassem a favor do parlamentar do Chega.
O pretexto – respeitar a “normalidade democrática”– não convenceu o braço do partido na Assembleia e o mal-estar que a comunicação gerou teve uma consequência prática: seguramente um terço (mas presumivelmente mais) dos deputados sociais-democratas não obedeceram à indicação Miranda Sarmento.
“É inacreditável pôr aquilo por escrito”, queixa-se ao Observador um dos membros da direção da bancada parlamentar. “Que brincadeira é aquela? É de uma inabilidade total”, lamenta um alto dirigente social-democrata. “Não se pode mandar aquilo assim, a cru. Houve gente que não gostou, naturalmente”, concorda um deputado social-democrata. “É um monumental tiro no pé”, reforça outro elemento do grupo parlamentar social-democrata.
A intenção de Miranda Sarmento já tinha merecido uma discussão no grupo de WhatsApp que reúne a própria direção da bancada. Durante a troca de argumentos, e perante as dúvidas manifestadas, o presidente do grupo parlamentar chegou a explicar que aquela era vontade de Luís Montenegro e, como tal, deveria ser respeitada.
O que aconteceu a seguir foi uma reação em cadeia: assim que o email foi tornado público, começaram a surgir os sinais de desagrado, a votação foi a que a foi e Luís Montenegro viu-se obrigado a vir a terreiro, não só para corroborar a versão de Miranda Sarmento, protegendo-o, como para tentar virar o jogo contra os socialistas e Augusto Santos Silva.
Na cúpula do PSD, há quem desvalorize o episódio. A orientação sobre como deveriam votar os deputados foi por escrito porque não poderia haver espaço para ambiguidades; não houve reunião do grupo parlamentar porque Miranda Sarmento esteve nos Açores numa ação organizada pelos eurodeputados sociais-democratas, onde esteve também Montenegro.
Além disso, a relação com o Chega está, vai-se dizendo, mais do que resolvida na cabeça do líder social-democrata. O contrário – e o contrário aos olhos de Montenegro é insistir numa estratégia de diabolização – seria um erro que só serve André Ventura e António Costa.
Seja como for, mesmo que se garanta que a atual direção do partido não perde um minuto de sono com o Chega, o caso teve óbvias repercussões políticas e mediáticas. A começar pelo golpe de asa de Ventura, que foi rápido a colar-se a Montenegro, agradecendo o apoio e garantindo que os dois líderes tinham combinado tudo previamente – o que é falso, os dois, sabe o Observador, nunca falaram sobre o assunto.
No entanto, depois de um período em que o tema Chega esteve relativamente ausente da vida coletiva do PSD, os sociais-democratas voltaram a ser deitados no divã da governabilidade para discutir no palco mediático o que fazer com Ventura e como chegar ao poder. Com uma agravante: a orientação dada por Miranda Sarmento e o impacto que o episódio teve veio contrariar a própria estratégia que o grupo parlamentar tinha definido para lidar com Ventura.
Direção do grupo deu indicações para não bater palmas ao Chega
Na última reunião do grupo parlamentar, que decorreu há duas semanas, e de acordo com vários relatos feitos ao Observador, João Moura, vice-presidente da bancada, terá feito uma intervenção onde procurava sensibilizar os demais deputados para a importância de ignorarem o Chega, de não se travarem de razões quando provocados e, menos ainda, aplaudirem as intervenções dos adversários. Dias depois, Miranda Sarmento enviaria o referido email para estupefação quase geral.
“Numa semana pedem-nos para não batermos palmas ao Chega e na semana seguinte dizem-nos que temos de votar no Chega? Isto é de doidos”, queixa-se um deputado social-democrata. “Não dá para perceber”, corrobora outro.
O problema, vai-se comentando no grupo parlamentar, é ainda maior: na Assembleia da República, o PSD continua a ser sistematicamente ofuscado pelo Chega. “Dizem-nos para ignorar André Ventura; mas depois há pingue-pongue entre o PS e Chega e acabamos nós a ser ignorados nos debates parlamentares. Até no debate sobre o nosso programa de emergência, agendado por nós, desaparecemos”, lamenta a mesma fonte social-democrata.
Contratações e mexidas irritam deputados
Mas as trocas e baldrocas com o Chega foram apenas o último irritante na bancada do PSD. Antes disso, a contratação de Pedro Alves para consultor estratégico do grupo parlamentar social-democrata já tinha deixado muitos de cabelo em pé.
O ex-deputado, apoiante de primeira hora de Montenegro, presidente da distrital de Viseu (em fim de mandato) e coordenador autárquico do partido, vai ganhar 4150 euros mensais, pode estar em teletrabalho e manter a direção da Viseu Marca, uma “associação de marketing territorial e de ‘branding’ de Viseu”, que gere e organiza a Feira de São Mateus, entre outros eventos.
“É chocante”, critica um deputado do PSD. “Vai ganhar mais do que um deputado sem pôr lá os pés”, diz a mesma fonte. “A decisão não foi, naturalmente, de Miranda Sarmento. Isto vem da direção e é uma forma de o [Pedro Alves] compensarem. Mas claro que quem se queima é quem despacha a contração”, comenta outro deputado. E quem assina o despacho é Joaquim Miranda Sarmento.
Na direção do partido e da bancada parlamentar, as críticas são relativizadas. Primeiro, existe a profunda convicção de que Pedro Alves, até pelo contacto que vai manter em resultado da sua função como coordenador autárquico do partido, vai “acrescentar valor ao processo legislativo”; depois, e na mesma linha, acredita-se convictamente que o ainda líder do PSD/Viseu é uma “peça fundamental na estratégia do partido como um todo, particularmente com eleições autárquicas no horizonte”.
Em cima de tudo isto, houve vários deputados que não conseguiram esconder a irritação com o facto de terem sido retirados das comissões parlamentares a que se dedicavam desde o arranque da legislatura sem que ninguém na direção da bancada tivesse dado justificações.
“Mudam as pessoas de comissão e não dizem nada? Nem um telefonema?”, queixa-se ao Observador um dos deputados descontentes. “Houve gente que mudou de funções e nem sequer um telefonema lhe fizeram. Não é assim que se gere”, critica outro parlamentar. “A gestão das equipas é fundamental. Quando não respeitamos, não podemos querer dar-nos ao respeito”, irrita-se um elemento da bancada do PSD.
Na direção do PSD, embora se reconheça que todas as mudanças deixam sempre algum amargo de boca, a garantia que é dada é que tudo foi feito para que, face à nova orgânica do partido, fossem feitas as mínimas alterações possíveis. “Toda a gente sabe que quando se faz listas é impossível agradar a todos”, relativiza um destacado dirigente social-democrata.
Rioístas dizem-se quietos. “São tiros nos pés”
Apesar de todas as críticas à forma como Luís Montenegro, através de Miranda Sarmento, tem conduzido a equipa parlamentar, todas as fontes contactadas pelo Observador garantem que não existe um “movimento concertado” ou uma “oposição interna” organizada ou, muito menos, uma revanche em curso por parte do rioísmo.
“O desconforto que existe é consequência dos tiros nos pés que a direção tem dado. Não tem nada a ver com o rioísmo”, garante um dos críticos de Montenegro. “Isto, para usar a terminologia do ténis, são erros forçados. Ninguém anda alimentar folhetins, nem a conspirar contra a direção”, assegura outro. “Não há um movimento organizado de oposição interna. Existe apenas alguma revolta. E só lá vão dois meses de mandato. É muito pouco tempo para tanta asneira”, sentencia outro deputado do PSD.
Mesmo com o desconforto palpável que vai crescendo no grupo parlamentar do PSD, a generalidade dos deputados ouvidos pelo Observador acaba por ilibar em grande parte Joaquim Miranda Sarmento. Apontam-lhe a “inexperiência política”, dizem que intervém menos do que deveria e que fala pouco com os deputados, mas todos lhe reconhecem a “preparação técnica” e a “inteligência”.
Ao Observador, há quem resuma as coisas nestes termos. “É um tipo inteligente e culto, que pode ter pouca sensibilidade política, mas que tem feito um esforço no sentido de tomar as atitudes corretas e para gerir aquelas sensibilidades horríveis. Acontece que não tem acertado muito. Em tudo aquilo que mexe, dá asneira. Vítima da lei de Murphy”, sugere um experiente deputado social-democrata.
Os mais próximos de Miranda Sarmento, que começou o seu mandato depois de ter tido um resultado tímido entre os pares, não atribuem grande importância aos focos de descontentamento que vão surgindo. “Não existe qualquer desconforto. O tempo e o debate orçamental tratarão de serenar o pouco que falta serenar”, confia um elemento próximo do líder parlamentar.
Acontece, no entanto, que a própria direção da bancada de Joaquim Miranda Sarmento merece muitas reservas de uma parte considerável do grupo parlamentar social-democrata.
“Quem manda verdadeiramente ali são o João Moura e o Paulo Rios de Oliveira, que são extensões do aparelho partidário ali na Assembleia. Nesta dinâmica, Miranda Sarmento acaba por ser uma figura mais apagada”, comenta um deputado social-democrata.
“Ninguém tem dúvidas que Joaquim Miranda Sarmento é inteligente. Mas é obviamente inexperiente e falta-lhe alguma maturidade política. E já se vai notando alguma falta de coesão na própria direção da bancada. Vai ser difícil aguentar muito mais tempo”, remata a mesma fonte. Até ver, os erros do Governo tem desviado o foco dos problemas internos (e eternos) do PSD; resta saber até quando.