Nos últimos dois anos, ergueu-se uma nova força na música nacional, cruzando elementos típicos de uma certa portugalidade com uma abordagem moderna e exploratória, misturando coros tradicionais e os graves da eletrónica, fazendo adufes e melodias estranhas saídas de máquinas digitais parecerem feitos uns para os outros. Que força é essa? Mais do que nunca, apresenta-se agora; cada vez menos uma promessa e mais uma certeza. Chegou a vez de Ana Lua Caiano, que lança a 15 de março o seu álbum de estreia, Vou Ficar Neste Quadrado.
Não será, à partida, um enorme ponto de viragem. Com dois EP bem sucedidos na bagagem, Cheguei Tarde a Ontem (2022) e Se Dançar É Só Depois (2023), a jovem artista natural de Lisboa já conquistou o circuito da música alternativa e emergente em Portugal, tocando em clubes, festivais ou eventos populares no último par de anos. Não demorou muito até que o seu talento começasse a ressoar lá fora, tanto na imprensa como nos palcos — afinal, “esta música só poderia ter nascido aqui”, entre José Afonso e os Portishead, entre Fausto e Björk, com um pé numa dimensão local e outro mais global, e isso está mais do que provado que é o fator diferenciador para determinar a internacionalização de um artista português.
Ana Lua Caiano vive no futuro. Não porque a sua música seja vanguardista a esse ponto quase alienígena, mas porque, como nos lembra, é assim que as coisas se dão na música. O disco está feito há largos meses, neste momento marcam-se os concertos e planeiam-se os passos a dar no próximo ano. No presente, limita-se a cumprir aquilo que a Ana Lua (e a sua equipa) do passado planeou, com as naturais adaptações do dia a dia.
[o vídeo de O Bicho Anda Por Aí:]
Talvez por isso mesmo, como aponta, a sua música não seja tão racional quanto possa parecer. É uma questão de equilíbrio. A grande força motriz destas canções é o instinto, as emoções, o entusiasmo obsessivo com que se constrói um tema quando se acende uma luz num momento oportuno de inspiração. É nesse “inexplicável” de que parte todo este universo que construiu, e que agora se consolida com este primeiro trabalho de longa-duração.
Uma mistura entre tradição e eletrónica, instinto emocional e razão
Não era para ser o primeiro. A ideia inicial, revela, era que os dois EPs já lançados fossem um álbum. “Só que, depois, porque um álbum demora muito mais tempo a fazer, exige mais recursos e na altura era mais complicado, decidi separá-lo em duas fases. Portanto, já tinha esta ideia de álbum à minha frente”, explica Ana Lua Caiano ao Observador.
Construir um disco maior não foi fácil; aliás, “revelou-se muito complicado”. “Nos EPs, como têm menos músicas, sinto que estou mais no controlo de tudo o que está a acontecer. Muitas vezes não consigo produzir muito tempo a mesma canção, então vou saltando de uma para a outra, mas no álbum às vezes perdia-me. Ah, já não vou a esta canção há três meses. Só a parte de definir a ordem… Tudo é mais complicado, pelo menos foi a minha experiência.”
Ana Lua Caiano refere-se à parte da pós-produção, a fase “chata” que exige editar ou regravar, quando se limam todas as arestas e se pensa exaustivamente em todos os detalhes, quando surgem dúvidas se o caminho passa por aqui ou por ali. É o momento mais “racional” e “cerebral” do processo, que sucede à tal fase mais emocional de criação pura.
“A primeira fase de fazer uma música é quando estou sozinha — ou porque à noite não consigo dormir, ou porque estou à espera de alguém, ou porque estou num momento em que não tenho grande coisa para fazer — e muitas das vezes as músicas aparecem num desses momentos de silêncio”, conta-nos.
“Normalmente surge uma melodia, que posso explorar e aumentar, ou acrescentar um refrão diferente, por isso sinto que existe um momento mais emocional; e depois um mais racional em que oiço as gravações e penso mais sobre as músicas. É aí que começo a produzir e, por norma, as letras aparecem sempre depois da melodia. Na fase inicial, por vezes canto melodias com palavras, mas são palavras um bocadinho ao calhas, depois podem nem ficar.”
Embora se esforce por não pensar demasiado na sonoridade, existe uma clara continuidade em relação aos EPs. “Também por ser o primeiro álbum, acho que faz sentido manter a sonoridade, mas tento não pensar muito ativamente no que ela é. Se calhar o De Cabeça Colada Ao Chão é uma música assim mais estranha, e há outras que se calhar são mais tradicionais… Sinto que a Mais Alto Que O Meu Juízo está ligada à tradição, com aquelas vozes todas. É uma música mais simples, que não tem muito o lado eletrónico. No geral, sinto que continua a ser a mistura do tradicional com o eletrónico, mas depois há muitas variantes. O que mais me fascina no tradicional são as vozes, e sempre gostei dos sons fortes e graves eletrónicos. Não sei porque é que os dois se encontraram. Gosto muito dos dois mundos e acabaram por se juntar, de repente fez sentido.”
As letras, as tais que surgem depois, aparecem consoante aquilo que Ana Lua Caiano sente que cada música pede. Ou seja, o fio condutor de um disco como Vou Ficar Neste Quadrado será mais sonoro do que temático, mais sensorial do que lírico; ainda que acabe sempre por representar uma fase na vida da sua autora e existam pontos em comum. Neste caso, a artista de 24 anos sentiu um pendor para abordar o tema da solidão.
“Há muitas músicas sobre o afastamento e a solidão, mas não foi propositado. Foi simplesmente algo que notei. Não sei explicar, às vezes as coisas não se explicam muito bem. Cada uma tem uma perspetiva diferente, a Vou Ficar Neste Quadrado fala um pouco sobre isso, em que cada pessoa está no seu quadrado, mas é uma letra um bocadinho abstrata. Acho que neste álbum há letras que podem significar muitas coisas, outras são um bocadinho mais simples e despojadas. É difícil dizer que há uma linha, uma orientação, porque acho que a principal é a sonoridade.”
Deixem O Morto Morrer, O Bicho Anda por Aí e o homónimo Vou Ficar Neste Quadrado, os singles, também foram escolhidos por demonstrarem diferentes facetas do disco. “Quando faço as músicas, tento não ter muitas regras, não tenho bem um objetivo. Sinto que um elemento que comecei a acrescentar e que não existia no meu primeiro EP são as vozes cortadas. Gravo sons e depois corto as vozes em pedaços”, diz, dando precisamente o exemplo de Vou Ficar Neste Quadrado. “Brinco com a voz e uso-a como instrumento. Sinto que não tenho bem regras, porque depende muito daquilo que ouço. Posso ouvir algo que me leva a experimentar coisas diferentes, e também gosto de ser livre nesse sentido, de não me prender muito.”
Das aldeias portuguesas à Coreia do Sul, uma artista em estado de graça
Ana Lua Caiano diz que vai ficar neste quadrado, mas este retângulo chamado Portugal há quase um ano que se revelou pequeno. Foi em abril do ano passado que deu os primeiros concertos no estrangeiro. Ao longo dos meses seguintes, tocou pela Europa fora, sobretudo em festivais das chamadas músicas do mundo, e foi mesmo convidada para uma atuação na Coreia do Sul. A internacionalização marcou um certo ponto de viragem.
[o vídeo de “Vou Ficar Neste Quadrado”:]
“Gosto imenso de tocar em Portugal, mas quando vais tocar e vais de avião, de repente as coisas ficam mais sérias”, brinca. “Porque estou a ir tocar para longe. E o mais longe que fui tocar no ano passado foi à Coreia do Sul. Aí senti: como é que vim aqui parar?”
Diz que nunca pensou sequer em tocar “lá fora”, até porque julgava que, por cantar em português ou por ter referências tão locais, isso não fosse entendido ou apreciado do outro lado do planeta. “Ouço muita música que não percebo, mas fico admirada quando acontece ao contrário. Em Espanha as pessoas ainda apanham um bocadinho da letra, ainda as consigo pôr a cantar um bocadinho em português, mas fora isso…”
Em palco, tenta ser uma verdadeira performer, comportando-se como uma “atriz” em cada canção. “No sentido em que cada música tem a sua história e tento transmiti-la com a linguagem corporal ou na forma como estou a cantar, e espero que seja isso que passe. Tento passar a mensagem com as expressões, a entoação da voz. Mas tem sido engraçado ver a reação das pessoas, e ver que há instrumentos que não conheciam. Também tenho uma grande linguagem visual que as pessoas não reconhecem e isso é engraçado.”
Tudo mudou em pouco tempo, ainda há dois ou três anos dava os seus primeiros concertos em pequenos bares ou espaços culturais em Lisboa. “Olhando para trás, realmente aconteceu muita coisa. Foi rápido, mas, apesar de tudo, sinto que tem sido gradual e natural.”
Envolvida num frenesim constante de concertos e lançamentos, diz que não tem tido muito tempo para parar e refletir. “Ainda estou um bocadinho assoberbada… Tocar fora é mesmo o que põe mais realidade na coisa.” O álbum vai ser editado internacionalmente pela alemã Glitterbeat, editora especializada em “sons globais vibrantes”, que trabalha com artistas contemporâneos que cruzam elementos globais com as suas raízes locais.
É uma tendência que se manifesta cada vez mais por cá, desde o circuito pop ao mais alternativo, com fusões entre diversos géneros musicais com elementos tradicionais portugueses, tanto na estética sonora como visual.
“Sempre gostei muito de música tradicional, por isso acho que é desafiante, e há muitas abordagens diferentes. Os Bandua têm uma parte muito específica da eletrónica com a portugalidade; e sempre houve projetos assim, como os Diabo na Cruz; também adoro os Expresso Transatlântico. Gosto muito de música portuguesa e sinto que isto é uma evolução natural. A música está sempre a evoluir. Já o Zeca Afonso e o Fausto pegaram em música tradicional e evoluíram-na e fizeram a sua canção de intervenção, ou seja, é sempre algo que está em constante mutação e é super giro ver como é que a música tradicional evolui num mundo eletrónico.”
Vou Ficar Neste Quadrado vai ser apresentado a 5 de abril no Plano B, no Porto; e a 11 de abril no B.leza, em Lisboa. “Acho que vai ser um bom ano, vou tocar em festivais de que gosto muito e que gostava muito de frequentar, como o Bons Sons ou o Primavera Sound, portanto estou super contente. E todos os outros sítios: adoro ir conhecer aldeias ou pequenas vilas a que nunca tinha ido para tocar…”
Também aí encontra um sentimento de identificação com um público que, até podia estranhar, mas mais facilmente entranha. “Há pessoas que me vêm dizer: ‘Ah, faz-me lembrar a música que a minha avó cantava ou ouvia’. E depois também tenho outras componentes, como o sintetizador e as máquinas, e acho curioso que muita gente aponte mais aquilo que lhes soou familiar — focam-se mais no familiar do que na estranheza do resto.”
[o vídeo de “Deixem o Morto Morrer”:]
Entre a estranheza e a familiaridade, o experimentalismo inconformado e o conforto da tradição, Ana Lua Caiano sabe equilibrar-se na corda bamba desta dualidade e, mais do que uma promessa da música nacional, está a tornar-se uma certeza cada vez mais segura. O seu quadrado expande-se de forma exponencial e já não há nada que o faça voltar para trás.
“As coisas estão a correr bem, estou super contente, desde que possa continuar a tocar não tenho outras expetativas para o álbum. Já tenho cinco ou seis músicas novas que sei que quero explorar, mais umas gravações em que ainda nem mexi, e o que me interessa sempre é que isto me continue a sair de forma natural. Aparentemente, é o que vai continuar a acontecer.”