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Se o arranque de uma obra é tão poucas vezes descurado — ainda hoje o início de Anna Karenina, de Tolstoi, é tido como um dos excertos mais marcantes da história da literatura, ainda hoje poucos esquecem a descrição que Eça de Queiroz fez do Palácio de Ramalhete (que teve como inquilino recente a cantora Madonna) no começo de Os Maias —, não será inocente que a primeira frase que se ouve na nova mini-série britânico-americana Chernobyl seja uma pergunta filosófica: “Quanto custam as mentiras?”
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O espectador demora poucos segundos a perceber que a pergunta é feita pelo ator inglês Jared Harris. Desta vez, Harris não é o Lane Pryce de Mad Men, não é o Rei George VI de The Crown, não é o vilão James Moriarty de “Sherlock Holmes: Jogo de Sombras”. Desta vez é Valery Legasov, o químico soviético que chefiou a comissão técnica de investigação ao desastre de Chernobyl, criada exatamente no dia em que o acidente nuclear aconteceu — 26 de abril de 1986.
“Não houve nada de são. Mesmo o bem que fizemos, tudo aquilo… loucura”
Este Valery Legasov está sentado à mesa, com um gravador na mão. Ouve a pergunta que ele próprio já fez: “Quanto custam as mentiras?” Ouve-se a si mesmo a prosseguir o raciocínio: “Não é que pensemos que são verdade. O verdadeiro perigo é que, se ouvirmos mentiras suficientes, deixemos de reconhecer a verdade”. Fica logo claro: portanto, alguém mentiu sobre o acidente de Chernobyl (e não foi pouco). Perante isso, o que fazer? “Só nos resta abandonar a esperança da verdade e contentarmo-nos apenas com histórias. Nessas histórias, não importa quem são os heróis. Só queremos saber quem devemos culpar”.
Quem é que se culpou desta vez, “nesta história”? Anatoly Dyatlov. Porquê? Era “o supervisor, foi ele que deu as ordens” de resposta ao acidente. Ainda por cima era “um homem arrogante e desagradável”, que “não tinha amigos — ou pelo menos não tinha amigos importantes”. Era “a melhor escolha”. Este Valery Legasov, interpretado por Jared Harris, não tem dúvidas: Dyatlov “passará dez anos numa prisão de trabalhos forçados” e a sentença “é duplamente injusta”. Por dois motivos: “Houve criminosos muito piores do que ele em funções” e a pena é excessivamente curta, “Dyatlov não merece a prisão, merece a morte” — imagine-se o que defenderia para o destino de outros envolvidos. “Não houve nada de são em Chernobyl. O que aconteceu lá, o que aconteceu depois, mesmo o bem que fizemos, tudo aquilo… Loucura. Bem, já disse tudo o que sei”, ouve-se ainda.
Há um carro no exterior da casa de Valery Legasov, atento aos seus movimentos. O químico soviético sai, volta, dá comida ao gato. No final dessa primeira cena desta nova série que pode ser vista na plataforma de subscrição de cinema e televisão HBO Portugal, o espectador percebe que Legasov não defende para Dyatlov menos do que defende para si. Enforca-se. Ninguém pode garantir que tudo tenha acontecido assim em 1988, quando o verdadeiro Legasov, que Harris interpreta tão fielmente quanto lhe é possível, terá revelado informações nunca contadas para um gravador — nem isto é certo — e cometido suicídio a seguir.
É humanamente impossível recontar e percorrer os passos de outrem exatamente como essa pessoa os deus, fazer uma imitação tão fiel de alguém que é impossível notar diferenças. O ator sueco e protagonista desta série Stellan Skarsgård, que já foi Bootstrap Bill na saga “Pirata das Caraíbas”, Lambeau em “O Bom Rebelde” e sobretudo Jan Nyman em “Ondas de Paixão” (de Lars Von Trier), está consciente disso. Em conversa com o Observador e outros meios de comunicação internacionais num hotel londrino, em março, disse isso mesmo: “As personagens são ficção porque é impossível descrever um ser humano, é demasiado complexo. Há sempre algo de subjetivo. À superfície é possível assemelharmo-nos a personagens reais, mas quanto à personalidade nunca conseguiremos replicá-la”.
O início da série, com a frase “Quanto Custam as Mentiras?”, não serve só para introduzir a reflexão desta personagem inspirada em Valery Legasov. Também dá o mote para o tom deste primeiro episódio — que já pode ser visto na HBO Portugal — e provavelmente para os próximos quatro, que chegarão às televisões nacionais (através da já referida plataforma de subscrição paga) nas próximas semanas, todas as segundas-feiras.
A tese do criador da série, Craig Mazin, um realizador e (sobretudo) guionista norte-americano mais conhecido pelo trabalho em filmes pipoca como “Scary Movie 3” e o segundo e terceiro capítulo da saga de cinema “A Ressaca”, fica clara: é impossível perceber Chernobyl sem atender à desinformação à época sobre o que realmente aconteceu naquele dia 26 de abril de 1986, quando um reator da Central de Energia Nuclear V. I. Lenin — ou Central de Energia Nuclear de Chernobyl, como é mais conhecida — explodiu. Mais até do que isso: não é possível perceber Chernobyl sem perceber o quanto a desinformação foi motivada por um sistema político e ideológico, o comunismo soviético, que não poderia falhar mesmo quando falhasse.
Tudo isto é percetível no primeiro episódio da série. Esta versão televisiva de Valery Legasov começa logo por clarificá-lo antes mesmo de se enforcar, depois do seu discurso sobre a verdade, a mentira e a “loucura” de Chernobyl. Diz a personagem antes de tirar a vida: “Bem, já disse tudo o que sei. Eles negarão, claro. Negam sempre”.
É curioso que as tais revelações de Legasov não cheguem logo ao espectador. Há que puxar a fita atrás, recuar no tempo (dois anos, mais precisamente) e mostrar uma versão que se pretende réplica não excessivamente ficcionada do que aconteceu na central nuclear da cidade de Pripyat, localizada na antiga União Soviética, na região norte do que é hoje território ucraniano — a 174 quilómetros de Kiev e a perto de 250 quilómetros da fronteira da Ucrânia com a Bielorrússia (a região mais afetada pela radiação de Chernobyl, como lembrava a “Nobel” Svetlana Alexievich numa das obras de referência sobre o tema, traduzida para português com o título “As Vozes de Chernobyl”).
Mas voltemos à desinformação politicamente motivada. Quando começa a haver sinais de que um problema grave aconteceu na central nuclear ucraniana a 26 de abril de 1986, um dos funcionários avança uma hipótese catastrófica: “O núcleo [do reator quatro do edifício] explodiu”. Primeira reação: “Ele está em choque. Tirem-no daqui”. A possibilidade vai sendo avançada mais vezes, um outro funcionário faz uma sugestão parecida, mas os responsáveis da central vão negando: “está confuso”, “os reatores RMBK não explodem”, é “fisicamente impossível”, “só pode ter sido o tanque”, “levem-no à enfermaria, está a alucinar”.
Os bombeiros são chamados para combater o que seria só um incêndio no telhado e a mulher de um deles preocupa-se, “e se houver químicos?” O marido ri-se antes de ir para o coração da “Zona”, como ficou conhecida a área mais afetada pela radiação resultante do acidente. Tranquiliza-a, diz-lhe “vai arder a noite toda e cheirar mal que se farta, mas é só isso”.
O retrato traçado é duro para a resposta do regime soviético, que se recusa a acreditar na dimensão do acidente até ao limite do possível. Na série há uma reunião de altos funcionários em que se diz que “o acidente está perfeitamente controlado”, há um rebelde que sugere “evacuar a cidade” de imediato (o que na verdade até poderia ser nefasto, ao contrário da impressão com que se fica na série) e há um oficial veterano, interpretado pelo ator Donald Sumpter, que acaba aplaudido de pé. O motivo da ovação? Um discurso inflamado sobre as recompensas da fé no socialismo soviético, sobre a importância de ser o Estado a zelar pelo interesse das pessoas, sobre a necessidade de barricar a cidade: “Vamos selar. Ninguém sai. E cortem as linhas telefónicas. Contenham a disseminação de falsas informações. É assim que se impede que o povo estrague os frutos do seu trabalho”.
A crítica tem-se dividido sobre os méritos deste primeiro episódio de “Chernobyl”. Se a larga maioria é elogiosa, também há sinais dissonantes. Haver uma mistura de personagens inspiradas em figuras soviéticas e outras construídas de raiz (como Ulyana Khomyuk, uma cientista bielorrussa ficcional que investiga o desastre, interpretada por Emily Watson) não ajuda, a dramatização de alguns momentos que não terão acontecido exatamente assim (nomeadamente funcionários da central e bombeiros a cair que nem tordos, completamente ensanguentados e à beira da morte, logo nas horas seguintes ao acidente, ou ainda a forma heróica e dramática como alguns se voluntariam para uma missão suicida) também não.
No The New York Times, o crítico Mike Hale notou “uma propensão para a inflação [dos acontecimentos] habitual em Hollywood — para nos mostrar coisas que não aconteceram”, enquanto o analista da Forbes Michael Shellenberger, defensor da energia nuclear (tal como, já agora, o criador e argumentista da série), contestou quase todo o impacto do acidente nas primeiras horas após a explosão que é sugerido na série, desvalorizando mesmo a dimensão da catástrofe. Os próximos capítulos de Chernobyl — o segundo de cinco episódios chega à HBO Portugal já na próxima segunda-feira — deverão trazer mais detalhes sobre a fiabilidade dos relatos.
Stellan Skarsgård: “Parece que a verdade é uma espécie de arte em vias de extinção…”
“De 1986 lembro-me, é do que aconteceu ontem que não me consigo lembrar”. Stellan Skarsgård estava bem disposto na manhã de março em que se deslocou a Londres para uma sessão de respostas a jornalistas — foi quase preciso, aliás, a comitiva que gere estes compromissos arrancá-lo da cadeira para lhe dar a entender que o tempo concedido para a sessão já tinha terminado. Atualmente com 67 anos, o ator sueco, que em Chernobyl interpreta o então vice-presidente do conselho de ministros da União Soviética Boris Scherbina, tinha já 37 anos quando aconteceu o acidente nuclear.
Uma das coisas de que Stellan Skarsgård se lembra é que a informação que lhe chegou veio de “fontes ocidentais”, porque “a União Soviética não disponibilizou muita informação” e, quando o fez, “fê-lo sempre no sentido de desvalorizar a dimensão da catastrófe”. Curiosamente, o primeiro aviso do regime de que tinha havido um acidente em Chernobyl aconteceu nessa noite de 28 de abril de 1986 via televisão. No programa noticioso (para alguns, propagandístico) Vremya, que ainda é emitido — já não na estação “Programme One” da Televisão Central da URSS, mas no Channel One Russia —, o governo lançava o aviso: “Houve um acidente na Central de Energia Nuclear de Chernobyl. Um dos principais reatores foi danificados. Os efeitos dos acidente estão a ser reparados. Está a ser providenciada assistência a todas as pessoas afetadas. Foi montada uma comissão de investigação”. Durou 20 segundos, a leitura da missiva.
Curiosamente, poucos anos antes do acidente nuclear de Chernobyl, o ator sueco tinha ido às urnas votar num referendo sobre energia nuclear. Na altura, votou “não” mas hoje já não o faria. “Isso foi num mundo que parecia radicalmente diferente do mundo de hoje, o aquecimento global era só uma ideia nessa altura”, apontou, lembrando que e a energia nuclear “é uma das formas mais limpas e seguras de obter energia”. Hoje, acredita, “o mundo está numa situação tão má que talvez precisemos de energia nuclear para reinventar as novas forças de energias renováveis”. No que não acredita é nas sugestões de diminuição radical do consumo de energia no mundo como solução para os problemas ambientais: “Não podemos dizer isso, a maneira como cultivamos e como praticamos agricultura atualmente exige muita energia e muitos tratores. Além disso, se a população duplicar como se prevê que possa acontecer, vamos precisar mesmo de muita energia. Não sou um cientista e é uma questão delicada”, apontou, logo concluindo: “Mas a pergunta parece-me ser: então, humanidade, como queres morrer? E quando?”
Provando que a resposta errónea ao acidente nuclear (politicamente motivada) é um dos principais alvos de “Chernobyl”, Stellan Skarsgård apontou a mira ao regime soviético durante a sessão de conversa com jornalistas: “O que é que causou verdadeiramente a catástrofe, se virmos bem? Foi um sistema que não podia falhar, uma ideologia que era infalível. É como com qualquer religião, sabes que é preciso suprimir a verdade. É isso que é verdadeiramente perigoso. Essa religião pode ser o comunismo, pode ser uma religião em si mesmo ou podem ser interesses capitalistas como aconteceu em Fukujima, que foi um desastre provocado pela falência do capitalismo, com as empresas a impossibilitar uma resposta efetiva ao desastre”. Não é, porém, necessário ir buscar apenas exemplos do passado: “Porque raio é que a Boeing, por exemplo, hesita quanto a deixar no solo os aviões 737 Max 8 [devido a dois grandes acidentes com estes aviões registados em apenas cinco meses, que causaram a morte de 338 pessoas]? Porque é que eles tentaram suprimir sequer a ideia de que fizeram porcaria?”
Bem antes de ser ator, Stellan Skarsgård quis ser diplomata, para andar pelo mundo a promover a paz. Mais tarde, como revelou já em entrevistas, apercebeu-se que ser diplomata exigiria, por vezes, que funcionasse como uma espécie de megafone do seu governo, concordasse ou não com ele. Perguntámos-lhe se ter experimentado o papel de um político da União Soviética fê-lo ter a certeza de que tomou a melhor opção ao enveredar pela carreira de ator. Ele riu-se: “Provavelmente, sim. Embora se possa dizer que o Scherbina passou toda a sua vida naquele sistema e a defender aquele sistema, que é baseado até numa ideia bastante decente de que o mundo deveria ser bom para todos — mas na prática, não funcionou exatamente assim. Depois de acontecer esta catástrofe, ele vai-se apercebendo gradualmente de que ela aconteceu por causa do sistema. Começa a ver gradualmente as falhas do sistema e isso destrói-o de certa forma, é algo devastador para ele. Ao mesmo tempo tenta ficar ali e trabalhar para de certa forma se redimir”.
Em “Chernobyl”, mais à frente nesta temporada, a personagem de Stellan ver-se-á confrontada com uma informação que a deixa aterrada: vai morrer em menos de cinco anos. Ao homem que faz de Boris Scherbina, a morte já não parece tão aterradora assim, também — mas não só — por não ter uma previsão temporal tão definida. “Não tenho medo da morte. Não quero que os meus filhos morram antes de mim, isso é-me importante, mas não ando a carregar esse medo porque paralisar-me-ia e faria de mim um pai incapaz de lhes dar grandes alegrias”, apontou. O truque que usa para viver mais ou menos tranquilamente é fazer uma espécie de “estimativa de risco” para algumas atividades, como voar — “deixa-me mais descansado, ajuda-me a estar tranquilo” —, e para algumas sombras que pairam no mundo, como o terrorismo. “Se tens medo de terroristas na Europa, talvez ajude saber que houve mais pessoas mortas por terroristas neste continente na década de 1980 do que na atual, só não eram tão bem televisionados. Mesmo na América, há este medo ‘Ó MEU DEUS’ sobre terroristas, mas depois todos os anos 30 mil pessoas morrem por tiros que não são disparados por terroristas…”
O facto de a série vincar a difícil relação do regime soviético com a transparência e com factos prova, desde logo, que as “fake news” não são um fenómeno novo, são quanto muito um fenómeno que no Ocidente se sofisticou tecnologicamente e se institucionalizou fora da esfera do Estado. Stellan Skarsgård não está profundamente encantado com o estado do mundo, acha que a série também é importante por nos alertar para “a importância de ouvir a verdade, os factos e a ciência” e não misturar nada disto com emoções e opinião, lamenta que “a verdade pareça uma espécie de arte em vias de extinção” e que se ande à procura de informação credível tendo o Facebook como fonte primária de notícias quando “o melhor é procurar informações em fontes que já sabemos que são aquelas que mais verificam a autenticidade das informações que veiculam”.
O Ocidente, por sinal, também não escapou às suas críticas nesta conversa, pela forma como — para Stellan Skarsgård — alimentou o que é hoje a Rússia. “O Ocidente, de certa forma, colocou Putin onde está. Quando caiu o muro [de Berlim], a NATO e o Ocidente foram tão sôfregos a tomar o controlo de países à volta da Rússia e humilhar a Rússia que as pessoas lá sentiram-se mesmo humilhadas”, defendeu o ator, lembrando que a Rússia passou de “potência mundial a irrelevante” num ápice. “A economia estava a despedaçar-se e os americanos, pelo menos foi assim que viram a coisa, começaram a tomar país atrás de país perto da Rússia, cada vez mais perto. Isso criou uma situação paranóica que foi terreno fértil para que um homem como Putin aparecesse — e ele ainda está a beneficiar disso. Claro, o sistema atual na Rússia não é exatamente democrático ou livre, é terrível”, acrescentou Stellan, reiterando que também não é fã do “novo autoritarismo que vem da igreja, em países como a Polónia”.
Emily Watson e a televisão face ao cinema: “Há muitas mulheres que controlam os botões”
Menos expansiva, com um tom de voz mais baixo, Emily Watson, atriz britânica de 52 anos que em “Chernobyl” interpreta uma cientista bielorrussa idealizada pelos criadores da série, mostrou-se satisfeita com a possibilidade de entrar neste projeto quando falou com a imprensa. Com alguns projetos em televisão feitos nos últimos dois anos — como a mini-série “Little Women”, a série histórica “Genius” e a mini-série “Apple Tree Yard” —, Emily Watson sublinhou aos jornalistas que para a ficção dramática televisiva “há um público muito mais abrangente e diversificado, com interesses muito distintos” e que não é “maioritariamente masculino”, dado que “há muitas mulheres que controlam os botões da televisão” e decidem o que querem ver.
Quando o acidente nuclear de Chernobyl aconteceu, Emily Watson tinha 19 anos e estava nos Estados Unidos da América. Além de se lembrar de ter ficado “completamente chocada”, a atriz recorda-se que havia “alguém que conhecia” à data, mas com quem entretanto perdeu contacto, que “estava a estudar um ano em Kiev quando aquilo aconteceu”. Essa pessoa acabou por “voltar a casa muito rapidamente”. Outro dado de que Emily Watson se recorda é da “diferença muito percetível entre o que estava a ser noticiado nos media ocidentais e o que estava a ser noticiado na União Soviética” sobre .
Assumindo uma personagem que é uma “criação” que serve também de “homenagem às pessoas que fizeram aquele tipo de papel” na tentativa de contenção do impacto do desastre, Emily Watson entrou numa “história terrível dos nossos tempos”, que levou gente a “entrar em completa negação quanto ao que tinha acontecido, quanto à seriedade e dimensão do que aconteceu”. Esse foi um dos aspetos que mais a surpreendeu quando leu sobre os acontecimentos de Chernobyl. Outro foi o quão próximo esteve este acidente nuclear de ter um impacto ainda mais devastador: “Poderia ter tido consequências muito piores. Alguém sabia disto, as pessoas estarão a par? Achei isso completamente aterrador. Não foi ainda pior graças à tenacidade de uns poucos homens e mulheres que disseram: não, não está tudo bem, não foi um pequeno acidente, temos de resolver isto e temos umas 48 horas para o fazer”.
Se na altura havia desinformação na União Soviética, hoje o cenário não é perfeito mesmo no mundo ocidental, acrescentou a atriz: “Parece que se consegue persuadir seja quem for daquilo que quisermos. A verdade tornou-se enviesada, flexível, dobrável — e isso está a destruir a democracia aos nossos olhos”.
No processo de investigação para a composição da personagem, Emily Watson leu o livro que para muitos é uma espécie de Bíblia sobre Chernobyl: “Vozes de Chernobyl”. “Foi o que achei mais inspirador”, contou aos jornalistas, sublinhando algo de “extraordinário” que ali leu: os moradores da região estavam habituados a gente a marchar nas ruas, a soldados e a conflitos armados, mas em 1986 tiveram de se confrontar com um “mal de natureza diferente”, que não estava nos homens mas “na água, no ar que se respirava, no solo”. Isso deixou quase toda a gente “muda durante quase duas semanas, ninguém conseguia processar o que tinha acontecido”.
Embora tenha dito que a série não pretende “pregar” contra ninguém em específico, pretende antes “funcionar como espelho, para que as pessoas olhem e digam: isto é o que somos, o que fazemos”, Emily Watson vincou que será sempre impossível falar sobre o acidente nuclear de Chernobyl sem olhar para as questões “da natureza de envolvimento político”, para a “burocracia e tomadas de decisão” e para o “controlo estatal de alto nível na resposta” aos acontecimentos, que tornam o regime soviético o “primeiro responsável pelo que aconteceu”.
A série, na qual Emily Watson teve de falar com uma voz e um sotaque alheio (porque a sua voz era “demasiado doce” para a personagem e o sotaque “demasiado britânico”), foi também um regresso da atriz de 52 anos a um projeto em que divide protagonismo com o sueco Stellan Skarsgård. Os dois tinham trabalhado juntos em “Ondas de Paixão”, o filme de Lars Von Trier de 1996 que marcou a estreia de Emily Watson no cinema. Para a atriz, foi “um sonho” reencontrar o colega, que foi “uma grande influência” em si e na sua carreira “não apenas enquanto ator” mas enquanto “exemplo de como estar nas rodagens, de como estar com outras pessoas e de como ser a pessoa mais generosa e adorável, com grandes valores humanos e com um ótimo sentido de humor”. Passados mais de 20 anos, Emily Watson já não está “tão crua” e “sem saber realmente o que está a acontecer à minha volta”, é “a principal diferença”.
O ator sueco com quem contracenou em 1996 e com quem contracena agora deu a Emily Watson um conselho que esta garantiu que “não vai esquecer”, que foi “o melhor” que já lhe deram. Qual foi? “Quando cheguei a Copenhaga, disse-lhe: como é que fazes isto? Nunca o tinha feito. Ele disse-me: não tentes alcançar nada, deixa-te ir simplesmente. É uma abordagem verdadeiramente boa a esta profissão”, contou. Stellan, por sua vez, também gostou do reencontro, como explicou ao Observador: “Foi o primeiro filme da Emily e a ela não é sueca, não está habituada a estar nua. Foi muito corajosa, expôs-se mentalmente e fisicamente e foi absolutamente fantástica. Na altura não tive sequer de fingir, estava apaixonado por ela, ficava simplesmente a olhar para ela e a admirá-la, toda ela brilhava”. Acrescentou ainda: “Foi o primeiro filme da Emily e fez dela uma grande estrela internacional. Em alguns aspetos isso deve ter-lhe lixado a vida, noutros deve ter-lhe tornado a vida melhor. Neste projeto, passados mais de 20 anos, trabalhámos de forma ligeiramente diferente: tínhamos mais roupa vestida, falámos sobre coisas diferentes… mas foi divertido, também.”
Jared Harris: “Era algo que não podia acontecer”. Enquanto foi possível negar, “não aconteceu”
Também bem disposto estava Jared Harris, ator inglês que em “Chernobyl” encarna Valery Legasov, a personagem histórica que está mais próxima de ser retratada como um herói na série. O protagonista desta nova série da HBO e Sky aproveitou para revelar um pouco do que foram as filmagens: “Filmámos na Lituânia. Também filmámos algumas cenas exteriores em Kiev [Ucrânia] e depois passámos uma semana na central de energia nuclear de Ignalina [na Lituânia], mas não nos deixaram entrar”.
A dificuldade em aceder ao interior de Ignalina tem uma explicação caricata: “Quanto a Lituânia quis entrar na União Europeia, uma das condições era que tinham de desmantelar a central de Ignalina, porque é uma réplica exata da central de Chernobyl. Eles têm estado a fazê-lo e já disseram: não há cá material nuclear. Num dos dias, porém, disseram-nos que não poderíamos ir lá até às 15h30, porque estavam a transportar material nuclear [risos]. Os materiais estão a ser retirados pedaço a pedaço, com cuidado e lentamente, daí ainda haver material nuclear ali”.
As críticas a alguma Hollywoodzicação dos acontecimentos de Chernobyl já surgiram em alguns meios de comunicação norte-americanos, como o jornal The New York Times e a revista Forbes, mas Jared Harris acha que foi encontrado um equilíbrio entre a fidelidade aos factos e o poder visual desta mini-série. Houve, defendeu, “um desejo de autenticidade” presente logo no argumento, que envolveu “bastante pesquisa”. O argumentista e realizador da série queria que esta “fosse realista e não que fosse sensacionalista”, garantiu ainda o ator: “Não queriam uma glamourização ou Hollywoodização do que aconteceu, mas ao mesmo tempo o Johan Renck [realizador] também tem um sentido visual muito forte, queria que a série tivesse isso presente mesmo que em dados momentos se aproxime do estilo documental”.
Jared Harris aproveitou ainda para falar da sua personagem, que na série tem de batalhar para ser ouvida pela cúpula do regime soviético: “Não é que seja algo que não aconteça noutros momentos e na história: perante factos desconfortáveis, perante ações que são necessárias mas não são convenientes, escolhe-se tentar ignorar, tenta-se até ao limite que nada daquilo seja encarado como verdade e a dimensão do problema vai aumentando, aumentando…”, apontou. “É o caso clássico da pessoa que sabe mais sobre o assunto ser a menos ouvida, acontece muito. Há uma frustração constante quando sabemos do que estamos a falar e ninguém nos leva a sério porque o que dizemos é inconveniente”.
Na realidade, é difícil confirmar que Valery Legasov tenha tido uma postura quase heróica semelhante à que se vê na série, de contestação à posição oficial do regime soviético sobre o acidente. Porém, por ser o grande perito da comissão de investigação ao acidente e por se ter suicidado, mordido pelo remorso, pouco depois — e pelo trabalho que desempenhou, claro — seria sempre a figura mais próxima desse protótipo de herói.
A URSS “era suposto ser uma sociedade perfeita onde nada corresse mal”, lembrou ainda Jared Harris. Um desastre do tipo era “algo que não poderia acontecer e como tal não aconteceu” — pelo menos enquanto foi possível não o assumir. Atualmente, porém, a atitude continua em voga, para o ator: “As pessoas ainda andam a discutir se a porra das alterações climáticas está em curso ou não, é insano”. Ainda por cima, “a internet também teve consequências indesejáveis e nefastas, que não esperávamos. Por exemplo, andamos todos a gravitar em torno de opinião que já está mais ou menos alinhada com a maneira como pensamos e com aquilo que sentimos. Já não somos muito desafiados com informação que achamos desagradável, que não traduz a maneira como vemos as coisas”.
“Chernobyl” é só o projeto mais recente de um ator que nos últimos anos se tem vindo a especializar em ficção televisiva. Antes desta minisérie da HBO e Sky, Jared Harris entrou em “The Terror” (onde interpretou a personagem Francis Crozier), “The Crown” (fez de rei George VI) e “The Expanse” (interpreta Anderson Dawes). O último filme que fez, “Aliados”, já foi para as salas de cinema há perto de três anos. Porquê o foco nas séries? Ele explicou: “Há muito a ser feito nessa área. Essa forma de entretenimento ganhou o campeonato de entreter adultos. Os filmes e os estúdios de cinema já desistiram de se interessar por esses públicos há bastante tempo. Os estúdios só se interessam por filmes com temas para adultos por volta da temporada de prémios, vão aos festivais de cinema comprar filmes à procura de prémios. A televisão preencheu uma necessidade que existia, havia um vácuo e as séries vieram ocupá-lo”, defendeu. Chernobyl é só a mais recente.
O Observador esteve em Londres a convite da HBO Portugal