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Vladimir Putin deu os parabéns ao comandante responsável pela conquista de Avdiivka, divulgando o conteúdo do telegrama: “Glória eterna aos heróis que caíram no cumprimento das tarefas da operação militar especial”, escreveu o Presidente russo na missiva divulgada pelo Kremlin na semana passada. À altura, ainda havia dúvidas sobre se a cidade da região de Donetsk tinha de facto caído para a Rússia. Mas, nessa mesma noite, o novo chefe do Estado-Maior ucraniano, o general Oleksandr Syrsky, confirmou a retirada dos seus militares. “Para evitar um cerco e preservar as vidas e saúde dos militares, decidi retirar as nossas unidades da cidade.”
A queda de Avdiivka é um duro golpe para a liderança ucraniana — o maior desde que a Rússia conquistou Bakhmut em maio de 2023 — que será certamente aproveitado pelo Kremlin para promoção interna em período de campanha eleitoral para as presidenciais de março. Disputada pelo Exército ucraniano e pelos separatistas pró-russos desde 2014, a cidade era um dos poucos pontos em Donetsk que ainda se mantinham controlados por Kiev desde a invasão de larga escala de fevereiro de 2022. Agora, na sequência de uma ofensiva reforçada de Moscovo que começou em outubro do ano passado, passa para o controlo do Exército russo.
Estrategicamente, a localidade é fulcral para os russos consolidarem a região. “Tudo se resume à logística”, havia notado um comandante ucraniano da 53.ª brigada ao Washington Post dois dias antes da retirada. “Estradas, interfaces, tudo: há muita logística representada nas ruas de Avdiivka.”
Ao longo da última semana, contudo, vários media ucranianos e norte-americanos foram publicando relatos de soldados e civis sobre o que aconteceu nos últimos meses em Avdiivka. E o retrato que se vai desenhando é ainda mais negro do que se esperava para a Ucrânia. Sob chuva constante de artilharia russa, os poucos civis que restavam em Avdiivka viviam agora praticamente debaixo de terra, nos abrigos subterrâneos de edifícios arrasados. E os militares, esses, foram progressivamente recuando as suas linhas, acabando por se manter nos últimos redutos da principal fábrica da cidade e da base Zénite. Por fim, a ordem de retirada chegou, súbita e desesperada: os feridos, relatam os soldados, tiveram de ser deixados para trás.
“Apesar de tentarem evitar fazer desta batalha outra Bakhmut, a retirada foi à mesma tardia e custosa e não reflete as lições aprendidas em Severodonetsk, Soledar e Bakhmut”, notou o analista militar norte-americano Michael Kofman. A admissão da derrota não foi publicada nos media internacionais: foi replicada no jornal ucraniano Kyiv Independent.
De 30 mil a menos de mil habitantes. Avdiivka tornou-se numa cidade-fantasma onde os civis vivem debaixo de terra
Disputada militarmente desde 2014, Avdiivka tornou-se num campo de batalha mais feroz em outubro do ano passado, altura em que a Rússia decidiu investir numa ofensiva na cidade. Ao longo dos últimos meses, a chuva de artilharia não parou um segundo: de acordo com uma estimativa dos serviços secretos britânicos, só nas últimas quatro semanas a Força Aérea russa largou 600 bombas sobre a cidade, 50 delas num só dia.
A isso somavam-se os ataques com drones e os avanços corpo-a-corpo das unidades de assalto sobre os escombros dos edifícios, atingindo os soldados ucranianos. E, apesar das comparações com Bakhmut, os especialistas notam uma diferença nas táticas russas em Avdiivka: desta vez, os soldados eram sobretudo militares profissionais e não os inexperientes condenados que a Wagner recrutou. Na ofensiva sobre a cidade, notava o analista militar Tom Cooper, citado pela edição ucraniana da Forbes, participaram sete brigadas do Exército oficial, incluindo duas das unidades especiais dos serviços secretos militares.
Em janeiro, os russos começaram a entrar nas zonas residenciais. Uma das moradoras de Avdiivka, Victoria, contou ao New York Times um dos últimos ataques que testemunhou, na rua Chernyshevskoho, perto da entrada da cidade — onde há ainda uma placa que diz “Avdiivka é Ucrânia”: “As pessoas foram tão bombardeadas que se enrolavam em lençóis e saíam para a rua”, à procura dos voluntários das ONG ainda no terreno que retiravam civis.
Durante meses, Victoria não quis sair. “As campas dos meus familiares estão aqui”, justificava-se. E não era a única. Imagens captadas pelas bodycams de dois polícias ucranianos que chegaram à CNN mostram uma filha adulta a implorar ao pai idoso, pelo telefone, que parta e se junte a ela em Kherson. “Não vou a lado nenhum”, ele responde-lhe.
A 2 de fevereiro, porém, Victoria não aguentou mais e partiu com os voluntários; foi uma das últimas civis a abandonar a cidade. Desde então, mais ninguém foi retirado. Se, em tempos, Avdiivka teve uma população acima dos 30 mil, hoje restam menos de mil civis na cidade. A maioria viveu as últimas semanas completamente debaixo de terra, escondida nos abrigos, já sem acesso aos alimentos trazidos pelas ONG. Ninguém sabe ao certo como sobreviveram, nem que destino receberam quando os soldados russos chegaram.
O cerco à fábrica química e de coque. O último reduto dos militares ucranianos onde uma garrafa de água era partilhada por três
Enquanto os soldados russos avançavam e os civis se refugiavam nas caves, os soldados ucranianos iam progressivamente baixando as suas linhas militares.
Um dos seus últimos redutos foi a fábrica química e de coque da cidade, um antigo símbolo da economia local — foi, em tempos, a maior produtora daquele combustível derivado do carvão em todo o país e pertencia ao homem mais rico da Ucrânia, Rinat Akhmetov. Há um ano, os soldados ucranianos enchiam as paredes da fábrica de graffiti onde mandavam os russos “ir para o inferno”, como testemunhou a enviada do jornal El País. Nas últimas semanas, o ambiente ali dentro era progressivamente mais sombrio: “Uma garrafa de água de litro e meio era o que tínhamos para três pessoas e tinha de durar pelo menos quatro dias”, contou um soldado, Oleh (nome fictício) ao Kyiv Independent. Também as munições começavam a ser racionadas pelos soldados.
Na penúltima semana antes da retirada, uma equipa do Washington Post foi autorizada a passar um dia e uma noite com os soldados ucranianos dentro da fábrica. Ali testemunhou que uma das unidades dos serviços especiais — a unidade Alpha — estava a usar a fábrica como ponto de lançamento de drones com câmaras contra os soldados russos. Mas o moral era de desespero, com os militares a temerem um assalto dos russos à fábrica a qualquer altura.
Na passada sexta-feira, denunciou um comandante da 3.ª brigada de assalto ucraniana, os russos dispararam munições incendiárias contra a fábrica, para atingir os tanques com químicos e provocar um incêndio. No dia seguinte, um dos soldados ali presentes, Volodymyr Furayev, publicava um vídeo no TikTok em plena retirada dos ucranianos da fábrica. “Está tudo a ser atingido. É difícil saber para onde vamos”, dizia para a câmara, de acordo com o New York Times. “Olá a todos os que me conhecem. Não sei se vamos sobreviver.”
“A estrada para Avdiivka ficou repleta dos nossos cadáveres”. A retirada ucraniana com ordem para deixar os feridos para trás
Os soldados acabaram por se reagrupar nos abrigos subterrâneos da antiga base aérea Zénite, último ponto controlado por Kiev em Avdiivka. Mas não ficaram ali muitas horas. Pouco depois, chegariam as ordens para sair da cidade e evitar serem cercados pelos russos, repetindo-se cenários semelhantes ao da Azovstal (em Mariupol) e de Bakhmut.
E a decisão foi a de sair o mais rapidamente possível. “Numa situação em que o inimigo avança sobre os cadáveres dos seus próprios soldados com uma vantagem de 10 para 1 em munições, sob bombardeamento constante, esta é a única solução certa”, declarou Oleksandr Tarnavskyi, responsável pelas forças ucranianas no sul do país.
Os relatos dos soldados ucranianos que ainda ali restavam ilustram que a retirada foi descontrolada, sem o envio de carros militares de apoio e, de acordo com os seus testemunhos, com ordem para deixar os feridos para trás. Oleh, que falou com o Kyiv Independent, conta que se despediu dos colegas feridos e saiu com um pequeno grupo a pé para atravessar a pequena abertura de 120 metros no redor da cidade que ainda não era controlada pelos russos. “Fomos abandonados ali”, lamentou-se ao jornal ucraniano dias depois, quando já tinha chegado em segurança a outra cidade controlada pela Ucrânia.
Outro soldado, Viktor Biliak da 110.ª brigada, fez um relato semelhante ao New York Times. “Éramos um bando de gatos cegos a sermos guiados por um drone [sob] artilharia inimiga. A estrada para Avdiivka ficou repleta dos nossos cadáveres”, disse. Um camarada ferido a seu lado chegou a perguntar pelo rádio se não viria a caminho um veículo de evacuação e a resposta foi de que os feridos deveriam ficar para trás. “Ele não sabia que estava a falar com um ferido. Aquele diálogo pelo rádio feriu-nos no âmago.”
Ainda não é certo o que aconteceu a todos os ucranianos feridos que ficaram para trás. De acordo com as leis internacionais, deveriam ter sido feitos prisioneiros de guerra pelo Exército russo. As autoridades ucranianas, porém, anunciaram esta segunda-feira que vão avançar com processos judiciais contra Moscovo, na sequência da divulgação de mensagens no Telegram que dão conta de que pelo menos seis prisioneiros de guerra ucranianos terão sido executados. A Rússia nega a acusação.
Quase uma semana depois dessa retirada, ainda não há clareza sobre o que aconteceu a esses seis soldados ucranianos e a todos os outros que ficaram para trás. Kiev não divulga o número oficial, mas os relatos de militares que estiveram a combater em Avdiivka ao New York Times apontam para uma estimativa de 850 a mil militares. “Responsáveis ocidentais [contactados pelo Times] dizem que os números parecem acertados”, nota o jornal.