Se quiséssemos reduzir Sessa a uma fórmula musical, diríamos que na sua voz a canção espraia-se e espreguiça-se, que o seu canto tanto pode amolecer corpos — o mesmo efeito do sol a bater na pele esticada na areia — como adoçar e serenar espíritos. É mar de águas calmas, música indutora de uma dança lenta, samba e bossa a baixas rotações, MPB artesanal que embala quem se deixar levar por esta onda melódica.
Já era assim em Grandeza, o primeiro disco a solo lançado por este paulista depois de muitas experiências de bandas (a mais séria das quais, Garotas Suecas). Confirmámo-lo depois ao vivo, na digressão que fez por Portugal já este ano, dando concertos no festival Tremor, em São Miguel, mas também em Lisboa, Porto e Setúbal. Voltamos agora a senti-lo com o novo disco Estrela Acesa, revelado há cerca de um mês.
Confortavelmente sentado com o computador à frente, em São Paulo, exibindo o bigode, caracóis amontoados e distribuídos de forma relativamente selvagem por aquele farto cabelo e um sorriso estampado na cara, Sessa vai-nos guiando resposta a resposta pela história da sua vida e pela história deste Estrela Acesa, antídoto mágico, suave mas eficaz, para as tragédias do mundo em forma de 12 canções.
[O disco já pode ser ouvido em plataformas digitais como o Spotify:]
A voz: “som de uma coisa meio errada”, de “corpos que cantam”
Quem se dispuser a ouvir Estrela Acesa precisa de poucos segundos até perceber a toada do disco. O arranque de “Gostar do Mundo” faz-se à velocidade com que se andará, regra geral, ao longo de 39 minutos: violão com ecos da bossa nova a marcar o ritmo, a percussão a entrar em cena para lhe fazer companhia, uma secção de cordas a juntar-se com algum recato, sem histrionismo, e a voz de Sessa a entrar sem pressas, cantando baixinho (como os brasileiros tão bem sabem): “Chega mais p’ra cá”.
Começar um disco com uma canção chamada “Gostar do Mundo” é todo um manifesto de intenções líricas. Mas fiquemos, para já, pelo primeiro verso, “Chega mais p’ra cá”. Explica-nos Sessa — melhor dizendo Sérgio Sayeg, 34 anos — do lado de lá da videochamada: “Gosto de pensar nessa experiência em que a música está tocando e é como se você tivesse de chegar um pouco mais perto. O primeiro verso do disco é esse, é como se você precisasse de dar um passo em frente para se chegar à música, talvez em direção às caixas de som ou ao palco”.
Nessa primeira canção, uma declaração de apreço pelo mundo, ouvimos logo um dos ingredientes mais presentes nas canções de Sessa: um canto polifónico, comunitário, com a voz do protagonista a juntar-se a vozes femininas. Mas, mesmo quando coletivo, é um canto leve como uma brisa, baixinho, que parece vir de gente que canta a sorrir, sem querer incomodar a natureza.
Por todo o disco continuaremos a ouvir Ciça Góes, Ina, Paloma Mecozzi e Lau Ra, este quarteto feminino de vozes que ajuda também na percussão, qual tribo que nos prega a beleza que existe nas harmonias. A partir de São Paulo, Sessa explica-nos como costuma trabalhar a voz nas suas canções e nos seus discos: “Busco muito no meu trabalho, na colaboração com as cantoras, um uso da voz em que ela não é esse instrumento perfeito, esse instrumento que almeja a uma super afinação, a uma proficiência atlética do cantar”.
Embalado pela importância da voz, o cantor paulista prossegue, revela-se a si e ao trabalho de estúdio feito para que oiçamos as canções como estas nos chegam: “Tenho essa coisa de procurar encontrar o cantar amador, no sentido mais forte da palavra. É também por isso que trabalho juntando cantoras que têm uma educação mais formal de canto com outras que têm uma relação mais intuitiva com a voz, à margem de uma educação formal. Os corpos cantam e eu quero um som vivo, o som de uma coisa meio errada… não quero essa voz limpa, grande, meio dominada. Quero uma voz que se vá encontrando”.
Recuando ao passado, Sessa, estudante auto-proclamado da grande tradição da canção brasileira, puxa o pai da bossa nova para a conversa: “É uma liberdade que é um pouco dada pelo João Gilberto: essa voz estranha que ele tinha num período em que muito do cantar era associado a vozes grandes, a essa força do pulmão. Ainda que o João Gilberto tivesse um fôlego impressionante, é uma voz meio esquisita que traz consigo todo esse imaginário do ‘desafinado’. Isso deu-me liberdade”.
[“Gostar do Mundo”:]
Quando pensa nas suas origens como cantor, o músico nota que — “é curioso” — não cantava nas bandas de que fez parte, só a solo tem vindo a assumir mais a sua voz. A primeira experiência a cantar até é antiga, Sérgio lembra que provém de uma família “judia, sefardita” e que cresceu a frequentar “uma comunidade bem pequena de judeus sefarditas aqui em São Paulo”, onde “os rituais tinham um canto especial”. Mas profissionalmente nunca pensou em ser cantor até começar a sê-lo, depois de atirar contra o medo João Gilberto mas também “algo semelhante que encontro noutras manifestações musicais mais tardias, como o punk e o mundo da música indie: um aval para as pessoas cantarem de maneiras mais pessoais”.
O “violão” e a procura por “uma canção meio mole”: a música além da voz
Se vocalmente a inspiração vem de muitos lados, a influência maior chega do Brasil e de toda a tradição e cancioneiro dessa música popular, para tantos a mais melodiosa e abrangente do mundo, que avançou com um pé no samba e nos ritmos afro-brasileiros e com outro na delicadeza da bossa nova. Ou será tudo uma e a mesma coisa?
“Acho que o violão da bossa nova é justamente a adaptação de uma complexidade e de uma eleição rítmicas afro-brasileiras para o violão”, há-de dizer este “aluno de uma tradição”, admirador de Baden Powell e suas técnicas de “imitar percussão” com a guitarra acústica, para quem no violão brasileiro “há várias coisas que não são muito fáceis de enunciar e descrever: os ruídos, a sujeira, a ‘tapinha’, a ‘ghost note’. É uma coisa doida porque o que não é tocado, o que é não nota, é tão importante como o que é tocado”.
Mas voltemos por uns segundos à voz. É o próprio Sessa que reconhece, logo numa fase inicial da entrevista, que “existe uma tradição brasileira que é forte no canto de voz pequena, e esteticamente gosto disso”. Quando o questionamos sobre se a subtileza do seu canto, mais sussurrado do que gritado, é um posicionamento exclusivamente musical ou também social, Sessa assume que a escolha tem “ecos poéticos, ou políticos”, já que “a gente vive um tempo em que a nossa atenção é constantemente disputada”. Conclui: “Em algum lugar, nessa economia da atenção em que a gente vive, esta voz talvez seja menos incisiva, menos chata, do que uma voz que demanda a atenção num lugar mais hiperativo”.
Por outras palavras, a música com Sessa nasce quase sempre, diz ele, de “uma vontade de criar uma gravação, uma canção, que seja meio mole, feita de uma doçura…”. E se a sua música tem pontos de contacto evidentes com a história da música brasileira, também há ecos indiretos e mais surpreendentes do rock e do punk, sugere o compositor: “Em algum lugar a música brasileira é passível de profunda beleza em todas as camadas: harmonicamente, ritmicamente, poeticamente. Existem arranjadores incríveis, músicos incríveis, cantores incríveis. Você pega numa música do Djavan e tem isso tudo: letra, cantor, banda, arranjo, poema, todas as camadas são preenchidas. Talvez um pouco por eu ter sido muito rockeiro muito tempo, acabo por resolver as coisas com menos elementos, com instrumentações mais cruas, mais vazias”.
As palavras e a poesia, “contra-mão do gráfico, do número, da estatística”
As fotografias que se encontram em qualquer motor de busca da internet sugerem que Estrela Acesa, o novo disco de Sessa, foi em grande medida estruturado numa cidade paradisíaca, destino balnear e veranil por excelência. A cidade era Ilhabela, na costa de São Paulo, e ao pesquisarmos imagens torna-se difícil não imaginar Sessa de calções de banho, sentado na praia com a guitarra ao colo e o caderno na mão, convocando a inspiração da natureza em redor para melhor imaginar e traduzir para “violão” e cordas vocais as melodias e os poemas.
Não foi bem assim que tudo se passou, na verdade. “A gente trabalhou bastante, não foi um período em que eu também ia para a praia… bom, a gente foi um pouco mas comparado com a exuberância natural daquele lugar, a gente trabalhou muito”. Ali, naquele local “muito surpreendente” em que convergem praia e mata atlântica —cheia de vegetação, com “folhas maiores do que metade do seu corpo” —, Sessa estruturou “as bases musicais e as vozes” do disco.
[“Canção ds Cura”:]
A estadia em Ilhabela foi trabalho mas foi também um refúgio mental. Tudo aconteceu ainda durante uma fase delicada da pandemia da Covid-19 no Brasil. Curiosamente, o esforço do compositor passou menos por refletir esses tempos e mais por encontrar para eles uma vacina musical e poética. “A pandemia foi um momento de absorver altas doses de realidade: notícias, gráficos, números. Mas o texto, o poema, ele é a contra-mão do gráfico, do número, da estatística. Ele é incerto”, refere Sessa, acrescentando: “Se você ouve um verso como ‘chega mais p’ra cá’, a sua cabeça vai para um lado. Mas a cabeça de outra pessoa ouve e vai para outro. Não é ‘10.5’, essa coisa finita”.
Ao longo do disco, por entre discretos e elegantes violinos, violoncelos, pianos, baixos, percussões e guitarras – que convivem harmoniosamente e não ruidosamente nas canções, não perturbando uma certa respiração serena da música —, vamos ouvindo Sessa entoar palavras de cura e prazer.
Em “Gostar do Mundo”, aproveita para fazer declarações (ao mundo? a alguém?): “Vem-me namorar / sabe, o mundo vai acabar. / Gostar por gostar / vim no mundo te procurar”. No segundo tema, retrata a música como terapêutica, uma “canção da cura” para “esses corpos machucados”. Ao terceiro tema, “Sereia Sentimental”, que aqui aparece numa versão diferente de outra previamente gravada e publicada, Sessa abre o coração sem reservas, com versos apaixonados:
“Sereia sentimental
dentro da sua boca é feriado mundial
sereia, será
que o canto da sua carne
ainda me mata em alto mar?
me leva longe, amor,
me beija fundo
a alma da língua, amor
só toque-toque
do mais louco tambor
(…)
Sereia sentimental
perto do seu peito, mora o pacto original
sereia, será
que a tal ordem vigente despedaça ao seu sinal?”
No quarto tema, que já vinha a ser cantado ao vivo bem antes da edição do álbum, ouvimo-lo descrever que “música não é só bater junto / é bater junto de alguém”. Mais à frente, “Pele da Esfera” começa transportando o ouvinte para a sala de gravações, Sessa a falar à sua trupe antes de começar a tocar e a cantar, sugerindo fazer essa consigo “no violão”.
Em “Irmão de Nuvem”, cantando como alguém abençoado por um mistério feliz, o paulista descreve a vida como “um sopro de sorte, pode crer”, falando diretamente ao seu “irmão de nuvem, meu irmão real”. Em “Que Lado Você Dorme”, encara a paixão nas suas matizes todas, “te amo / te odeio / e tudo no meio”. E ainda é possível ouvir canções como “Ponta de Faca”, “Você é a música” e a final “Estrela Acesa”, esta a canção com que o disco termina, em que o ouvimos unir amor e dor, a essência da vida:
Ah se não fosse essa dor
eu virava do avesso na festa
comia a fruta e a floresta
beijava a boca que for.
Se não fosse essa dor
mas dizem que o amor é assim
um dia sem outro dia sem fim
dizem que o amor vem assim
hoje não tem mas amanhã não tem fim.
(…)
Se não fosse a dor
ah é passageira, eu deixo passar
se dói no peito, eu deixo sangrar
estrela acesa vem p’ra me guiar
(…)
Se não fosse a dor
tudo era riqueza
envolto em beleza
pacto com o criador
Por esta altura já terá sido fácil perceber que Sessa está muito distante da ideia de singer-songwriter trágico, de escritor de canções sofrido que, munido da guitarra acústica, quer dilacerar corações alheios expondo as feridas do seu. Ao contrário da melancolia, a dor ainda se intromete nas canções — há até um tema chamado “Dor Fodida” — mas as próprias composições parecem nascer alimentadas pelo desejo de contrariar a tristeza, de exaltar os encontros em detrimento dos desencontros.
Arriscamos partilhar com o autor a perceção, notando que a sua escrita parece conter um otimismo na forma de encarar do mundo. Sessa anui em concordância, explica que sente “uma necessidade de afirmar algumas coisas valiosas da experiência humana”. De seguida, elabora: “A gente vive num mundo em que Bolsonaro e outros homens velhos e caquéticos provocam muitos atrasos. O Brasil tem vivido muito retrocesso em relação aos direitos dos marginalizados, das minorias, das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos trans, das pessoas que não se encaixam numa normatividade, na valorização do trabalho e na distribuição das riquezas. Tem-se visto coisas terríveis, todas as semanas a violência da sociedade brasileira dá show. E vem sendo assim há muito tempo. Mas ainda é um mundo que tem experiências que fazem valer a pena viver”.
Indo ao detalhe, o músico puxa de exemplos de algumas canções novas que lhe vêm automaticamente à cabeça: “Gostar do Mundo”, “Você É a Música”, “Estrela Acesa”, nota que “todas essas músicas carregam uma certa esperança, uma apreciação pela vida a partir da dor da deceção”. E resume as perspetivas das suas composições: “Acho que essas músicas são um exercício de botar em palavras… de formular sobre a beleza. Às vezes parece que a beleza não está disponível no mundo das catástrofes”.
Sessa, porém, diz mais: “Todo o meu trabalho é uma resposta ao meu encantamento pela música. O mundo pode ser tenebroso — e ele é, não é? — mas você também pode se apoiar… a gente está no mundo onde viveu a Elza Soares, a Nina Simone, o Charles Mingus, que têm toda aquela discografia, aquela obra, aquela contribuição humana sobre a vida”. Bem vistas as coisas, como não gostar deste mundo?