Há tradições que se repetem todos os anos, desde o 25 de Abril de 1974 — na Avenida da Liberdade, é habitual ouvir o “Depois de Adeus”, de Paulo de Carvalho, ou a “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso. E, nesta terça-feira quente e cheia de sol, voltaram a ouvir-se esses dois hinos. Mas houve mais uma música a marcar o desfile dos 49 anos da Revolução dos Cravos.
Numa manifestação que integrou as comemorações do 25 de Abril, milhares de professores desceram a Avenida da Liberdade ao som da melodia de “O Corpo é Paga” de António Variações, mas com uma letra adaptada à situação que atravessa a classe docente. “Quando o ministro não tem juízo/E rouba o tempo de serviço/A escola é que paga/Deixa pagar, deixa pagar, mas não vamos pagar, vamos lutar”, cantavam os professores, incentivados pelo líder sindical do STOP, André Pestana, que ia à sua frente numa carrinha descapotável — e que servia como verdadeiro maestro dos protestos.
Os professores vinham de várias partes do país — Aveiro, Faro, Santarém e Braga, entre outras localidades — e vestiam camisolas pretas (muitas delas com as inscrição “Respeito”). Também traziam grandes cartazes, em que pediam a demissão do atual ministro da Educação, João Costa, deixavam críticas ao seu colega das Finanças, Fernando Medina, e ao primeiro-ministro, António Costa, e ainda deixavam um alerta a Marcelo Rebelo de Sousa, que, dizem, está em “serviços mínimos”. No final da manifestação, e lembrando a experiência profissional do Presidente da República, gritaram: “Onde anda, senhor professor? Marcelo, atua, a escola está na rua”.
Ao Observador, Hélder Abrantes, professor de biologia e geologia de 50 anos que leciona em Setúbal, explica a importância de a classe docente estar presente no 25 de Abril. “Estamos aqui a lutar pela liberdade que, neste momento, estamos a sentir ameaçada. Os nossos direitos à greve estão a ser prejudicados, sobretudo com as declarações de serviços mínimos”, diz, sublinhando que os professores vão continuar a mostrar ao Governo que não “desistem” dos seus direitos, nem do “futuro da educação em Portugal”, que, na sua ótica, está “seriamente ameaçada”.
As mensagens inscritas nos cartazes que milhares de professores traziam consigo ao descer a Avenida da Liberdade iam no mesmo sentido das palavras de Hélder Abrantes: “Em defesa da escola pública de qualidade não desistiremos da educação”; “quem não se importa com a educação não se importa com o futuro”; “quem ensina não pode rastejar”. Os manifestantes apontavam João Costa como principal culpado do estado da educação e até chegaram a acenar com lenços brancos — “está na hora de o senhor ministro ir embora” era o lema.
Embora tendo assumido grande preponderância na descida até pelos meios envolvidos (como a carrinha que transportava André Pestana, apitos e megafones), a Educação não foi o único tópico a ser criticado durante o desfile. Vários criticaram os problemas relacionados com a Habitação, as alterações climáticas, o elevado custo de vida, o racismo, as desigualdades sociais e de género.
A dança da Habitação do Bloco de Esquerda e a presença da Iniciativa Liberal (e da JSD)
Uma das tradições do desfile é a passagem dos vários partidos políticos ou das suas juventudes. Este ano, o primeiro partido a descer a Avenida da Liberdade foi o PCP e o secretário-geral Paulo Raimundo, o seu antecessor Jerónimo de Sousa ou o eurodeputado João Pimenta Lopes foram dos primeiros a fazê-lo. Seguia-se a Juventude Comunista Portuguesa (JCP), que traziam uma mensagem a apelar a maior “igualdade” e a melhores condições na escola pública.
Após a Juventude Socialista — que sublinhava “quanto mais a luta aquece” mais os portugueses confiavam nos socialistas —, foi a vez do Bloco de Esquerda, que trouxe a desfile uma mensagem dedicada à Habitação. Acompanhado por uma dança que podia ser perfeitamente partilhada no Tik Tok, os bloquistas cantavam: “Eu quero teto/Eu quero chão/Eu quero direito à Habitação”. Simultaneamente, o BE envergava um grande cartaz, em que reforçava o teor da sua visão política: “Casas para morar, não para especular”.
Outros partidos, como o MAS, o Livre, o Volt e o PAN estiveram presentes no desfile. E, mais à direita, alguns membros e simpatizantes da Juventude Social Democrata desceram a avenida com uma grande faixa em que se lia “nós também somos abril”. Em paralelo, a JSD gritava que o “povo unido jamais será vencido”.
Após dois anos consecutivos com um desfile próprio, a Iniciativa Liberal voltou a descer a Avenida da Liberdade, algo que já não fazia desde 2019. Com várias bandeiras (como a da Ucrânia, a de Cuba, a da NATO ou a LGBT+), acompanhados por um megafone, os liberais partilhavam a mensagem de que o “25 de Abril” é para “sempre”: “Fascismo nunca mais, comunismo nunca mais”. Além disso, transportavam uma grande faixa em que reclamavam mais liberdade “económica, social e política”. Pelo meio da descida, alguns dos presentes foram dirigindo alguns apupos à mensagem da IL.
Os sindicatos e a paz
Não foram só partidos a descerem a Avenida da Liberdade — vários sindicatos e associações também o fizeram. A CGTP e vários ramos da central sindical fizeram questão de marcar presença, defendendo que existem “muitos mil para continuar abril”, reivindicando “pão”, “direito à Habitação” e “melhores condições para o Serviço Nacional de Saúde.
Sobre a guerra na Ucrânia, contrariamente ao que aconteceu no ano passado, poucas bandeiras do país foram vistas na Avenida da Liberdade esta terça-feira. Numa mensagem que denunciava a entrega de armamento do Ocidente a Kiev, uma dúzia de pessoas traziam uma faixa negra com caveiras a criticar a Aliança Atlântica: “Falta pró pão, sobra para a NATO”.
A questão da justiça climática passou também pela Avenida da Liberdade com críticas ao Governo pelo meio. Numa alusão aos jovens que mostraram o rabo nas comemorações dos 50 anos do Partido Socialista, lia-se num cartaz que o “Governo não tem c*”, ao mesmo tempo se ouvia uma canção referente ao tema: “Os fósseis estão a matar-nos/O Governo está a adorar/Já não temos tempo para engonhar/É tempo para ocupar”.
A força do STOP
Após praticamente todos os sindicatos e partidos políticos (à exceção da Iniciativa Liberal que ficou praticamente para último) terem descido a Avenida da Liberdade, chegava o sindicato STOP. Por conta do barulho e das camisolas negras que os docentes traziam vestidas, quase ninguém ficava indiferente aos professores.
Comandada por uma carrinha descapotável na qual ia André Pestana praticamente sempre com um microfone na mão, a manifestação do STOP parou por várias vezes o fluxo na Avenida da Liberdade, entre fotografias e diretos para os canais de televisão. Prometendo mais greves até a situação se resolver, o sindicato deu uma prova de força esta terça-feira.
Luísa Carvalhais, professora de 58 anos numa escola do Cacém, vai continuar a participar em manifestações do género, reivindicando a recuperação do tempo de serviço. “Estou aqui como estive em todas as outras vezes em que fui chamada”, relata ao Observador, descrevendo que, nos seus 36 anos de carreira, se sentiu várias vezes estagnada na carreira. “Com a idade que tenho, nunca pensei vir a tantas manifestações”, desabafa, atirando depois culpas ao ministério da Educação que, acusa, “ignora” a classe docente. “É uma vergonha a forma como somos ignorados num país democrático.”
Por sua vez, Hélder Abrantes afirma mesmo que a Educação não tem “futuro” em Portugal e que João Costa está apenas a “gerir os danos”, devido aos “poucos recursos que tem”. Salientando que vários professores são colocados longe de casa, o docente de biologia e geologia também aponta que a “classe está envelhecida” e que “daqui a dez anos, metade ou mais de metade dos professores vai estar reformado”.
Defende ainda que o Ministério da Educação deve tornar a “carreira de professor minimamente atrativa” para as gerações mais novas. “Neste momento, ninguém tem interesse em dar aulas, em ser professor”, lamenta Hélder Abrantes. E, por se preocupar com o futuro daquela que é hoje a sua profissão, o professor de biologia e geologia desceu, juntamente com milhares de colegas, a Avenida da Liberdade.