“Como é que posso fazer música feliz?”. Foi a pergunta que fez Pedro Simões, conhecido como Pedro Mafama, quando, aos 30 anos, foi assolado por uma imensa felicidade. Ele que há precisamente dois anos editou Por Este Rio Abaixo, álbum de estreia que o elevou a coqueluche do circuito musical alternativo português. Namorava então com símbolos de portugalidade, vestia-se entre o campino e o rapper, cruzava ritmos e géneros sem pudor, do fado ao kizomba ou o hip-hop. E, sobretudo, mostrava canções soturnas cheias de dramatismo (“Vou tomar algo para a dor, até já não sentir mais”, anunciava em “Algo Para a Dor”), não raras vezes à beira do precipício (“só quero deitar-me ao comprido até ser recolhido num contentor”, pedia em “Cidade Branca”).
“De repente, a minha vida começou a mudar. Comecei a ficar uma pessoa mais feliz, mais alegre”, reflete hoje. “Sendo Mafama quase sinónimo de música pesada, melancólica, noturna, como é que posso fazer música feliz?”.
“Estrada”, o primeiro single do novo disco, foi amostra inaugural deste renascimento artístico. No clipe, publicado em março, o cantor surge numa taberna rodeado pelo Grupo Coral do Sindicato dos Mineiros de Aljustrel. A música junta cante alentejano e música eletrónica cigana – e o tempero Mafama. Mundos separados que Mafama, como é seu apanágio, fez questão de mesclar. “Havia pessoas a dizer: isto é música de baile, isto é pimba. Na verdade, é uma ponte perfeita para aquilo que está para vir”, anuncia. “Estrada” foi apenas a declaração de intenções para o que chega esta sexta-feira, 26 de maio. Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente é o segundo álbum do artista que quer continuar a beber da fonte inesgotável da cultura popular, mas provar que “a música portuguesa não é só feita de tristeza, mas também é alegria e celebração”. Tal como a vida.
Fugir às fórmulas, aos vícios, tomou tempo. “Quando comecei a fazer música ainda me saía música melancólica e pesada, mas aquilo parecia-me ridículo porque eu não estava aí já. O desafio foi sair desse ciclo de música triste, que também me influenciava, que me fazia sempre olhar para a lua e para as estrelas e ir para aquele lugar. O meu cérebro estava viciado na melancolia, na tristeza, no copo de vinho e no cigarro às quatro da manhã”.
Mudou os hábitos. Começou a escrever de manhã, a fechar o computador quando o sol se punha. “Havia certas coisas que só podia explorar na minha escrita e na minha música de dia, com uma cabeça diferente. Quando cai a noite a pessoa fica mais fadista”. Encheu os ouvidos de tropicalismo brasileiro: Caetano Veloso, Chico Buarque, João Gilberto. “Caetano e Chico Buarque são pessoas que me provam claramente que há uma escrita diurna, feliz, alegre e simples, que é genial, e que é um infinito de possibilidades. A escrita destes artistas, as letras das marchas, o sentimento das rumbas e dos bailes levaram-me para um sítio onde eu nunca tinha estado na escrita”, admite. Um sítio “mágico e bonito”, bem diferente “da perspetiva das quatro da manhã, que traz a saudade ao de cima, a melancolia, o perigo”.
As mudanças também se notam nos detalhes supérfluos. Olhando para o que veste no dia da entrevista com o Observador: pólo da Mercedes, cinto da Diesel, ténis que um aficionado pelo calçado reconheceria. “Não é uma jogada conceptual, não é uma performance estar a vestir marcas”, afirma. “É porque realmente me fazem sentir bem e acompanham o universo estético da minha música. Gosto de estar sempre a descobrir novos sítios e a roupa acompanha isso”. Para acompanhar a música de baile chegam “as calças rasgadas, os cintos com logótipos, as t-shirts de marcas chiques”.
O título do disco, que é produzido por Mafama e Pedro da Linha, evoca as palavras de João Pinto que, então jogador do Futebol Clube do Porto, protagonizou uma das mais célebres gafes do futebol português: “O meu clube estava à beira do precipício, mas tomou a decisão correta: Deu um passo em frente”. Há mais referências futebolísticas plantadas no disco, as mais literais encontradas na música “Golo”, “a canção mais bonitinha e simpática que já fiz”, confessa o artista. “Deixa os prognósticos para o fim do jogo”, “vou arriscar e rematar de trivela” são outros dos versos escutados numa faixa onde até cabe o relato do histórico golo protagonizado por Éder que resultou na conquista do título europeu em 2016.
São jogos de palavras que não procuram alimentar qualquer fanatismo – aliás, Mafama recusa clubismos e é só “fã da seleção”. Mas sabe o país em que mora e reconhece no desporto-rei mais uma forma de contribuir para o espírito celebratório que quis imprimir nas 11 canções que compõem o álbum. “[O futebol] é a utopia social do país. É o lugar onde há uma igualdade relativa, onde as diferenças se esbatem um bocadinho, não tanto diferenças de género, mas diferenças sociais e culturais. O futebol interessa-me como fenómeno de aproximação das pessoas, é um fenómeno também de celebração”.
Não é um exagero dizer que Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente – que pode ser ouvido pela primeira vez a 7 de junho, no Arraial do Magalhães Lima, em Alfama, Lisboa, às 21h, com entrada livre – é um disco de festa, onde nem falta o bolo de aniversário, estampado na capa. “O álbum todo é baseado na celebração e em celebrar com outras pessoas, em estilos de música que também são muito coletivos”. Com um detalhe: uma preocupação em “fazer música com as pessoas que a criaram”.
“Foi importante não usar géneros musicais e expressões culturais como um acessório”
Numa altura em que se discutem questões como o “lugar de fala”, da Arte à Academia, Mafama fá-lo sem recorrer ao chavão. “A primeira pessoa cigana com quem fui falar no processo deste álbum foi a Maria Gil, uma ativista cigana incrível que merece o mundo inteiro”, recorda ao Observador. Foi Gil quem o acabou por introduzir a Diego El Gavi, “um músico flamenco cigano, português, que me começou a falar muito sobre as rumbas portuguesas e me mostrou um bocadinho os caminhos dentro da música cigana portuguesa”. “Aguita Pedrito”, ouvimo-lo e às suas palmas em “Estrada”, acompanhado com a guitarra de Chico Montoya (Ciganos D’Ouro). Por sua vez, foi através de El Gavi que Mafama chegou a José Lebre, “um teclista cigano, da igreja, que faz música religiosa cigana”, e que entra em faixas como “Estrada” ou “Santo” – canção que nos lembra que “os bandidos também podem mudar e os malandros também podem se salvar”.
“Quando conheces a história e as pessoas que criaram esta música, a música ganha outro significado”, acredita Mafama. “De repente já não estás a usar uma coisa com leveza porque pesquisaste na internet. Estás a incluí-la num processo que é delas. Estás a dar um rosto e uma visibilidade a comunidades menos visíveis. Estás a ter em conta as caras e as histórias que fazem um género musical nascer”.
Para o cantor, “é importante não destacar as coisas totalmente do sítio de onde elas vêm”, sob pena de “usar o género musical só como estética”. “Para mim foi importante não usar géneros musicais e expressões culturais como um acessório. Se estou a tocar rumba portuguesa interessa-me que o teclista que esteja a tocar seja cigano, porque quero o registo de uma mão cigana que cada vez que toca conta a sua história, a sua dor. Está a deixar o seu testemunho daquilo que é a sua vivência como uma pessoa cigana portuguesa”. Mafama assume ao que vai: “Quero que as pessoas se oiçam, se vejam”.
Não é conversa para um hit. A música cigana “é uma música que faz parte da minha vida há muito como ouvinte, com os meus amigos. É música de celebração, de baile”, diz Pedro Simões. Não há festa cuja playlist não contemple DJ Salazar ou DJ Pascoal, enumera. “É música que faz parte da minha vida e que humildemente quis explorar”, justifica o artista que espera abrir caminho a uma discussão maior. “Portugal tem um grande problema com o facto de uma grande parte do nosso país ter uma cultura cigana, centenária, que nós continuamos a não reconhecer como cultura”, acusa. “Quando saiu o ‘Estrada’ toda a gente começou a dizer ‘agora estão a imitar música espanhola’. Ok, percebo que ouviste essa música através de pessoas espanholas, mas isto não é música espanhola, é portuguesa”, corrige.
Falamos-lhe de fenómenos de popularidade como Nininho Vaz Maia. O que pensa Mafama sobre esta chegada ao universo popular? Resposta pronta: “É uma pessoa que há oito anos fez um vídeo com uma pulseira eletrónica no pé e pôs no Youtube e hoje está a dar visibilidade a uma comunidade que com toda a genuinidade merece. Acho que têm de vir mais Nininhos, e mais Pedro Mafamas, que são portugueses e que acham que a cultura cigana é cultura portuguesa e que não podes separar as duas coisas.”
“As marchas são feitas agora. As marchas estão vivas”
A rumba portuguesa foi o primeiro vislumbre ao mundo do novo universo musical de Pedro Mafama. “Quis começar com um statement forte, com um significado quase político e social. Achei importante ser esse o ponto de partida para depois podermos brincar”, explica. O depois chegou, e aí estão os bailaricos e as marchas, mesmo a tempo dos santos populares e demais arraiais de Verão.
Há outra rutura face ao primeiro disco: se anter parecia haver uma confluência de géneros musicais, aqui o artista tem-nos bem definidos faixa a faixa. “Sem dúvida. Dantes orgulhava-me por todas as minhas musicas terem tudo. Aqui quis ir género a género. Primeiro, porque me permite fazer musica mais vivível, ou seja, mais facilmente utilizável pelas pessoas”, esclarece. “Não quero só fazer a minha mistura Mafama, agora também quero devolver aos géneros. Se alguém pesquisar ‘marchas 2023’, se calhar vai aparecer a ‘Marcha Bonita'”, espera.
Sobre marchas, se já as faz a la Mafama (“Marcha Bonita”, “Marchar Para a Alegria”), o que o impede de escrever uma marcha mais tradicional? Ri-se, comprometido. É dele a autoria de uma das canções que o bairro de Alfama leva a concurso na edição deste ano das marchas populares, em Lisboa. Tudo porque o cantor começou a habitar o Pavilhão Centro Cultural Dr. Magalhães Lima, palco de ensaio dos marchantes, desde que lá gravou, em 2019, o videoclipe de “Lacrau” – momento-chave na carreira de Mafama que dita o início de uma definição de uma identidade visual própria para as narrativas que conta, a que não é alheio o facto de ser o primeiro cruzamento com André Caniços, que daí em diante realiza todos os videoclipes do artista.
Voltando à marcha de Alfama, que Mafama nos permitiu ouvir em primeira mão, o convite chegou no tempo certo. “Já tinha um bocadinho o treino deste álbum. Escrevi uma marcha de que me orgulho bastante”, confessa. E como “uma marcha é sempre sobre a cidade”, usou a oportunidade para comentar a gentrificação. “Daqui não saio, daqui ninguém me tira / E quando caio tenho mãos para me ajudar / nas veias corre muito bairro muita vida / nestas ruelas corre gente sem parar”.
[ouça “Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente” na íntegra através do Spotify:]
Ainda que as memórias das marchas o levem para a infância (“lembro-me de ouvir os ensaios das marchas ao fundo quando estava em casa da minha mãe”), o cantor, nascido e criado na Graça, é categórico em descolar as marchas de uma ideia de recuperar códigos do passado. “Uma coisa é eu ir buscar a Catarina Chitas, ou o Alar da Rede do Giacometti, que já não se ouve. O Por Este Rio Abaixo é uma série de pesquisas de coisas que já desapareceram e a resgatar esses ritmos ou a reinterpretá-los. Aqui esta cultura está viva. O bailarico está vivo. As marchas estão vivas. A prova disso é que tenho marchantes de 19 anos, a marcha está cheia de gente nova”, comenta. “É uma cultura que está viva e estou a fazê-la para funcionar agora”.
Tanto a abordagem às marchas como à incursão na música cigana são sintomáticas do posicionamento artístico que Pedro Mafama agora assume. “Faz tudo parte de uma postura que não sou eu fechado no estúdio a interpretar a marcha. Sou eu a aprender com as marchas e a devolver às marchas”. Apesar de não ter colaborações tradicionais neste disco como tinha no antecessor (em que partilhava canções com os rappers ProfJam e Tristany, ou a fadista Ana Moura), o artista sente-se acompanhado. “É verdade. Gosto muito da ideia de haver quase uma simetria perfeita. No álbum passado estava a falar sobre as minhas coisas, os meus pensamentos, os meus demónios. Estava muito sozinho porque me sentia também bastante sozinho, no meu estado emocional, mas é um álbum que tem muitas colaborações. Este álbum não tem nenhuma colaboração e no entanto estou menos sozinho do que nunca”. Mafama é o cantor do baile, mas quem o ladeia não foi escolhido ao acaso. “As pessoas que se ouvem à minha volta são amigos meus de infância, são pessoas da Graça ou pessoas que me marcaram de uma forma ou de outra, pessoas das marchas, e estes músicos ciganos incríveis”, revela.
Preço Certo: “Sinto-me como se tivesse ganho a montra final”.
Não é absolutamente evidente o que levou à mudança radical de Mafama não só criando um álbum nos antípodas do anterior, como na forma de olhar para a vida. Ainda assim, o músico faz por descortinar: “Foi um conjunto de coisas. Estar menos sozinho na minha vida profissional, de repente ter uma equipa que acredita em mim e que trabalha comigo todos os dias, e uma banda que corre comigo na estrada. Pessoalmente, também comecei a dar uma pequena viragem, comecei a tentar afastar-me de coisas que me faziam menos bem e comecei a encontrar uma felicidade pessoal que não sei se alguma vez tinha conhecido, uma vida emocional e interior completamente diferente de tudo o que eu tinha conhecido até agora. Foi um conjunto de coisas que me puseram num lugar completamente diferente da vida”.
Nas redes sociais, multiplicam-se imagens do cantor com a fadista Ana Moura (de quem assina a direção criativa do último álbum, Casa Guilhermina) e a filha de ambos, Emília. “Tenho uma filha linda e o amor que eu sempre pedi”, ouve-se em “Preço Certo”, segundo single em que Mafama confirma: “Esta vida é uma roda que nunca dá certo, mas está a ficar lá certo”. Com um videoclipe gravado durante o programa apresentado por Fernando Mendes, o músico chamou a atenção do público mais mainstream, mas a canção é mais do que um fenómeno vencedor no TikTok.
“Esta música está a explicar o motivo pelo qual eu estou a fazer um álbum todo feliz”, diz-nos agora. “É um símbolo para mim de felicidade e alegria do momento que eu estava a viver. A metáfora é estar assim, feliz, ter encontrado uma pessoa que me faz feliz, ter uma filha linda, e estar a ter sucesso profissional. Sinto-me como se tivesse ganho o preço certo, como se tivesse ganho a montra final”. A propósito de “Preço Certo”, Mafama é rápido a desvalorizar a comparação com Stromae, que há um ano se apropriou de um programa de televisão também para gravar um clipe, provocando a mesma confusão inicial no espectador. “Não me incomoda que seja uma versão portuguesa de baile daquilo que outra pessoa fez lá fora. Não me incomoda nada. Consegui tornar o momento tão próprio e tão especial que não acho que seja uma coisa relevante”.
Ainda sobre a parentalidade e a “filha linda” que menciona em “Preço Certo” (e que entra na última faixa do disco, “Tudo o Que Foi o Que É e o Que Está Para Vir”, em versão “bebé autotune”): “É uma coisa que te obriga a partir para uma próxima etapa da vida. Quando tens um filho não tens outra escolha senão crescer. Dá-te logo uma régua temporal, um medidor em que tu percebes que as coisas não vão estar cá para sempre”, diz. Ser pai “é uma beleza abstrata que ainda estou a descobrir todos os dias”.
Duas horas de conversa depois, voltamos ao título do disco: Estava No Abismo Mas Dei Um Passo em Frente. O músico reconhece: “É quase uma forma irónica de olhar para a felicidade. Sei que todos estamos a caminhar para o abismo na mesma, que isto tudo é temporário, mas vou caminhar de sorriso na cara. Estou feliz, mas não levo essa felicidade demasiado a sério. De um momento para o outro pode tudo virar, é aproveitar”. A melancolia até pode já não morar nas letras de Pedro Mafama, mas não deixa de o habitar. “Temos a maldição de saber que estamos a ir para um abismo. Os animais não sabem que ao fundo do túnel está uma escuridão à qual todos vamos calhar. Acho que isso é a tormenta e o peso que todos os humanos carregam até certo ponto”.
Em “Estranha Magia”, quiçá a mais soturna canção do álbum, a lembrar Por Este Rio Abaixo, o músico ainda se confronta com a “melancolia que nos tenta namorar”. “Queria cantar para te alegrar, e escrever para fazer pensar, mas cada verso e melodia sai de faca e alguidar”. “Foi uma das primeiras músicas que escrevi para este álbum, que fala precisamente sobre querer vencer a melancolia. Sou eu a admitir que de vez em quando ainda me vem a melancolia”, traduz. “Na verdade, continuo uma pessoa que tem a sua pinga de melancolia.”