Um confronto a duas vozes. Com regras mais apertadas para apresentar candidaturas na convenção do Bloco de Esquerda, os dois grupos que deverão avançar com moções de orientação já levantam o véu sobre o que será a discussão no encontro da despedida de Catarina Martins. E as visões reveladas nos tópicos para esses documentos, a que o Observador teve acesso, são em muitos pontos diametralmente opostas: se a direção do partido se concentra nas críticas ferozes ao Governo, os críticos internos vão partir para o ataque ao discurso “incoerente e oco” do próprio Bloco.
Do lado da cúpula, na moção que será subscrita pelas principais tendências e servirá de plataforma à candidatura de Mariana Mortágua, não há grandes balanços sobre as derrotas eleitorais e nota-se sobretudo um foco no futuro: o Bloco quer agora “liderar a oposição” a uma maioria absoluta “fraca”, desgastada e periclitante, apoiando-se, para isso, na intensa contestação social que já é evidente nas ruas. A visão interna é positiva: o Bloco tem recebido mais militantes jovens e vai apostar nas iniciativas dirigidas a eles.
Mariana Mortágua, a escolha de “continuidade” para o Bloco tentar provar que não foi “domesticado”
Já para os que não se reveem na atual direção do partido, há críticas a fazer em toda a linha: o Bloco está imerso num “centralismo burocrático”, esqueceu-se da sua identidade de movimento ativista e de massas, tornou-se antes um partido “de eleitores e de propaganda” e “esmaga” e “persegue” quem discorda do rumo oficial.
Mas há, para além disso, ataques ao caminho político do Bloco, seja à falta de balanço e autocrítica dos seus próprios resultados, seja até às votações “pró-NATO e pró-guerra” no Parlamento Europeu. A nível nacional, uma frente da esquerda à esquerda do PS que o Bloco promova — não confundir com a geringonça, ou “duvidoso acordo circunstancial” com o PS. E a direção até concorda, em parte, com esse objetivo.
O papel do Bloco (e os balanços, ou falta deles)
O que diz a direção
Com uma maioria absoluta a degradar-se e um ciclo político que pode chegar ao fim mais cedo do que o previsto, a ambição do Bloco, lê-se no texto da direção, passa agora por “liderar a oposição”. No desgaste do Executivo, o partido vê uma oportunidade: com a “sucessão de escândalos que degradou o Governo” e a “exasperação popular” que provocou, o Bloco agarra a chance de lembrar que nunca hesitou “no combate às promiscuidades entre público e privado e política e negócios”.
Como Catarina Martins argumentou na despedida, a linha oficial do partido acredita agora que a viabilidade da legislatura está em causa, graças a esses escândalos “típicos do PS inchado”. “António Costa manda – mais do que nunca -, mas o seu bloco partidário entra em desagregação”, sentencia o documento.
Quanto a balanços eleitorais, as culpas apontadas são externas: a “direita fragmentada” e o Chega em crescimento ofereceram de bandeja a Costa a maioria absoluta, diz a cúpula do partido; agora, “o PS está empenhado em fazer crescer o Chega” e receber daí, do “voto assustado”, o seu “seguro de vida”.
O que dizem os críticos
Mesmo tendo sido necessário, em certas alturas, o Bloco “correr por dentro” para ganhar influência política, admitem os críticos, houve efeitos secundários: a “institucionalização” do partido, a “ênfase quase exclusiva” no Parlamento e a “secundarização das lutas populares”. Tudo isso, aponta este grupo, “retira coerência e dilui o projeto político” do Bloco.
Outro dos principais reparos lançados pelos críticos tem a ver com uma alegada “falta de autocrítica” da direção sobre os próprios resultados. É essa linha, argumentam, que “provou não ser capaz de mobilizar os setores que tinham depositado confiança no Bloco” — e é a mesma que não faz agora balanços, seja sobre a geringonça ou sobre o acordo com o PS em Lisboa, ou até mesmo sobre o objetivo que tinha sido traçado nas convenções anteriores, de tornar o Bloco “força de Governo”.
Depois disso, argumentam, o discurso na campanha das legislativas de 2022 ainda foi completamente focado num desafio lançado ao PS para que voltasse a negociar com o Bloco — um objetivo errado e que acabou por ser “um dos fatores de derrota”, consideram os críticos internos da direção. E esse erro trará outro risco: o de a esquerda “perder influência política e social”. Não o enfrentar nem mudar nada seria “uma irresponsabilidade”.
O “estado de graça” da maioria absoluta do PS foi “curto” e encurtado pela escalada da inflação e a perda de poder de compra, questão “central” para a intervenção do Bloco, dizem os críticos e, neste ponto, concordará a direção. Problema: é em relação ao PS que tem havido uma “excessiva proximidade” que diminuiu a influência do partido, apontam os críticos (que defendiam que o partido tivesse imposto um segundo caderno de encargos ao PS durante a geringonça e que tivesse endurecido a sua posição nas negociações, sobretudo nas questões laborais).
Para os críticos, que defendem o “ecossocialismo” como projeto de sociedade, é preciso um Bloco autónomo, que “reponha a radicalidade do discurso”, defenda os trabalhadores e responda à emergência climática.
Apesar de ser muito crítico da forma como a geringonça se foi desenvolvendo, o principal grupo de críticos internos do Bloco defende que deve haver uma “linha de diálogo com todas as forças” à esquerda do Governo, sem sectarismos, para que seja construída uma “alternativa política credível” e influente na sociedade, em que o Bloco deve agir como “catalisador”. E esse acordo à esquerda, atiram, não deve “resumir-se a duvidosos acordos circunstanciais” — mais uma farpa à geringonça.
A direção também refere a necessidade de conversar à esquerda, dizendo que continuará a “procurar convergências políticas com o PCP e outras forças“, sem mitigar “diferenças conhecidas” — “em matéria internacional ou quanto a práticas que prejudicam o desenvolvimento dos movimentos sociais, em particular o sindical”.
Atacar mais os EUA ou Putin, eis a questão
O que diz a direção
A moção da direção começa por se referir à Ucrânia como uma “nação atacada pelo expansionismo russo”, mas lembrando desde logo o “contexto de militarização do Leste da Europa” por culpa da NATO. Quanto à UE, aponta-se uma “colagem militarista a Washington”.
Mas a direção tem um cuidado maior em fazer a separação relativa à posição do PCP sobre a Ucrânia, fazendo questão de sublinhar que “condena” a “agressão russa imperialista” com a mesma clareza com que foi denunciando o regime de Vladimir Putin: “Deste, a esquerda nada pode esperar senão a ditadura oligárquica e a aventura belicista”.
Entretanto, as instituições europeias, aponta a direção do partido, “vão regressando às respostas austeritárias” e é por isso preciso mudar os tratados e “criar um quadro de cooperação que termine a chantagem das dívidas soberanas”, que devem ser “reestruturadas” (um ponto em comum com os críticos), como o partido sempre defendeu.
Agora, o Bloco acrescenta que a cooperação entre Estados europeus é importante para “conter a extrema-direita”, mas também que só assim existirá uma Europa “autónoma” em relação aos Estados Unidos e à NATO. “A UE deve realizar uma viragem estabelecendo tratados de não-agressão entre estados europeus e de recusa de alinhamento em disputas entre potências”, defende a linha oficial do partido, insistindo na realização de uma conferência de paz para a Ucrânia.
O que dizem os críticos
Na dimensão internacional, já tinha havido avisos dentro do Bloco para que se tivesse cuidado com declarações sobre a guerra na Ucrânia que pudessem ser interpretadas como uma aproximação à posição do PCP. Neste documento, os críticos criticam por diversas vezes “a influência da NATO” e as “imposições dos EUA” e atiram contra uma guerra que descrevem como “um produto da crise do próprio capitalismo global”.
Por outras palavras: se por um lado “rejeitam com veemência” a “agressão” da Rússia, por outro dizem não ter “qualquer hesitação sobre o papel agressivo dos EUA e da NATO”, assim como sobre a “submissão” dos governos europeus aos seus objetivos. Em resumo: “Queremos Putin fora da Ucrânia e a NATO fora da Europa.”
Mas também querem que o Bloco deixe de “branquear essa submissão” e que páre de aprovar ou abster-se na votação de documentos “pró-guerra, pró-NATO, pró-armamento e pró-aumento dos orçamentos militares” votados no Parlamento Europeu. Recado final para a direção: quando critica genericamente os “imperialismos”, desfoca o “papel hegemónico dos EUA e da NATO”.
Para a relação com Bruxelas, os críticos defendem uma posição dura: o Banco Central Europeu está a “manietar” os governos europeus e o Bloco deve assumir que “desobedecer à UE (…) constitui um elemento político soberano de resistência”. Assim, com a UE e o euro “cada vez mais longe de constituírem uma solução”, a renegociação da dívida deve ser colocada de novo na agenda política nacional.
As lutas sociais — e a importância de reforçar os sindicatos
O que diz a direção
Para a cúpula, fica a conclusão de que “qualquer conquista” será obtida através da “intensificação da luta social” e da pressão que esta fará sobre o Governo. E se os críticos apontam para a necessidade de reforçar o ativismo e o sindicalismo, a direção fala na mesma linha: “O Bloco tem a responsabilidade de ser, como já é, uma esquerda de referência para as lutas, mas também um promotor direto da sindicalização e da renovação da experiência de auto-organização da classe trabalhadora”.
O texto dá vários exemplos específicos dessas lutas, e aqui, mais uma vez, dá alguns exemplos que têm eco na moção dos críticos, quando fala “na emergência de uma geração feminista, na capilaridade territorial das marchas LGBTQI+, na visibilidade ativista de comunidades racializadas”. O seu papel, defende, será de tentar que esses movimentos se reforcem e desenvolvam “estruturas permanentes”.
O que dizem os críticos
Os críticos colocam também um foco importante nos movimentos sociais — sejam sobre ambiente, combate à extrema-direita, LGBTI+, antirracistas ou antineocoloniais –, que devem ser independentes, sem “qualquer atitude tutelar ou instrumental que tenda a sufocá-los”.
A viragem que o Bloco deve fazer é “para as lutas laborais, sociais e ambientais, em articulação com vários movimentos”, argumentam os críticos, em mais um ponto que não será grande motivo de desacordo com a direção — já que da última reunião da Mesa Nacional (direção alargada do Bloco) saiu uma promessa de foco nas “lutas populares”. O que os críticos apontam é que o Bloco deve contribuir para multiplicar as redes de ativismo e sindicalismo, até para se enraizar mais no país, e que deve fortalecer a sua relação com o movimento laboral.
Quanto aos movimentos sociais, notam, o momento pode ser favorável ao Bloco: “As derrotas de Trump e Bolsonaro mobilizaram milhões, a revolta antirracista nos EUA e as iniciativas Me Too desencadearam uma forte mobilização popular com grande repercussão internacional”.
Direção fala em novas entradas, críticos apontam “perseguições por delito de opinião”
O que diz a direção
A direção refere-se à realidade interna do Bloco para lembrar que nesta convenção haverá “851 camaradas que participarão pela primeira vez”, prova da “vitalidade” do partido. E frisa que o partido “reforçou a sua atividade organizada” em várias frentes, seja a laboral, a LBGTI+ ou outras. Mas lembra que a redução do financiamento do partido, depois da pesada derrota de 2022, “impôs uma exigente adaptação da estrutura partidária”.
Ou seja: a atividade militante e o “esforço financeiro de muitos camaradas” permitiu que o Bloco continuasse a sua atividade política. E há um aviso a reter: “O reforço do auto-financiamento do partido (quotas e iniciativas) é uma mudança de cultura interna que deve aprofundar-se”.
Quanto aos próximos desafios, a moção da cúpula do partido reflete a intenção de voltar a ter representação na Madeira e promete uma “afirmação da alternativa” nas eleições dos Açores. De resto, promete promover nos próximos dois anos debates alargados sobre “a intervenção do partido nas autarquias”.
E deixa um último recado: a maioria dos militantes (ou aderentes, no léxico do Bloco) que entraram no partido desde a última convenção, em 2021, “provém de jovens com uma forte identificação com o perfil ecossocialista e anticonservador do Bloco”. E tem aumentado o número de bloquistas com responsabilidades associativas. O partido promete agora reforçar as iniciativas dirigidas à juventude, uma das suas faixas eleitorais essenciais.
O que dizem os críticos
As principais discordâncias têm, como sempre, muito a ver com a organização interna e o debate (ou falta dele) no seio do Bloco. Os críticos querem que o Bloco aumente a participação política interna “sem exclusões” ou “perseguições por delito de opinião”, e diz rejeitar “a prática de má memória do tipo ‘centralismo burocrático’ disfarçado de democrático”. A sua proposta passa por promover porta-vozes a nível local, regional e nacional, e partilhar mais as responsabilidades no seio do partido.
Os próximos desafios, lembra o grupo que não se revê na gestão da atual direção, estão à porta. E aqui os críticos querem que as organizações locais do Bloco possam avançar com candidaturas e programas e, no geral, que haja mais atenção à atividade de base aos núcleos locais, “combatendo o fechamento e a autossuficiência centralista; revalorizar a pluralidade, marca genética do Bloco esmagada pelo sectarismo interno”.
Em resumo, para os críticos o Bloco não pode ficar “reduzido ao tradicional partido de eleitores, porque tenderia para o eleitoralismo e a institucionalização”, nem a um “partido de propaganda, que assenta em declarações tonitruantes e procura iludir a falta real de implantação com a de querer ser o 3ª partido, ou a da retórica de que não tem vocação local e autárquica, mas alega ter implantação social, ou que não se liga aos movimentos com a narrativa de que não os quer instrumentalizar”. Quem quer debater o rumo do partido, é acusado de querer apenas “cortar cabeças”, tese que contestam: “É uma forma de limitar a democracia e o debate”.
Os planos para “esvaziar a direita radical”
O que diz a direção
A direção do Bloco dedica mais espaço nos tópicos da sua moção aos planos para “esvaziar a direita radicalizada” e o seu “conservadorismo de assalto” — “censório, repressivo, racista, anti-feminista, homofóbico e anti-sindical” — que diz ser uma “política dos bilionários para aumentar privilégios”. A direita tem culpas no cartório, frisa, por “conciliar com a extrema-direita” — o texto acusa mesmo o PSD de “não conceber” uma alternativa de Governo sem o apoio dessa “direita radicalizada”.
Recusando que a solução para o combate a essas forças seja um bloco que inclua o “centro liberal” (no qual inclui o PS), a direção bloquista diz que a receita é um “programa autónomo” com respostas de esquerda.
O que dizem os críticos
Os críticos argumentam que vai ser preciso “intervir com políticas que incluam elementos de rutura com o sistema“, o mesmo que acusam de querer “esmagar” o Bloco e de “compactuar com a corrupção, a ascensão das forças de extremadireita, populistas, xenófobas, racistas e machistas e que acaba por promovê-las”. E é precisamente essa acusação que fazem, tal como a direção, ao PS.