Seria quase impossível olhar em volta e determinar qual das três pessoas que estavam naquele apartamento de dois quartos em Notting Hill, em Londres, era a mais sorridente. De um lado estava Boris, alto funcionário do Ministério da Saúde da Rússia e o homem que se preparava para gastar 4,2 milhões de libras (aproximadamente 5,2 milhões de euros), todo ele sorrisos. E depois Nastya, a amante russa com quem Boris se divertia nas suas escapadinhas em Londres. Os seus cabelos loiros abanavam com os saltos de excitação que dava por estar a visitar a casa que o seu amante estaria prestes a comprar-lhe. E, por fim, o agente imobiliário, Ben Podesta, visivelmente feliz por estar na iminência de ganhar 84 mil libras (quase 105 mil euros) numa comissão para a sua empresa.
“Alguém está muito entusiasmado!”, atirou Boris para o ar, ao que o agente respondeu com uma gargalhada e batendo palmas.
“Estou muito entusiasmado, muito entusiasmado! Quero fechar um negócio!”, respondeu Ben Podesta. Depois, o ministro russo apertou-lhe a mão de forma descontraída. Mas, subitamente, a sua cara ficou séria. “Ainda não, ainda não. Temos de falar”, disse-lhe, com o ar de quem queria partilhar um segredo. Nastya foi afastada, Boris e o agente foram falar para perto da janela.
— Isto é complicado. Bom, não é muito, de certeza que você já lidou com russos — começou por dizer Boris.
— Claro que já — garantiu-lhe o agente.
— Eu preciso de agir depressa. E, mais importante, eu preciso de agir discretamente.
— Sim, é exatamente isso que nós fazemos.
— Você sabe do que eu estou a falar — continuou Boris.
— Sim.
— Eu sou ministro…
— Certo.
— Tenho um salário muito pequeno.
— Certo, certo. Estou a entender.
O diálogo avançou, com Boris a fazer a maior parte da conversa. Se houvesse dúvidas quanto à proveniência dos 4,2 milhões de libras que o ministro russo estava disposto a gastar, ele próprio tratou de dissipá-las logo ali: “Eu faço os contratos de todo o Ministério da Saúde. Sabe como é, um contrato aqui, um contrato acolá, e cai sempre qualquer coisa no meu bolso. Portanto, escusado será dizer que o dinheiro para este apartamento vem do orçamento estatal. O importante é que ninguém descubra e que o meu nome e o meu pequeno salário não estejam ligados a este apartamento”.
Finalmente, o agente imobiliário Ben Podesta diz-lhe o que ele quer ouvir: “Arranje um advogado e depois volte com o nome de uma empresa e depois pode comprar o apartamento com uma conta offshore”. “E ninguém sabe que eu estou por trás disto?”, pergunta Boris. “Exatamente”, assegura-lhe o agente. “É só preencher a papelada, assinar o contrato e está feito!”
From Russia With Cash
Tudo isto aconteceu, mas apenas Ben Podesta era real. Nastya não era a namorada de Boris, mas antes Natalia Sedletska, jornalista ucraniana, sob disfarce. E Boris não era Boris. Tratava-se de um homem com uma câmara oculta, sim, mas não um homem qualquer.
Era Roman Borisovich, um antigo banqueiro russo que está exilado em Londres, depois de ter sido um dos 16 capitalistas russos que financiaram e apoiaram publicamente o político da oposição russa Alexei Navalny. Em 2012, depois das eleições que reconduziram Putin ao topo do Kremlin, Roman Borisovich sentiu o cerco das autoridades a apertar. Nessa altura, fez as malas e voltou de vez a Londres, onde já vivia de forma quase permanente desde 1997. Foi no seu regresso definitivo à capital britânica que abraçou a causa do combate à corrupção, em particular contra os offshore.
O ponto mais alto desse combate foi quando se fez passar por Boris, no documentário “From Russia With Cash”, estreado em 2015 no Channel 4.
https://www.youtube.com/watch?v=attzGI1Jgmc
“Estávamos a testar um conceito que já conhecíamos”, disse Roman Borisovich ao Observador. “Mas o resultado foi inacreditável”, admite. Isto porque, dos cinco agentes imobiliários que apareceram naquele documentário de uma hora, todos, sem exceção, quiseram dar seguimento à venda de apartamentos milionários pagos com dinheiro público. “Eu não conseguia acreditar que cinco em cinco iriam aceitar alguém que chegasse a Londres para fazer negócios com dinheiro criminoso. Quando ligámos a pedir para nos mostrarem apartamentos não pedimos a qualquer um, pedimos expressamente os agentes mais experientes que eles tinham. E nenhum se negou. Inacreditavelmente, todos quiseram colaborar sem fazerem qualquer pergunta.”
Entre os cinco agentes, dois chegaram a sugerir um advogado para tratar de toda a burocracia envolvida. Um, chegou a falar de um offshore em Chipre.
“Eu fiz este documentário para que as pessoas percebessem o quanto esta prática é comum. Neste momento, um em cada dez apartamentos de Londres é propriedade de um offshore. Ninguém sabe ao certo quem é o dono desses 10%”, diz Roman Borisovich, ao telefone a partir de capital britânica.
“Qual é o interesse de subornar um violoncelista? Para ele tocar melhor, é?”
Já há algum tempo que Roman Borisovich suspeitava que algo se estava a passar. Luke Harding — ex-correpondente do The Guardian em Moscovo, um dos jornalistas responsáveis por cobrir os Panama Papers naquela publicação e amigo pessoal do ex-banqueiro russo –, tinha-lhe dado a entender que qualquer coisa de importante estaria para vir em breve. “O Luke já me tinha dado algumas pistas, mas nunca me disse ao certo o que se passava. Só sabia que tinha a ver com aquilo que eu faço”, diz o ativista anti-corrupção.
Até que, às 19h de Lisboa e Londres, e 21h em Moscovo, a investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação rebentou. O primeiro texto, entre muitos que serão publicados nos próximos dias, tinha um alvo claro: Vladimir Putin. Com detalhe, eram explicados os negócios que, por intermédio da firma de advogados Mossack Fonseca do Panamá, foram feitos por três homens: os irmãos, e homens de negócios, Arkady e Boris Rotenberg, e o violoncelista Sergei Roldugyn. Todos unidos por Putin, com o qual têm amizades próximas e de longa data. Os Rotenberg praticaram judo com Putin ainda nos anos 70 e desde então são inseparáveis. Roldugyn apresentou Putin à sua primeira mulher e apadrinhou a filha mais velha do casal.
“Eu não fiquei surpreendido com a investigação, de maneira alguma”, diz Roman Borisovich, para depois fazer uma ressalva. “Fiquei surpreendido que uma operação destas tenha sido sequer fisicamente possível. Estamos a falar de 11,5 milhões de documentos e 2,6 terabytes de informação”, refere, com uma gargalhada.
“De qualquer maneira fiquei muito contente por isto ter acontecido, porque prova tudo aquilo que eu já digo há bastante tempo: os offshores têm servido de abrigo para os proveitos de atividades corruptas e criminosas. Isso é inequívoco”, diz. “O facto de um simples violoncelista ser proprietário de 2 mil milhões de dólares não pode ser considerado normal. Como é que pode ser normal ele fazer vários empréstimos, que no final de contas lhe são perdoados? Qual é o interesse de subornar um violoncelista? Para ele tocar melhor, é?”
“Isto não vai afetar Putin nem um pouco”
Todas as pistas apontam para Putin — e, por isso, este tem sido um dos assuntos que mais atenção tem merecido à imprensa internacional. Mas, na Rússia, nem tanto. “A imprensa estatal tem ignorado o assunto por completo e a única coisa que vão passando são as declarações do porta-voz de Putin”, conta ao Observador a jornalista freelancer e autora do livro A Mística de Putin (Quetzal, 2014), Anna Arutunyan. Dimitry Peskov, porta-voz do Presidente russo, disse, simplesmente, que se tratava de um ato de “Putinofobia”. E, aparentemente, o assunto ficou por aí.
Até porque, até agora, não há nada de novo, garante. “Para mim, nada disto foi uma surpresa, porque já vejo este padrão há vários anos. Não é nenhuma revelação, já houve alegações no passado que apontavam para esta forma de gerir dinheiro com testas-de-ferro”, diz, ao telefone a partir de Moscovo. “O que temos agora é uma base de dados que tem nomes concretos e que conta histórias concretas.”
Mas, mesmo que todas as pistas apontem para o mesmo homem, Anna Arutunyan não acredita que isso lhe vá alterar o futuro. “Isto não vai afetar Putin nem um pouco”, diz, ao telefone de Moscovo. “Houve apenas alguns manifestantes que, a título individual, foram para a rua com cartazes. Mas não deverá passar daí.”
De resto, poucos terão ficado surpreendidos. “A verdade é que a opinião pública russa sabe como estas coisas são feitas e sabe que há um padrão nisto tudo. Em muitos países, o dinheiro é um meio para atingir o poder. Na Rússia é ao contrário. O poder é um meio para atingir o dinheiro”, diz a jornalista. “Há um entendimento bastante claro de que estar no poder vem com benefícios.”
Ainda assim, o regime russo tem uma postura a manter. “Putin tem aplicado várias meias-medidas para tentar absorver algum apoio na opinião pública, porque assim passa uma imagem de verdadeiro combate à corrupção”, diz Anna Arutunyan. “Mas todos sabemos que isto não passa de uma brincadeira.”
Roman Borisovich pensa da mesma maneira. “Putin não fez nada contra a corrupção e na Rússia sabemos perfeitamente que os julgamentos por corrupção nunca se tratam de corrupção per se, mas antes de julgamentos de vingança”, garante. “Servem para menorizar adversários e para pôr no lugar quem se arrisca a sair da linha.”
Por isso, garante, não era em Putin que estava a pensar quando se fez passar por Boris no documentário “From Russia With Cash” — e também não foi esse o caso quando fez a “Kleptotour“, uma visita guiada para jornalistas em Londres em que os pontos de atração eram casas milionárias detidas por empresas offshore. Também não era para as ilhas Maurícias, Bahamas, Jersey, Caimão ou até Madeira que queria mandar uma mensagem. Era para bem mais perto: para o número 10 de Downing Street.
“Eu fiz isto para ser visto pelo senhor [David] Cameron. Porque nós não vamos mudar Putin ou a Rússia. Nunca vamos conseguir mudar uma cleptocracia, já perdi essa esperança há muito tempo”, garante. “Mas, no resto do mundo, podemos pelo menos tentar fazer alguma coisa. Dá para mudar as leis do Reino Unido e passar a obrigar os offshores que tenham propriedade cá a divulgar as listas de ativos todas e os nomes que estão por detrás. Se isso acontecer, não vão poder esconder o dinheiro.”
Tão simples quanto isso, garante. “Não podemos andar a tomar meias-medidas e esperar que elas funcionem”, diz. “Eu sei como esta gente trabalha. Eu já trabalhei com esta gente, fui banqueiro e capitalista na Rússia durante tempo suficiente para perceber como eles são. Por cada meia-medida que o Governo tomar, eles vão arranjar várias para dar a volta ao sistema. Portanto, a única maneira é haver uma divulgação total de dados.”
E isso é infalível?
“Não. Eles são sempre mais espertos do que nós. Vamos andar sempre atrás deles, faz parte. Mas ao menos podemos dar luta.”