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Com 11 anos fartava-se de ver “Jesus de Narazé”, de Franco Zefirelli. Um filme de seis horas que rodava ao lanche, depois de passar a tarde com amigos, índios e cowboys, depois de ler um pedaço de As Aventuras de João Sem Medo, de onde sacou para a vida a frase:
“Proibida a entrada a quem não andar espantado de existir”
Para Albano Jerónimo sempre foi a palavra, que foi ouvindo no meio de peixeiros e ciganos, em Alhandra. Cresceu num meio pobre e rural, foi acólito – onde terá ganho, pela primeira vez, a noção de espectáculo – e viveu a natureza, arma importante.
Aos 15 anos começou a fazer teatro amador. Ainda frequentou o curso de fisioterapia, mas a palavra voltaria a sobrepor-se: candidatou-se ao Conservatório e entrou. Profissionalizou-se aos vinte anos com Mónica Calle, na Casa Conveniente. Entretanto é um dos atores mais requisitados do mercado nacional, com passagens pelos diversos formatos, com projetos internacionais (“Vikings”, por exemplo). Tem a sua companhia Teatro Nacional 21, encenou pela primeira vez em 2017 e está cada vez mais longe da televisão, porque a sede, agora, é outra.
Em dezembro, de 6 a 9, vai estar no São Luiz com “Sócrates tem de Morrer: A Morte de Sócrates” e “Sócrates tem de Morrer: A Vida de John Smith”, um díptico dirigido por Mickaël de Oliveira. Entretanto foi a consciência de “Sara”, uma das melhores produções da televisão portuguesa, onde foi precisamente um manager-consciência da protagonista feita por Beatriz Batarda. Já foi confundido com um vendedor da “Herbalife” e já deu um autógrafo com o nome de um outro ator com o qual o confundiram. “A senhora estava tão contente que não tive coragem de desmanchar”, afirma. Mais uma vez: a palavra. Nem que seja a de outra pessoa. Episódio que reflete a visão do presente de Albano Jerónimo, o aqui e o agora. Como o cão que, durante toda esta entrevista, esteve a ladrar na mesa ao lado da nossa. Sem problema, Albano Jerónimo, 39 anos, não morde.
Sócrates e a política
Interpreta Sócrates na prisão. Só que este Sócrates foi condenado…
Exato.
Sócrates passou os seus últimos dias na prisão a escrever e a pensar. Já se imaginou numa situação dessas? Dar-lhe-ia para escrever?
Lembro-me sempre do Álvaro Cunhal e assim que comecei a trabalhar nisto lembrei-me dele, sem qualquer conotação política, mesmo por admiração pura de uma pessoa. Ele, para se defender, salvo erro e se não estou a falhar, acho que não tinha advogado, então criou uma espécie de mnemónica. Em cada laje tinha Direito, noutra laje tinha, imaginemos, Filosofia, então, para não perder a capacidade mental de memória e de discurso, ia dividindo os temas para se defender ou para manter uma certa sanidade. Imaginando isto, colocando-me humildemente e de uma forma ignorante até nesse papel, imagino uma solidão que me deposita numa busca por uma liberdade, uma avidez qualquer por uma liberdade.
A prisão como lugar de libertação.
Sim, e se calhar isto tem que ver diretamente com aquilo que faço, é uma boa analogia no sentido em que uso aquilo que faço para tentar comunicar da melhor maneira que sei. Reagiria assim se estivesse enclausurado, para não perder a agilidade mental, esta vontade de ser um veículo de uma coisa maior que eu. Imaginando… acho que seria algo insuportável.
Gosta desta ideia de estudar a história das coisas?
Adoro. Uma das grandes vantagens da minha profissão é manter-me numa educação permanente, tem que ver com, e uma vez mais uso esta palavra, liberdade, liberdade de pensamento. O conceito político na altura estava muito mais vivo. Hoje em dia acredito que a política não existe.
Porquê?
Acredito que o poder económico se sobrepõe a qualquer política, nesta perspetiva acho até ridículo falarmos de esquerda ou de direita. É claro que há movimentos de direita, nomeadamente na Europa, que estão a crescer por aí fora, Brasil, enfim, variadíssimos exemplos que nos falam de extremos. Acredito numa zona comum, que é a mais difícil de facto, um intermédio que nos mantém numa exposição permanente, os extremos depositam-nos numa posição taxativa, irredutível, e isso é redutor.
A ideia da cedência.
Sim, de aprender, de reconhecer o erro. Acho que vivemos numa sociedade onde permanentemente tentamos branquear o erro e viver nesse intermédio acho que nos expõe dessa forma mais desprotegida.
É de ter discussões ideológicas, assim grandes?
Já tive algumas. Hoje em dia uso mais o meu trabalho para falar destes sistemas, mas sim já tive algumas, nomeadamente num ambiente mais familiar e íntimo.
Irrita-se?
Irritar não, mas entrego-me totalmente a trocar ideias e discutir de uma forma saudável.
Quando esteve quente a temática do modelo de apoio às artes e quando os artistas foram para a rua pelo atraso dos subsídios, foi convidado para dar o seu testemunho num telejornal de um canal generalista. Depois acabou por não acontecer. E o Albano escreveu uma coisa, indignado com a situação. Aí irritou-se.
Claro. Toco de novo na liberdade de expressão. Deparei-me com um caso e vi-me limitado na minha liberdade de expressão em troca de um assunto como o futebol. Que acho que é menor, que nos reduz a uma zona de raciocínio pobre. Como tal, tinha todos os meus colegas na rua…
Onde queria estar.
Sem dúvida. E vi-me incapacitado de estar nos dois lados. Tem que ver com pessoas que têm possibilidade de optar porque as notícias vêm cá para fora, o que é que se pode falar ou não, e nesse caso não consegui defender uma classe e o estado da cultura, que achei que era a única coisa interessante que havia para fazer, muito menos falar de futebol.
Isto tem também a ver com a comunicação social. Se fosse diretor de um órgão de media imagino que dava primazia à cultura, abria telejornais com estreias de teatro.
Uma pessoa quando começa a conhecer outras coisas percebe o pouco que sabe. Nessa perspetiva, basta fazer um zapping na televisão francesa, onde há, em prime time, debates. Lembrei-me de um onde estava o Slavoj Žižek no meio de uma sala oval onde tinha várias pessoas, professores, arquitetos, engenheiros, o que seja, e que estavam a questioná-lo sobre vários temas. Isso gostava de ver no nosso canal, sem dúvida nenhuma. São alimentos para a nossa alma, para a forma como vemos o mundo e os outros, acredito neste tipo de raciocínio. Não me veria numa direção de canal, mas ver-me-ia numa direção… tenho uma estrutura, uma companhia [Teatro Nacional 21], que é a minha zona de ação, onde posso optar pela programação que quero e dou a ver ao espectador aquilo que defendo. Aí sim, estou mais enquadrado.
Ainda em relação a política cultural, há um orçamento recente, estamos melhores, é suficiente?
Acredito nas pessoas, começo a responder por aí. Estamos um bocadinho melhor do que estávamos, mas continua a ser escasso. Acredito que as pessoas, quem está nos cargos de chefia, se estão a esforçar genuinamente para que a cultura respire de outra forma e chegue às pessoas de uma forma mais imediata. Nessa perspetiva, digo que queremos mais. 1% para a cultura…
Ainda é pouco.
Sim, ainda é pouco. Na Alemanha há uma perspetiva orçamental para a cultura totalmente diferente, onde eles vivem e pensam a cultura para o povo de outra forma. Gostava de ver isso no nosso país, acordo todos os dias cedo, estou longe das pessoas que amo por esse ideal, por um estado de cultura mais saudável para todos. Portanto, continua a ser insuficiente, contudo acredito nas pessoas no sentido em que amanhã vai ser um dia melhor.
E acredita neste modelo de apoio, teria ideias diferentes?
Posso falar da minha experiência, de uma candidatura aos subsídios pontuais da DGArtes e acho que continua a ser demasiado entroncado ou burocrático. Já não há necessidade para termos essa dissecação às vezes até pouco delicada.
Não é a primeira pessoa a dizer isso.
Sim, acho que há vários patamares ou passos que são desnecessários.
Uma exigência demasiado minuciosa?
São muitas vezes cenários hipotéticos. São previsões. Obviamente que tentamos cingir-nos ao mais objetivo que conseguimos, mas é complicadíssimo.
É pedir a um artista para falar de uma coisa que ele ainda não sabe.
Pois, sobretudo se estamos a falar de processos abertos, não sabes se vais ter cinco atores ou se de repente vais ter dez. Isso ao mesmo tempo também nos dá um grande poder de objetivação do nosso trabalho, quer queiramos quer não, é preciso ter uma perspectiva mais fit do trabalho, mais seca.
Já deu um exemplo de um programa de televisão francês, já falou dos modelos orçamentais para a cultura na Alemanha, imagino que se reveja mais nessas ideias. Ainda assim: está para ficar em Portugal?
Sim, acredito que posso ser mais útil cá. Se os problemas estão aqui, gosto de estar onde estão os problemas, isso é intrínseco ao meu trabalho. Ou seja, aceito sempre coisas que não domino ou que não sei. Nesse sentido sim, ficarei cá a tentar construir um mundo melhor, até porque sou pai e quero construir um mundo melhor para a minha filha.
“Acredito que a palavra é infinita e esse duelo leva-me para uma conversação até morrer”
Pensa no mundo atual como “o mundo onde a sua filha vai crescer”?
Claro, todos os dias, é inevitável. Vejo isso como um estímulo brutal para o meu dia-a-dia, isto nunca tem fim, nem nunca terá. Aquilo que desejo é deixar um legado melhor do que aquele que encontrei.
Que tipo de pai é?
É uma questão enorme essa… quero estar atento, tenho a noção que cada conquista de um filho é sempre um passo para se afastar dos pais.
Quantos anos tem a sua filha?
Seis.
Já sabe que o pai é ator.
Sabe pois.
Gosta de o ver na televisão?
Ela não vê muita televisão.
Por sugestão dos pais?
Sim, existem temáticas que são violentas e eu faço sempre objetos, digamos, violentos. Então tentamos guardar isso para mais tarde.
Mas reconhece que o pai, além de artista, é uma figura pública.
Sim, nem que seja pela abordagem de rua, mas é tudo devidamente enquadrado, que as pessoas não gostam do pai só porque gostam, é porque o pai tem um trabalho que reflete uma atitude nas pessoas.
Por falar nessa abordagem de rua, como é que é?
É muito saudável, nunca tive abordagens assim chatas, imagino que colegas meus possam ter.
Ainda que já tenha feito vilões numa telenovela.
Não, nunca, as pessoas são extremamente generosas, sempre. É sempre com muita disponibilidade, dentro daquilo que posso, receber isso de forma generosa, agradecer sempre de forma humilde.
Falámos dessa ideia de ir lá para fora, o Albano não foi, não quer ir, mas fez recentemente uma grande produção internacional: “Vikings”.
Sim, fiz durante três meses e meio, foi das experiências mais incríveis que já tive.
Fale-me sobre isso.
Começou com uma iniciativa da Patrícia Vasconcelos que se chama Passaporte e eu fui uma das primeiras vítimas dessa iniciativa, no bom sentido, claro. Tem que ver com o encontro com o diretor de casting dos “Vikings”, Frank Moiselle, que veio ao Passaporte e que achou que eu tinha as características ideais para fazer uma personagem, fiz uma self-tape e fui escolhido. Numa segunda-feira fiz o casting e na quinta sabia que ia fazer. Gosto de desafios, foi um desafio que não conhecia, tinha que falar grego arcaico.
Falar uma língua estrangeira não é um obstáculo?
Não, já fiz muitos trabalhos, nomeadamente em cinema, onde tive de falar alemão, espanhol, grego, francês. E gosto, tem que ver com uma paixão, sem qualquer tipo de romantismo à mistura, uma coisa muito concreta, pela palavra. Acredito que a palavra é infinita e esse duelo leva-me para uma conversação até morrer. E isso leva-me a procurar, nomeadamente em teatro, essa paixão e essa relação, onde é que isso me pode levar. Esse fascínio por outras línguas, por outras sonoridades, tem que ver exatamente com isso, há um lado musical que adoro, é uma educação permanente.
Conseguirá ter uma conversa em grego arcaico?
Infelizmente não. Mas se me derem um texto…
Mas noutras línguas será capaz.
Sim, tive um interesse pelo alemão, a minha primeira direção foi uma ópera com um libreto feito de raiz, a conceção musical toda de raiz também. De uma forma muito rápida: partia do Werner Herzog, do Fitzcarraldo e do texto do Rodrigo García Tivessem ficado em casa seus anormais. Em algumas partes falava-se alemão puro e duro, noutras falava-se num alemão arranhadíssimo em portunhol. Tinha a ver com desconstrução da palavra e como isso não interessa nada para seres entendido.
Falávamos de “Vikings”. Bem sei que já fez outros trabalhos fora de Portugal, mas esse deduzo que tenha sido de uma dimensão diferente.
Foi, foi assim a primeira grande produção onde estive envolvido, a nível de cinema, sem dúvida, digo cinema porque aquilo foi tudo feito à maneira do cinema. Eles fizeram 80% do meu trabalho. Três horas na caracterização, passava para um figurino que pesa quinze quilos, de repente tinha um coach durante um mês, para poder falar grego… no final deste processo tinha 80% do trabalho feito. A grande diferença é exatamente isto: eles fazem isto por nós, preparam-nos como atletas de alta competição, quando entrava no plateau, no set, estava preparadíssimo, não há tempo para dúvidas. Depois, tinha um décor incrível, a mise-en-cène é notável e de repente está tudo bem.
Bastava falar grego.
É só abrir a boca e não mexer muito. Essa é a grande diferença, dá uma grande liberdade ao trabalho, tudo à volta está muito sólido.
“Então mostra-nos lá isso”, é assim?
Sim, um bocado: “olha, Albano, estás bem, está tudo bem contigo?, então ‘bora”. A pressão é imensa? É.
É menos pessoal o contacto?
Não, há um cuidado enorme. Há uma camareira, uma roulote, uma maquilhadora, é tudo muito mais pessoal. Cada um importa, de outra maneira. O dinheiro aqui faz toda a diferença, obviamente que o dinheiro não faz a qualidade de um texto, é porque o argumentista é genial, mas isto contribui para existir um bom ambiente entre todos, toda a gente tem noção que está a contribuir para algo que eles defendem, é absolutamente transformador.
É muito diferente de uma rodagem portuguesa?
É, sim e é até, de certa forma, ingrato estar a comparar. A realidade orçamental… a diferença do orçamento é abismal, mas posso falar de produções que me deram igual ou mais gozo, posso falar da série portuguesa que rodei com o Marco Martins, a “Sara”.
A consciência de “Sara” e o delírio como recurso
É muito diferente das rodagens e dos bastidores da telenovela que acontece dentro de “Sara”?
Essa pergunta é mais indicada para o Nuno Lopes. Mas há ali um trabalho de argumento feito pelo Bruno Nogueira, pelo Ricardo Adolfo e mesmo pelo Marco Martins, aquilo parte de coisas muito concretas e específicas que todos nós conhecemos. Há ali sem dúvida coisas que se tocam na perfeição, obviamente que aquilo está um bocado mais estereotipado…
Aquela quezílias entre atores.
Também devem existir, nunca tive, mas já ouvi histórias onde isso também está lá. Mas o que interessa ali é que aquilo é um exercício sobre o estado das coisas na ficção.
No fundo, na “Sara”, o Albano é a consciência da protagonista.
Sim, sou. É um alter-ego.
Que também funciona como uma espécie de manager.
Exato, uma das coisas difíceis para mim foi dosear com o Marco o quanto é que isto não podia vir cá para fora logo, então passámos por uma ideia de manager, de agente, e depois começámos a descambar, a colar-nos mais a ela, mais a ela, e no fim já não havia dúvidas, este gajo é um alter-ego daquela pessoa, é mais uma pessoa que habita a cabeça da Sara e, neste caso, é uma espécie de agente.
Curiosa essa ideia de que a consciência pode funcionar como um agente.
Sim, estamos a falar de um atriz, a Sara, que não quer chorar mais no seu trabalho. E então a consciência ganhou corpo na figura do agente.
É fácil ser-se consciência?
Epá, quando se é a consciência da Beatriz Batarda… [risos]
Fica mais fácil.
Sim, e não estou a dar graxa, juro que não estou, mas é uma atriz absolutamente fantástica e está numa forma incrível nesta série, a escrita é manteiga, é de uma riqueza tremenda, é um jogo permanente, a contracena é riquíssima, é um deleite.
E se a consciência não fosse da Beatriz Batarda, seria fácil?
Há muitas coisas ali que já vivemos, de alguma forma. Não é fácil ser consciência de um ator.
Que ideia é aquela que mistura consultório e biblioteca onde a Sara se vai encontrar com o manager? É uma projeção cerebral?
É um pouco isso tudo, são várias pistas que vão sendo dadas. Uma das músicas usadas tem que ver com os irmãos Coen, que é “The Man Who Wasn’t There”, portanto é o homem que não está lá, o agente, o quarto 101 também remete para vários filmes, nomeadamente do Hitchcock. O facto do manager viver num escritório-biblioteca tem que ver com o estereótipo de agente, de alguém que está sempre a fazer coisas, é um bocado uma paródia ao agente.
Em “Sara”, a consciência é retratada como alguém que contraria. Acredita nisso?
É um diálogo interno, um conflito, o agente aqui surge como um dinamizador desse conflito. É sempre ao contrário, sempre em negação, é uma espécie de diabo.
É uma vozinha.
Sim, a vozinha.
E é sempre o polo oposto?
Acredito que sim, arranjamos sempre alguém para nos contrariar. É quase aquele diálogo hamletiano do ser ou não ser.
Aproveitando a tal projeção mental da Sara, que remete o manager para um escritório-biblioteca, é um lugar onde gosta de estar, entre os livros?
Sem dúvida. Cada livro que leio é uma forma de subir um degrau, naquilo que acredito que é a construção de nós próprios. Esta vida, ou estarmos vivos, é a construção de um pensamento, nessa perspetiva procuro sempre ler, são bilhetes, são borlas que tenho na vida para viajar. Não se paga nada, é ir. É mais uma vez a relação com a palavra, gosto de ler não só livros, mas jornais, gosto de me manter informado, tolda a forma como vejo o mundo. E ler, nomeadamente poesia, que é das coisas que mais amo porque está ligado com este lado teatral…
O que é que anda a ler?
Neste momento estou a ler Beber pela garrafa da Cláudia Lucas Chéu, é o mais recente livro dela, editado pela Companhia das Ilhas. São universos de sugestões, são convites que tenho para divagar.
Vai encená-lo?
…não sei. A Cláudia Lucas Chéu tem de facto uma apetência para escrita de cena, é muito ágil, é musculada, é mordaz a escrita dela, nesse sentido, acredito que vou deixar este livro mais para ocupar o lugar da poesia e vou esperar por outro dela.
A peça “Veneno”, que está a fazer, é também da autoria da Cláudia.
Sim, a Cláudia é quase a dramaturga residente da nossa companhia. Tem que ver com um dos princípios da nossa estrutura que é dinamizar a escrita em português, todos os trabalhos feitos até à data foram novos textos escritos em português, nova dramaturgia contemporânea. O “Veneno” é um espectáculo que está a ter uma receção incrível, é um privilégio enorme ser o primeiro veículo de comunicação de um texto, cada vez mais gosto de fazer inéditos ou palavras que nunca habitaram um corpo e esta ideia dá-me um estímulo extra fazer teatro dentro destas características. O “Sócrates tem de Morrer” habita esta zona também, é do meu querido amigo encenador e dramaturgo Mickael Oliveira, e está relacionado com esta adrenalina, fazer coisas que ainda não estão impressas no corpo. O desafio é maior, o risco é maior, não há um conhecimento prévio do público, gosto disso.
É praticamente um monólogo.
É, sou acompanhado e muito bem pelo Luís Puto, também ele faz uma espécie de alter-ego, de projeção deste pai. O “Veneno” tem que ver com estas coisas todas de que estamos aqui a falar, com uma incapacidade de lidar com o real, e não há nada mais forte para um ator que transparecer isso através da palavra. É um exercício de linguagem, é um monólogo, um devaneio na cabeça deste pai. Partimos de notícias concretas, de crimes violentíssimos. Partimos daí e construímos um texto altamente xenófobo, racista, sexista, porque acreditamos que a forma melhor que temos para falar do que estamos a viver hoje um pouco por todo o mundo é expor.
Não é, ao mesmo tempo, árduo para um ator fazer isso?
É exatamente o contraponto. Se não sou assim, vou fazer uma coisa que me obrigue a ir para essa zona. O que nos interessa é expor este raciocínio, este grotesco. Ao expor este grotesco estamos a partilhar com o público uma forma de pensar o mundo… e deixamos em aberto. Isto só se completa com o público.
O monólogo enquanto formato é algo que o agrada?
Não muito. Gosto muito do jogo em cena e o jogo ali é um bocadinho solitário. Isso adensa-me a relação com a palavra e com o corpo.
Uma contracena de cenário, quase.
Sim, de cenário, de escuta, aguça-me a escuta, nisso gosto de monólogos, porque é um exercício sobre o silêncio, gosto muito do silêncio enquanto ingrediente.
Falava há pouco da sua primeira encenação: “Um libreto para ficarem em casa seus anormais”. O que é que se passou na altura para querer encenar?
Foi um desafio feito pelo John Romão, com quem tinha feito “A Pocilga”, do Pasolini, na Culturgest. Ele disse-me: “Albano, tu tens que encenar um destes dias, tenho este texto do Rodrigo García, vê lá se gostas”. Li aquilo e gostei muito, mas ainda não estava no timing. Um ano depois a coisa ganhou força e então quis fazer uma purga de várias linguagens, usámos vídeo, dança, convidei a Crinabel para trabalhar connosco, e esta ópera surgiu como um elogio à diferença. Usámos a roupagem do Rodrigo García, que é uma palavra e uma escrita totalmente violenta, e quisemos dar-lhe um uma roupagem lírica, para criar esta coisa meio burguesa da ópera, para besuntar a palavra do Rodrigo García, para habitar uma espécie de grotesco com o lírico. Que espelhasse um pouco a ideia do ditador que chega a um país e que se depara com uma massa humana escassa, insuficiente, e o que desafio é: vais fazer uma ópera com a realidade orçamental que tens e com a massa humana que tens.
Deduzo que o seu gosto pela música seja grande. Especificamente clássica?
É um bocadinho de tudo, heavy metal é se calhar o género mais distante. Mas sim, a música é uma componente vital do meu dia-a-dia, é uma espécie de cimento da nossa arquitetura diária, liga um pouco as coisas. A música deposita-me sempre para uma zona algures aqui dentro que não está completa.
Também fez “Os Filhos do Rock”.
Foi um dos projetos que me deu mais gozo fazer em televisão, tal como a “Sara”.
Gosta um pouco de tudo, mas tem de géneros preferidos.
Agora ando a ouvir um disco chamado “Room 29”, do Chilly Gonzalès e do Jarvis Cocker, apaixonei-me pela história, comprei o vinil, adoro vinil, tem que ver com a coisa do som não estar puro.
Lo-fi.
Exato, gosto dessa sujidade. O Chilly Gonzalès e o Jarvis Cocker fizeram um belo disco, um pianista e uma espécie de cantor de cabaret, lânguido a cantar, tiveram os dois um desgosto de amor, meteram-se num quarto de hotel, mandaram vir um piano e não saíram de lá durante um mês e tal e fizeram um álbum. Aquilo tem uma qualidade tamanha que a Deutsche Grammophon quis editar as canções. Gosto de coisas mínimas, gosto de coisas solitárias, Bob Dylan, que é alguém que cria esse diálogo com a voz e o instrumento, gosto desse duelo.
E em Portugal?
Várias coisas, The Legendary Tigerman, Samuel Úria, Jorge Palma, canções.
Canções. A palavra outra vez.
Sim, a palavra, quando era mais novo não ligava à palavra, era a melodia, hoje em dia é ao contrário.
Dizia que o “Veneno” é um devaneio, a personagem em “Sara” também tem isso… gosta do delírio?
Gosto.
Há ainda o “Delírio em Las Vedras”.
Sim, do Edgar Pêra.
É bom para um ator?
Sim, são zonas de trabalho muito produtivas, são extremos, dosear esse extremo é das coisas mais complicadas e eu gosto de fazer coisas difíceis, gosto de zonas onde não tenho pé porque tenho que me safar sozinho, tenho que recorrer ao que tenho: um corpo e uma voz. É aí que quero estar, nessa zona de indefinição, nessa procura consigo encontrar-me, algures.
Pode ser arenoso, em simultâneo, certo?
Acho que sim. Mas não tenho medo do erro, acredito que o erro é o meu melhor amigo, nunca estou satisfeito. O erro põe-me sempre em ação, só pode ser o meu melhor amigo, aproveitar a vida tendo como melhor amigo o erro, acho que é uma boa combinação.
Deduzo que isto esteja certo: toda a gente tem o seu lado obscuro. Como é que é o seu? Gostava de ir para uma gruta escrever coisas que, eventualmente, não interessariam a muita gente?
Curiosa essa pergunta, porque passei muito do meu tempo enquanto ator a produzir muitas coisas nesse darkside, ou nesse lado lunar. E sempre foi uma zona muito fértil, hoje em dia procuro trabalhar numa zona alegre.
Que lhe custe menos?
Não é que me custe menos, acredito que é mais fácil criar numa zona mais alegre.
Porquê?
Não querendo tirar o mérito a uma Angélica Liddell, que é absolutamente o exemplo do que estamos a falar, e é alguém que admiro imenso. Mas é um bocado o estado das coisas, acho que a história já foi escrita demasiadas vezes por homens, neste momento deve ser escrita por mulheres, a meu ver, ou seja, também acho que já chega escrever ou pensar coisas no meu lado mais triste, ou mais melancólico. A melancolia hoje ganhou outra qualidade, a melancolia é algo que me deposita numa zona de produtividade. Um trabalho assente, e passo este contraste, numa melancolia alegre.
“Proibida a entrada a quem não andar espantado de existir”, as “Aventuras de João Sem Medo”
O que gosta de ver num ator quando está a dirigir?
Acho que é preciso ser justo com aquilo que se está a sentir e com aquilo que previamente foi decorado. Está ligado ao que somos enquanto pessoas. Não estou a dizer que uma má pessoa seja má a representar… lembrei-me agora de umas quantas… Acredito muito nessa capacidade de ser justo com aquilo que é proposto, com o mundo interior, com o corpo e a voz, com o som, a qualidade do som que é atirado cá para fora, conseguimos perceber se aquilo está numa zona justa ou não. Não me interessa se um ator é um Ronaldo, a dar muitos toques e a ser muito virtuoso a dizer o texto.
Isso é técnica.
Mas é técnica barata. Aproveitando este paralelismo com o futebol, aprecio mais um médio centro, um trinco, que não se dá por ele e ninguém fala dele.
Um Sérgio Busquets.
Sim, mais do que o Ronaldo, que é incrível, marca 300 golos e eu admiro-o, mas aprecio aquelas pessoas que estão no centro do campo, que trabalham imenso e ninguém dá por elas. Aprecio mais esse tipo de atores. Ou atores que conseguem gerir o silêncio no tempo certo.
Já disse noutras ocasiões que é sobretudo um ator de teatro. Mantém a palavra?
Sim, e sobretudo este duelo que me pauta a vida: isto que eu faço não é sobre mim. Isso liberta-me outra vez para um autor, ou uma palavra, reduzir aquilo que faço aos meus dilemas pessoas é pequenino.
Não lhe interessa.
Não, com todo o respeito pelos colegas que fazem isso. Há um episódio muito engraçado que eu subscrevo: o Laurence Olivier estava a dar um curso no estúdio do Lee Strasberg, em Nova Iorque, e tinha como aluno o Dustin Hoffman. E então o Dustin Hoffman tinha que fazer de gajo que não dormia, estava com uma insónia brutal, por aí fora. Ele não dormiu e horas antes da aula pôs-se a correr à volta do edifício, chega lá acima feito em cacos. O Laurence Olivier diz-lhe para fazer a cena, ele faz e depois diz-lhe: “OK, já vi o que fizeste, respeito o teu trabalho, mas agora vais para casa, vais dormir e depois voltas e fazes a cena”. Portanto acredito mais no trabalho consciente, é como em cinema ter um plano fechado, não acredito que um plano fechado tenho o mundo inteiro à minha espera. Tenho aquilo que preciso dentro de mim para fazer tudo, tendo como princípio que isto não é sobre mim. Tenho o suficiente. Se não for bom, olha, é o que há cá. Não me interessa ficar muito bem na fotografia, não me interessa que as pessoas digam “epá, foste muito bem”, não. Eu quero é tentar. O que me interessa como ator é tentar. E no teatro consigo tentar e falhar melhor. Isso é algo que a televisão não dá.
E no cinema?
No cinema… estive agora a rodar um filme com o Tiago Guedes, uma longa-metragem, onde fazia o protagonista, em 40 dias de rodagem estive em 38, é nonstop. E aí a dinâmica é diferente, vivo com aquilo, por mais que chegue a casa, tenha uma criança… à noite estou com aquilo, a qualidade é diferente. Mas sobretudo: a aprendizagem que tenho em teatro e em cinema é muito maior do que em televisão. Estou muito mais próximo da falha em teatro e no cinema, enquanto que em televisão estou numa dinâmica industrial, numa máquina, com o devido respeito, e faço parte dessa engrenagem. E no teatro tenho este exercício de saber o lugar que tenho que ocupar. Isso para mim é tudo.
Foi aí que começou?
Sim, faço teatro amador desde os quinze e profissionalizei-me aos vinte, com a Mónica Calle, na Casa Conveniente.
Belo arranque.
Não é? Depois disso veio a minha primeira experiência em televisão e em telenovela. Era do Moita Flores e chamava-se “Lusitana Paixão”, uma coisa muito antiga. E depois tive logo a minha experiência no cinema com o Luís Fonseca, que é um dos fundadores da Casa Conveniente. Mas sim, toda a minha aprendizagem vem do teatro.
Como é que lá chegou?
Mais uma vez: a palavra, o gosto pela palavra. O primeiro mestre que tive foi um homem chamado Mário Rui, que já não está entre nós, e lembro-me da primeiríssima vez que li um texto de teatro num ensaio, que era o “Sik Sik, o Mágico”, do Eduardo di Filippo, um texto meio paródio e eu fazia uma espécie de welcome-guy, o cicerone da coisa. E a primeira vez que li aquilo foi muito rápido e ele disse para não ler assim.
Isso onde?
Em Alhandra, no Grupo de Teatro Amador Esteiros, que é dos grupos mais antigos que temos. A semente foi colocada aí. Estava em ciências e fui para fisioterapia, ao fim do primeiro ano desisti, concorri ao conservatório e entrei. Ao entrar apanhei o João Mota, nos primeiros três meses, e o João Mota potenciou tudo, é dos melhores pedagogos que temos em Portugal, abriu-me ainda mais esta vontade e a curiosidade. E ainda não perdi isso. Esta vontade tem-se transformado, agora na minha idade quero fazer coisas mais fora, estando mais de fora, não só a dar aulas, interessa-me passar aquilo que adquiri, acredito que posso ser útil algures na cabeça de alguém, mas também porque quero estar de fora, quero mexer nos textos de outra forma, sou um apaixonado pela imagem, ir por camadas, educando-me noutras áreas.
Há algum livro que o tenha marcado na juventude?
As Aventuras do João Sem Medo, do José Gomes Ferreira. Nunca mais me esqueço quando o João Sem Medo chega a uma aldeia que tem escrito na placa proibida a entrada a quem não andar espantado de existir. São ingredientes, coisinhas que vamos pondo na sopa, que dá este cozinhado todo.
Essa estrutura é em Alhandra, cresceu em Vila Franca de Xira, certo?
Nasci em Lisboa, a minha família é toda do Alto Minho, mas sim, fui criado no Ribatejo. E de facto tive nesse grupo de teatro em Alhandra.
Como é que foi crescer nesse meio?
Na altura era muito diferente, cresci no meio de cagaréus, no meio de peixeiros, no meio de ciganos, de pessoal que tinha, dito de uma forma politicamente correta, uma vida escassa. Venho dos subúrbios e isso dá-me uma urgência naquilo que faço também, no sentido em que desde muito cedo que tive que me fazer à vida, nessa perspetiva de “conhece-te, vai, para teres coisas tens que trabalhar para elas”. Orgulho-me imenso desse percurso porque me deposita hoje numa insatisfação, numa consciência daquilo que não sei, então tenho muito para aprender. Crescer em Alhandra nesses meios deu-me este apetite voraz de não querer parar. Então respeito-me cada vez mais naquilo que faço.
Pelo que tinha em seu redor?
Sim, pelo que me rodeava, por aquilo que não tinha. E por aquilo que não tenho e nunca terei, mas pelo qual vou sempre lutar. É um sítio de luta, mas de esperança.
Tem histórias do Colete Encarnado?
Fui duas vezes ao Colete Encarnado, uma vez à Feira do Melão e uma vez à Feira do Cavalo. Recuperei memórias dessa altura neste filme do Tiago Guedes, “A Herdade” (filme que tem estreia agendada para o próximo ano), porque foca exatamente uma família rural, com dinheiro, a realidade com animais, com cavalos, uma coisa campestre, tive tudo quando era puto.
Os Índios e os cowboys e o Sandokan
Gosta desse lado da natureza?
Acredito que estar perto da natureza devolve o corpo, como o Pasolini diria: “abgioia”. Aquela alegria fúnebre, uma coisa que me mantém numa zona de vibração permanente. É muito importante esta relação com a natureza, estar perto do corpo é estar perto dos limites e da falha. Isso dá-nos consciência daquilo que não abraçamos. Havia muitos poucos momentos de contacto com essa minha infância neste filme, o filme rodava-se nas Lezírias, quando era puto brincava nas Lezírias, foram revivals de coisas que tenho cá algures.
Ao que é que brincava?
Brincava sobretudo com amigos, aos índios e aos cowboys.
O que é que preferia ser?
Gostava muito de ser índio, na altura. Bom, cowboy também, porque era preciso prender ou matar os índios… mas preferia ser índio, andava sempre a fugir, era giro. Deu-me esta realidade de não ter medo da natureza, não ter medo do escuro na natureza, que às vezes pode ser um tabu, 70% deste filme foi rodado à noite no meio do mato, foi das coisas mais estimulantes. Lá está são experiências que não tinha tido se tivesse vivido na cidade, se fosse urbano. Isso é um privilégio. Falando mais do filme, “A Herdade”, o título não está relacionado com o património físico, mas com o património sentimental, aquilo que passamos aos nossos filhos. É um filme que foca a família e a extinção da mesma, um pouco à imagem do “Veneno”.
Enquanto estrutura.
Sim, e o que a educação tem de tão importante na formação do indivíduo.
E o Albano sabe isso?
Vou sabendo, ganhei outra patine quando fui pai. Todos os dias a minha filha ensina-me a ser pai, portanto estou a reaprender coisas.
Achavam estranho o seu nome, quando era miúdo?
Eu achava. Quando era puto era um bocado chato, Albano rima com muitas coisas manhosas. E a partir daí na escola, era um mimo. Isto tem que ver com um hábito familiar da parte do meu pai, o meu tetravô era Albano, o meu bisavô era Albano, o meu pai era Albano, então tinha que levar com a fava. Hoje em dia já tenho uma boa relação com o meu nome, mas por norma era associado a alguém do PCP ou a um talhante.
Faziam-lhe travessuras, os seus colegas?
Sim, mas nada de muito diferente do que era hoje.
Que filmes viu na juventude?
John Ford, “A Desaparecida”, um filme que revi várias vezes, não sei bem porquê, estava longe de saber quem era o John Ford, mas via aquele filme vezes sem conta.
Isso com que idade?
Uns onze ou doze.
E percebia?
Gostava de ver, lá está, índios e cowboys, gostava disso, e havia ali uma história de amor, fruto proibido, “Romeu & Julieta” style. Via outro: “Jesus de Nazaré”, do Zeffirelli, que tem seis horas. Via aquele filme muitas vezes, gostava da imagem daquilo, gostava da figura de Jesus, daquela personagem, e depois vi e revi várias vezes, para contrastar, o “Cocktail”, com o Tom Cruise. [risos] Portanto, nesta misturada toda é o que tenho presente da minha realidade cinematográfica quando era chavalo.
Mas para um chavalo não é muito normal ver um filme de seis horas.
Não, mas tenho uma educação católica e obviamente motivado por isso mostraram-me esse filme. Mas depois, não sei, punha aquilo ao lanche porque sim, para ver mais um bocadinho. Depois parava, ia fazer outra coisa e retomava outro dia. E via filmes de ninjas também, claro. E o “Sandokan, O Tigre da Malásia”.
Religião, televisão e vinho
Dizia que teve uma educação católica…
Sim, acólito e tudo, portanto… costumo brincar a dizer que a minha primeira noção de espectáculo foi a primeira vez que ajudei o padre na missa. Virei-me e vi aquela plateia toda. A brincar a brincar, a questão da palavra, aí era a “Palavra do Senhor”, seja lá ele quem seja, mas intrigava-me a atenção que toda uma massa de pessoas dava sobre alguém que estava a falar. Ainda hoje me intriga esse fenómeno que é as pessoas irem para dentro de uma sala ouvirem uma ficção. Aquilo é um pacto surdo entre todos, vamos assistir a isto. Intriga-me imenso, dá-me uma alegria quase juvenil querer fazer um espectáculo de teatro. Há uma coisa que me acontece sempre antes de entrar em cena, mas sempre, juro que não tenho nada pensado: fico com um sorriso enorme antes de entrar em cena, não sei explicar, é uma alegria qualquer que me vem por momentos.
É o seu ritual.
É capaz de ser isso sim, não sei. Mas tudo isto está ligado, este ritual que o teatro pode ter, quase um lado religioso, desta comunhão com todos — e todos vamos compactuar com aquilo que vai ser criado.
Mas no teatro o Albano acredita.
Pois, é uma mentira verdade, ou uma verdade a mentir, falar verdade a mentir. É o exercício da mentira, sou um profissional da mentira.
É quase como um advogado?
É, há um ritual, imenso, aquela coisa da toga, de teres uma alegação final, é um exercício da palavra.
Sabe especificar o momento em que a igreja deixou de fazer grande sentido para si?
Não sei dizer o momento, mas são vários acontecimentos que levam alguém de uma crença para a realidade. A vida. O aqui e agora. E o aqui e agora tem muito que se lhe diga. Não sei o que vai acontecer no instante seguinte, não quero perder a esperança nem quero deixar de acreditar em nada, contudo, tento sempre colocar-me num lugar de disponibilidade para aceitar aquilo que surge. Nem que seja um cão a ladrar permanentemente, como este que está aqui ao pé de nós.
Que vai ser muito divertido de ouvir quando estiver a transcrever esta entrevista…
Exato, isso não vai ser fácil. Ou uma ambulância que passa [estava uma ambulância a passar naquele preciso momento]. No “Veneno” brincamos com isso, temos um rádio em cena, e o que estiver a dar é o que vai para o ar, já apanhámos coisas inenarráveis, adoro particularmente rádios que têm aquelas rubricas em que as pessoas ligam a pedir coisas.
Discos pedidos.
Sim, ou conversas sobre a vida, dúvidas sobre uma barata, o que é que acontece quando uma barata fica sem cabeça? “Tem três opções…”. Tudo isto adensa o momento de presente.
Podia ter sido outra coisa que não ator?
Não sei, não gosto de fechar isso. Não tenho nenhuma religião, nem cor política, tenho as minhas convicções, como é óbvio, acho que podia fazer outras coisas na vida, claro que podia. Não me quero fechar.
Mas o que é que queria fazer quando fosse grande?
Passou-me pela cabeça algo relacionado com a saúde. Hoje em dia algo virado para um lado social, com as pessoas.
Pois, não chegámos a falar sobre essa incursão na fisioterapia. É bom em massagens, então.
Dizem que sim.
Já foi alvo de muitos piropos?
Alguns, sim. E o mais maravilhoso foi um que guardo com todo o amor, estava na Ginjinha antes de entrar, pela porta de artistas, no Dona Maria II, estava ao balcão e uma senhora, uma black mama, linda, olha para mim e diz: “Eu conheço”. E eu fico a olhar para ela, ela dá uma pausa e diz “Herbalife?”. Ou seja, confundiu-me com um vendedor da Herbalife, portanto foi o melhor piropo que já recebi. À parte de já ter dado um autógrafo passando por outro ator com o qual me confundiram e assinei com o nome dele.
Isso é incrível. Não pode dizer o ator?
Não posso, fica mal. Mas a senhora disse-me: “Adorei vê-lo naquele papel” e eu não desmanchei, a senhora estava tão contente que não tive coragem de desmanchar.
Falou da Ginjinha tenho que perguntar: gosta de beber um bom copo?
Gosto, sobretudo de vinho tinto.
Parece-me que os atores padecem todos dessa adição ao vinho tinto.
Tem que ver com baco. [risos] Mas gosto muito, tem que ver com a minha namorada que é produtora de vinho, agora juntou-se a fome com a vontade de comer.
Está cheio de garrafas em casa, então.
Pelo menos esforço-me por isso. Aprendi a diferenciar um bom vinho de um mau vinho, isso já é muito na vida de uma pessoa.
O que é que anda a beber?
Isso, e depois disse: “Então agora prova lá isto”. O vinho leva-me para outras coisas, sobretudo para o tempo que as coisas levam até serem comunicadas, ou bebidas, no caso do vinho. Com essa ideia de maturação, e eu uso cada vez mais isso nos processos de trabalho.
Mais vinho?
Vinho tento não usar muito, mas é um bom aditivo para combater a fruição ou o pensamento artístico. Mas é essa tal maturação, as coisas levam o seu tempo, custou-me aprender isso, quando era mais novo queria as coisas para ontem. Hoje em dia consegui encontrar prazer na diluição das coisas.
Acredita que isso só se obtém com a idade?
Sem dúvida. Estas qualidades ganham-se com o tempo e com a experiência e tu para fazeres determinado papel se calhar precisas de um tempo.
O que é que se segue para os próximos tempos?
O “Veneno” vai continuar em digressão, vamos estar em Ovar, em 2019 por aí, ainda por confirmar mas com esperança que se concretize, Viana do Castelo, Bragança, Vila Real, Loulé, Porto e Lisboa no fim. De 6 a 9 de Dezembro vou estar no “Sócrates tem de morrer”, no São Luiz. Em Fevereiro, de 14 a 17, vou estar num trabalho dirigido pela Carla Maciel, “Confissões de um Coração Ardente”, a partir do Dostoiévski. Para sair o filme do Tiago Guedes, “A Herdade”, com produção do Paulo Branco, para estrear em 2019. E em teatro tenho duas direções, um monólogo feito com o Rui Fonseca, um ator da Crinabel, que é uma biografia do Elvis Presley. E teremos um espectáculo no Teatro da Trindade, é a primeira vez que a nossa estrutura vai fazer um texto que não é português, é “O Amante”, do Harold Pinter, também em 2019.
Não há televisão…
Para já ainda não. Queria ver se conseguia maturar um pouco mais, porque tive um ano de uma novela “A Paixão”, que gostei de fazer, mas que foi um ano de trabalho. E um ano de trabalho a gravar cinco dias por semana rebenta qualquer criatura, tive uma média de mais duzentas páginas de texto por semana, é muita coisa. Estou a tentar não ter uma carga de trabalho deste género, não digo que não, por várias razões, mas a ter um projeto de televisão gostava que fosse mais racional ou que não trabalhasse tanto.
Mais a ideia de série.
Agrada-me mais, sim, são períodos curtos de trabalho, focas-te e o trabalho consegue ser mais doseado. A novela, dá-me gozo, de outra forma, é uma espécie de maratona onde tens de gerir muito bem o teu cansaço.
Há pouco criticou a máquina que é a televisão.
Critiquei de uma forma construtiva, até porque a televisão tem uma coisa que só ela é que tem: que é a qualidade de indústria.
E tem dinheiro.
Sim, e em Espanha, por exemplo, o cinema tem essa qualidade de indústria, cá o único meio é de facto a televisão. Para mim não é fácil fazer televisão, é muito exigente, e por respeito ao formato e ao meu trabalho, gostava de fazer um projeto de televisão quando tudo estivesse bem. Quando estiver preparado e onde me gostasse de incluir. Falo da televisão com carinho, porque tenho feito alguma nos últimos anos, porque é uma fonte de rendimento e é uma forma de me exercitar nessa gestão diária de textos vários.
Podemos dizer que neste momento lhe interessa menos?
Sim, por uma questão de agenda e por uma questão pessoal, de fazer outras coisas que me interessam mais neste momento. Mas imagina que me aparece um projeto de televisão que faz todo o sentido para mim, não vou dizer que não. Ser ator, em Portugal, tens sempre que viver com esta permanência, é viver com esta instabilidade de teres que conciliar projetos, que é uma tristeza.
Se pudesse fazia menos.
Sim, só neste país é que tens de conciliar trabalhos para teres uma vida normal. Portanto, obviamente que televisão estará sempre no horizonte.
Agora no final desta entrevista lembro-me que foi difícil prepará-la porque não existe muita informação disponível sobre o Albano, muito menos sobre o que lhe é mais pessoal.
Pois, não gosto muito de falar sobre isso. Uma vez mais é redutor para aquilo que faço, esses detalhes mais caseiros são redutores daquilo que posso adquirir com a minha expressão.
Embora possam dizer alguma coisa o percurso da pessoa, não?
Entendo. O que tento passar nas aulas é, por exemplo nunca branquear de onde venho, acho que é importante para um jovem perceber que eu venho de um meio pobre, nessa perspetiva há que ter essa noção: que é possível. Falo daquilo que acho que possa ser interessante ou que possa ter qualidade. O resto acho que não me acrescenta nada. Tudo aquilo que pode tornar doméstico é pequeno. É pouco interessante.
Obrigado.
Ora essa, obrigado eu.
Fotografias de André Dias Nobre