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Deputados durante a votação da proposta do Orçamento de Estado para 2022 que foi aprovada na generalidade com os votos a favor do PS (120), a abstenção de PAN e Livre, e os votos contra das restantes bancadas parlamentares (PSD, Chega, BE e IL), durante o debate sobre Orçamento do Estado de 2022, na Assembleia da República, em Lisboa, 29 de abril de 2022. O documento tem agora votação final global marcada para 27 de maio, sendo que o OE 2022 deverá entrar em vigor já a partir do dia 1 de julho.  MANUEL ALMEIDA/LUSA
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Lei geral foi aprovada em 2018. Seguiu-se regulamentação em 2019, mas Tribunal Constitucional mandou para trás

MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Lei geral foi aprovada em 2018. Seguiu-se regulamentação em 2019, mas Tribunal Constitucional mandou para trás

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Crianças a mudar de nome? Casas de banho vão ser mistas? Doze perguntas e respostas sobre a nova lei para as escolas

Propostas de PS, PAN e BE tentam ultrapassar chumbo. Chega acusa socialistas de promover "ideologia de género", PS critica "discurso de ódio" e "caricatura" da lei.

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É a segunda vez que a discussão — polémica — surge: afinal, as casas de banho nas escolas vão poder ser mistas? E uma criança de qualquer idade pode usar um nome correspondente a um género diferente do que lhe foi “atribuído à nascença”? Pode usar outro uniforme e participar nas atividades da escola escolhendo estar na equipa de um género que não aquele com que foi identificado quando nasceu? As crianças e jovens em processo de transição de género vão ficar mais ou menos seguras?

A nova proposta do PS, que resulta de um despacho que o Tribunal Constitucional tinha mandado para trás no ano passado — e que se soma a um projetos muito semelhantes do PAN e do Bloco –, responde a estas questões e levanta outras.

Para o Chega, o texto não é mais do que uma manifestação da “ideologia de género” e até uma forma de impor situações desconfortáveis à maioria dos estudantes por causa de uma minoria muito reduzida — sendo que o partido de André Ventura se prepara, como revelou ao Observador, para criar uma plataforma de denúncias de abusos sexuais nas escolas a pensar neste cenário.

Uma caricatura da lei e uma redução ao absurdo de um texto que pretende proteger os direitos de crianças e jovens transgénero, responde o PS, criticando o “discurso de ódio” que surge em resposta à nova (q.b.) legislação. O Observador falou com os protagonistas que estão a favor e contra a nova lei e explica tudo o que está em causa.

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No passado, PSD e o CDS lideram este combate no Parlamento. Miguel Morgado, então deputado social-democrata, liderava o grupo de 86 deputados que pediram ao Tribunal Constitucional que fiscalizasse o diploma em causa. O Observador procurou uma reação oficial da bancada social-democrata aos projetos entretanto publicados, mas o partido não indicou qualquer deputado para falar sobre o tema.

Tribunal Constitucional chumba normas do Governo sobre identidade de género nas escolas. Decisão deve ser do Parlamento

Esta lei é nova? Porque é que se está a falar dela agora?

Praticamente só na forma. Na verdade, quase tudo o que está previsto nos projetos de lei do PS, PAN e do Bloco de Esquerda já constava de um despacho de 2019 emitido pelo atual ministro da Educação, João Costa – que era então secretário de Estado da mesma pasta.

Esse despacho, por sua vez, tinha sido publicado para regulamentar a lei 38/2018, da autodeterminação de género (por extenso, a lei que estabelece o “direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa”).

A maior mudança que essa lei trazia era a possibilidade de pessoas transgénero – que não se identificam com o sexo “atribuído à nascença” – mudarem o sexo mencionado no registo civil, assim como o nome com que foram registadas, sem precisarem de um diagnóstico médico para isso (precisavam apenas de um relatório que comprovasse que não estavam “inabilitadas por anomalia psíquica”).

Até então, era preciso um atestado médico e um processo burocrático mais complicado (e caro) para se poder mudar de sexo e de nome no registo civil. O objetivo assumido da lei 38/2018 foi ultrapassar esses obstáculos e dar mais proteção às pessoas que estão nessas circunstâncias.

Acrescentava-se na lei de 2018 que os jovens entre 16 e 18 anos poderiam fazer a mesma mudança no registo, mas nesse caso o responsável da conservatória teria de os ouvir primeiro e de ter a garantia de um médico ou psicólogo que atestasse “a sua capacidade de decisão e vontade informada”, além da autorização dos pais. Antes dos 16 anos, não é possível fazer essa mudança formal.

Para mais, o articulado proibia discriminações de pessoas que não se identificassem com o “sexo atribuído à nascença”, prevendo que entidades públicas e privadas criassem condições para que isso mesmo acontecesse.

Sessão plenária na Assembleia da República sobre as várias propostas de lei dos deputados, sobre a morte medicamente assistida (eutanásia). Isabel Moreira, deputada do Partido Socialista (PS) Lisboa, 09 de Junho de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Isabel Moreira é a primeira subscritora da proposta do PS

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Mas o que é que a lei de 2018 tem a ver com estes projetos?

Mais uma vez: a grande alteração introduzida pela lei 38/2018 passava por permitir a quem manifestasse esse desejo a possibilidade de mudar de sexo e nome no registo civil sem que para tal fosse preciso um diagnóstico médico para tal.

Os jovens entre 16 e 18 anos poderiam fazer a mesma mudança no registo, mas nesse caso o responsável da conservatória teria de os ouvir primeiro e de ter a garantia de um médico ou psicólogo que atestasse “a sua capacidade de decisão e vontade informada”, além da autorização dos pais.

Ora, nessa lei, mais concretamente no artigo 12º (números 1 e 3), ficava estabelecido que as escolas tinham obrigação de cumprirem normas que permitissem proteger a “expressão de género” e as crianças e jovens que se encontrassem em processo de “transição social de identidade” – normas que seriam detalhadas no tal despacho subsequente, mas que acabariam chumbadas pelo TC em junho de 2021, deixando a regulamentação sem efeito.

Nos projetos agora apresentados, há pequenas alterações como uma alínea em que fica prevista também a proteção de docentes e não docentes, e não apenas dos alunos, nestas situações, ou outra que estabelece que qualquer pessoa que saiba de um risco para quem está a passar por esse processo é obrigada a comunicá-lo à direção da escola.

O PAN, tal como o BE, inclui nas ações de formação que quer que existam nas escolas a participação de “associações e coletivos LBGTI+” — um ponto altamente questionado pelo Chega.

As propostas aplicam-se às crianças de qualquer idade?

A lei inicial, de que decorrem estes projetos, é clara: o Estado deve adotar medidas “em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo” no sentido de proteger o direito à autodeterminação e expressão de género, apesar de medidas específicas como a mudança da menção do sexo e do nome no registo civil só serem possíveis a partir dos 16 anos.

Por outras palavras: mesmo que formal e legalmente só seja possível mudar de sexo e nome a partir da idade acima referida, o legislador quis que, nos casos em que as crianças e adolescentes que manifestem vontade de ser tratados por outro género que não o biológico, as escolas adotassem procedimentos para salvaguardar os direitos dessas pessoas.

Ao Observador, Isabel Moreira justifica a abrangência da lei em termos de idade, frisando que “a autodeterminação é variável para cada pessoa”. “Quem cientificamente conhece a matéria diz que o processo, assim como o desconforto que as pessoas transgénero sentem relativamente ao sexo atribuído à nascença, pode começar aos dez anos, aos seis anos, mais cedo…”, diz.

No diploma original, a tal lei 38/2018, diz-se taxativamente que, “salvo em situações de comprovado risco para a saúde”, os tratamentos e as intervenções cirúrgicas, farmacológicas ou de outra natureza que impliquem modificações ao nível do corpo e das características sexuais não devem ser realizados até ao momento em que se manifeste a sua identidade de género”.

É por isso que é mencionado que não será aconselhável começar tratamentos hormonais (reversíveis) antes da puberdade (um processo que, tal como quando há cirurgias envolvidas, implica acompanhamento médico). Sendo que qualquer tratamento hormonal só pode ser realizado a partir dos 18 anos, ou a partir dos 16 anos com autorização parental. As intervenções cirúrgicas só podem ser realizadas a partir dos 18 anos.

Dito de outra forma: o presente diploma (que define regras para a mudança de sexo e de nome no registo civil e que obriga as escolas a proteger as crianças e os adolescentes nestas circunstâncias) não versa sobre alterações físicas, sejam tratamentos hormonais, sejam cirurgias.

Isabel Moreira explica a utilidade da lei a seguinte forma: é importante “que as crianças se possam expressar livremente e vestir-se como quiserem” à medida que crescem, ficando assim a sua “liberdade e segurança” garantida. Neste processo, insiste, as escolas devem ser espaços onde essa “segurança” está preservada.

Crianças e adolescentes precisam de ter um atestado médico para entrarem em processo de “transição social de identidade”?

Não. Nem as crianças nem ninguém, uma vez que hoje em dia não é necessário qualquer diagnóstico clínico para que uma pessoa autodetermine qual é o género com que se identifica.

A deputada socialista Isabel Moreira, primeira subscritora do projeto de lei do PS, justifica ao Observador que, não estando esse lado clínico previsto na lei, “as crianças e jovens terem ou não acompanhamento clínico depende de cada caso” e se o têm “naturalmente isso é articulado entre pais, equipa médica e escola”. Mas, uma vez que não se considera que as pessoas transgénero tenham qualquer doença, “o legislador não se intromete em acompanhamentos clínicos”.

De resto, o processo de “transição social de identidade” não tem propriamente um início formal ou burocrático previsto na lei, explica ao Observador a ex-deputada do Bloco Fabíola Cardoso, que esteve envolvida na elaboração dos primeiros projetos, em 2018.

“Tem é de haver alguém responsável, e responsabilizável, na escola por fazer esse acompanhamento” a partir do momento em que a criança ou jovem sinaliza que não se identifica com o género de nascença, e por garantir que vê a sua “segurança e bem estar” assegurado.

No entanto, não existe nada lei que indique em que medida é que se deve considerar que uma criança ou jovem está a passar por um processo de “transição social de identidade” — o que faz com que os críticos do diploma levantem questões sobre a indefinição adjacente.

Mas os pais não têm uma palavra a dizer?  E a mudança de identidade pode acontecer de um dia para o outro?

Ora, o que se depreende do ponto acima descrito e das palavras de Isabel Moreira e de Fabíola Cardoso foi que o legislador tentou, deliberadamente, dar margem suficiente para que cada caso seja avaliado individualmente.

Aliás, no diploma apresentado pelos socialistas diz-se o seguinte: “As escolas devem definir canais de comunicação e deteção, identificando o responsável ou responsáveis na escola a quem pode ser comunicada a situação de crianças e jovens que manifestem uma identidade ou expressão de género que não corresponde à identidade de género à nascença”.

E acrescenta-se: “A escola, após ter conhecimento da situação prevista no número anterior ou quando a observe em ambiente escolar, deve, em articulação com os pais, encarregados de educação ou com os representantes legais, promover a avaliação da situação, com o objetivo de reunir toda a informação e identificar necessidades organizativas e formas possíveis de atuação, a fim de garantir o bem-estar e o desenvolvimento saudável da criança ou jovem”.

Ou seja, apesar de o diploma versar sobre o direito à autodeterminação de crianças e jovens, o processo, à luz do que consta neste projeto-lei, não será súbito ou instantâneo — pressupõe-se que, na base de qualquer decisão, esteja o diálogo entre jovem, pais e comunidade escolar.

Mas vai passar a haver casas de banho mistas?

Não necessariamente. Isto é, a alínea da lei que se refere às casas de banho – a que levantou mais polémica logo em 2018 e volta a fazê-lo agora – não estabelece uma solução específica ou única sobre o assunto.

Ou seja, o que a alínea em causa prevê é isto: “As escolas devem garantir que a criança ou jovem, no exercício dos seus direitos, aceda às casas de banho e balneários, tendo sempre em consideração a sua vontade expressa e assegurando a sua intimidade e singularidade”.

No caso, uma criança ou jovem transgénero (embora essa distinção não seja explícita neste ponto, o PS assegura que é este o espírito da lei) deve poder aceder às casas de banho em que se sentir mais confortável – na altura da aprovação do despacho, o Governo contava as histórias de crianças que costumam usar as dos professores, por exemplo, para contornar a situação.

Neste caso das casas de banho/balneários, não existe, ao contrário de noutros artigos, menção sobre se a vontade dos pais ou encarregados de educação deve ser ouvida quanto a esta opção.

“O que o artigo prevê é que alguém que se sinta desconfortável na sua privacidade possa pedir ao professor um pouco de privacidade”, refere Isabel Moreira. E dá um exemplo: “Uma pessoa que se identifica como rapaz, que está a tomar bloqueadores de menstruação e que está está sem menstruação, pode sentir embaraço em vestir-se em frente às raparigas”.

É neste ponto que, segundo o PS, PAN e Bloco de Esquerda, a escola deve arranjar solução: pode passar por a criança ou jovem ir vestir-se a um balneário diferente, fazê-lo mais cedo enquanto os outros colegas ainda não chegaram, usar a casa de banho dos professores, entre outras opções.

“Uma pessoa que se identifica como rapaz, que está a tomar bloqueadores de menstruação e que está está sem menstruação, pode sentir embaraço em vestir-se em frente às raparigas”, exemplifica Isabel Moreira, do PS

O que é que as propostas preveem além da questão das casas de banho?

Além dessa questão mais delicada, os projetos preveem ações de informação e sensibilização nas escolas; “mecanismos de disponibilização de informação” para diminuir a discriminação; assegurar a privacidade de a autodeterminação dos estudantes, pessoal docente e não docente em processo de transição.

E mais precisamente, no caso dessas crianças e jovens que “manifestem uma identidade ou expressão de género que não corresponde à identidade de género à nascença”, deve estar identificado, na escola, um responsável a quem seja comunicada a situação dessas crianças e jovens.

Depois, esse responsável deve avaliar a situação com os encarregados da educação; e qualquer membro da comunidade que tenha conhecimento de atos que sejam um risco para a vida ou a integridade física ou psíquica da criança ou jovem deve comunicá-lo ao responsável ou à direção da escola.

Além disso, deve ser permitida a mudança de nome ou “género autoatribuído” dos jovens em “processo de transição social de género” nos documentos administrativos e nos registos autobiográficos e fichas de registo de avaliação, desde que respeitem “a vontade expressa dos pais, encarregados de educação ou representantes legais da criança ou jovem”. E deve ser esse o nome usado nas atividades escolares e extraescolares.

Nessas atividades, quando forem diferenciadas por sexo, as escolas também devem permitir que se tome em consideração o género autoatribuído por cada criança ou jovem. E devem ser respeitadas as suas opções quanto à roupa que quiserem vestir, caso haja uniforme.

Propostas estabelecem que crianças e jovens em processo de transição "social" (não clínico) podem pedir para ser tratadas pelo nome e sexo com que se identificam, incluindo nas fichas de avaliação e atividades de grupo, e escolher o uniforme correspondente

Estas disposições são pacíficas?

Não. Da última vez que o assunto foi discutido, em 2018, PSD e CDS votaram contra a proposta. Os sociais-democratas queriam que todas as pessoas — não só os menores — apresentassem um documento com uma avaliação médica “atestando a existência de desconformidade entre a identidade de género e o sexo com que nasceu, bem como a ausência de condição psíquica que possa comprometer a expressão da vontade de forma livre e esclarecida”.

A esquerda discordava, acusando o PSD de defender uma abordagem “patologizante”, e acedeu a alterar no diploma apenas na parte que o Presidente da República tinha exigido, passando a ser necessária a apresentação de um relatório de qualquer médico ou psicólogo em que se garantisse que o menor (entre os 16 e 18 anos) que pedia a mudança de género no registo civil estava a fazê-lo de forma esclarecida e informada, mas sem menções a diagnósticos médicos.

O argumento da esquerda segue o caminho apontado pela Organização Mundial de Saúde, que em 2018 deixou de considerar a transexualidade um transtorno mental, retirando-a da lista da Classificação Internacional de Doenças, que não era alterada há 28 anos.

Há anos que os ativistas LBGT ou instituições como o Parlamento Europeu pediam que deixasse de ser considerada uma doença e passasse a ser simplesmente uma condição sexual — uma condição em que a pessoa pode, ainda assim, obter ajuda médica se precisar.

Na altura, o diretor do departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da OMS, Shekhar Sazena, aqui citado pelo El País, explicava o raciocínio: “Queremos que as pessoas que sofrem dessas condições possam obter assistência médica quando a necessitarem”.

Mas a transexualidade deixou de ser considerada uma doença “porque não há evidências de que uma pessoa com um transtorno de identidade de género deva ter automaticamente um transtorno mental, embora aconteça muito frequentemente seja acompanhado de ansiedade ou depressão”.

O guia “para famílias de pessoas trans”, desenvolvido pela AMPLOS – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género e publicado em outubro de 2021 no site da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, explica que a essa incongruência entre o “sexo atribuído à nascença” e o género com que a pessoa se identifica, designado como “disforia de género”, pode ter como efeito secundário o recurso a cuidados de saúde mental, em virtude do “sofrimento causado pela incompreensão e dificuldades de respeito social das pessoas trans”, ou outros, “como endocrinológicos ou cirúrgicos, no sentido de adequarem o seu corpo à sua identidade de género”.

Ou seja: não é preciso diagnóstico clínico, mas é possível que as complicações e ramificações associadas a esta condição levem a cuidados médicos; e não há uma necessidade automática de uma pessoa transgénero passar por procedimentos cirúrgicos. Como acrescenta o mesmo guia, “algumas pessoas trans podem querer realizar tratamentos médicos para adequar o seu corpo ao seu género (tratamentos hormonais e/ou cirúrgicos)”, mas isso não acontece em todos os casos.

Mas o facto de não haver acompanhamento médico previsto nas propostas de PS e PAN não é pacífico. Se em 2018 o PSD e o CDS já criticavam este ponto, em 2022 o Chega faz os mesmos ataques ao projeto e à “exclusão de médicos e profissionais de saúde” do processo, particularmente quando estão em causa crianças.

Ao Observador, a deputada do Chega Rita Matias ironiza, em referência às ações de formação previstas para as escolas no projeto do PAN e do Bloco, com o acompanhamento “por sociólogos, politólogos, associações LGBT e ativistas, que não têm competência para fazer este diagnóstico, em vez de profissionais médicos”.

Em 2018, a Organização Mundial de Saúde deixou de considerar a transexualidade um transtorno mental, retirando-a da lista da Classificação Internacional de Doenças. A falta de diagnóstico e acompanhamento médico é criticada à direita

Quais são as principais críticas às propostas?

Sobre o regresso da lei à discussão parlamentar, André Ventura foi taxativo, no Twitter: “Ou acabamos com estes disparates rápido, ou eles acabarão com os nossos valores. A ideologia de género mata!”. Mas tanto o Chega como, pelo menos, parte do PSD (a julgar pelo grupo de deputados que enviou na altura o despacho ao TC) têm mais críticas a tecer sobre o assunto — tanto formais como de conteúdo.

Em declarações ao Observador, a deputada do Chega Rita Matias defende que com isto se está a legislar para uma minoria muito reduzida, “impondo à maioria” um potencial “espaço de desconforto, ou situações a evitar”, além de a alínea sobre as casas de banho poder “potenciar” o perigo de situações de abuso em contexto escolar.

A deputada adianta, aliás, ao Observador que o Chega lançará até esta quinta-feira uma plataforma de denúncias destas situações, “para os pais poderem deixar relatos” de abusos. Até as crianças e jovens que estão a passar pelo processo de transição podem ser, elas próprias, alvo de bullying pelos colegas quando frequentarem outras casas de banho, antecipa a mesma deputada, criticando que esses menores não sejam acompanhados por equipas médicas.

Outro perigo, refere, é o das “situações de injustiça” que a lei pode criar nas atividades escolares, permitindo que “um rapaz, se quiser ter melhor nota numa atividade física e por brincadeira disser que não se identifica como homem, possa ser avaliado de forma injusta” (isto é, com os critérios físicos aplicados a uma rapariga). “A maioria do Parlamento não representa a maioria dos pais e das mães”, atira Matias.

O ex-deputado social-democrata e constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia já tinha apontado, em declarações ao Sol, problemas formais que vê neste novo projeto, frisando que as inconstitucionalidades vão continuar por ser uma “lei incompleta ou quase uma lei-quadro, que dá vários cheques em branco às autoridades administrativas” em situações que têm a ver com os direitos fundamentais dos jovens.

Além disso, para o constitucionalista a lei transfere para as escolas responsabilidades que são “em primeiro lugar direito e dever da família”. Mais uma vez: o Observador pediu uma reação oficial ao grupo parlamentar do PSD, que no passado liderou o combate ao diploma, mas não obteve resposta em tempo útil.

Primeiro dia dos deputados da XV Legislatura na Assembleia da República. Leitura do Relatório da Comissão Eventual de Verificação de Poderes dos Deputados Eleitos e Eleição do presidente da Assembleia da República. Rita Matias do Chega Lisboa, 29 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Deputada do Chega Rita Matias garante que bullying contra crianças e jovens trans até pode intensificar-se

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

E o que respondem os proponentes?

Quanto às críticas formais, Isabel Moreira — também constitucionalista — responde que não vê “nada de vago” na lei e que há muitos outros diplomas em vigor que, prevendo obrigações para as escolas na proteção dos direitos de crianças e jovens, têm “este tipo de elaboração jurídica”. Para mais, defende a deputada, “há coisas que não cabe ao legislador definir” — “não vai ser a escola a decidir o que cada criança é”.

De resto, para a deputada, as críticas que se prendem com o conteúdo da lei ou com os problemas da “ideologia de género” resumem-se a “ruído”, o mesmo que ouviu durante o processo legislativo de 2018, relativo à autodeterminação da identidade de género no geral, ou durante a despenalização do aborto.

“As mulheres e grupos minoritários estão infelizmente habituados a sofrer com um discurso caricatural”, atira. “É um discurso de ódio disfarçado, que gera fantasmas, medo, terror” e que, para o PS, está relacionado com os mesmos movimentos que apoiaram, lá fora, Donald Trump ou Jair Bolsonaro. “É triste que vejam vantagem em surfar onda mediática do ódio”, remata.

Do lado do Bloco, Fabíola Cardoso defende os projetos dizendo que servirão para criar um respaldo legal à própria escola, evitando “deixar os direitos destes jovens à opinião e à boa vontade de quem está a lidar com estas situações”.

“Não podemos assobiar para o lado quando há jovens para quem todos os dias ir para a escola é uma tortura. Muitas vezes a direção até tem uma atitude correta, mas até é o professor A ou B que se recusa a tratar o jovem pelo nome social [o nome que escolheu] ou permite que seja gozado e humilhado”, aponta.

Regras como as das casas de banho podem potenciar situações de abuso sexual, diz Rita Matias, do Chega. "É um discurso de ódio disfarçado, que gera fantasmas, medo, terror", responde Isabel Moreira

Quando é que isto vai ser aprovado e qual será o efeito prático?

Para já, o PAN tem estado à espera desde março de que o PS agende a discussão, explica fonte oficial do partido ao Observador. Mas dado que os socialistas só apresentaram o seu projeto há poucas semanas, o diploma vai ficar em espera, no Parlamento, pelo fim do processo orçamental, sendo que ainda falta a votação do Orçamento na generalidade, a fase de especialidade e a votação final global, a 25 de novembro. Só depois disso é que os projetos poderão ser discutidos e votados.

Quanto aos efeitos práticos, na verdade, não deverão ser muito diferentes do que acontecia até ao ano passado, uma vez que o despacho vigorou até ser chumbado pelo TC em junho de 2021.

Então é previsível que o Tribunal Constitucional volte a chumbar estes projetos?

Só se desta vez apresentar uma argumentação diferente. A fiscalização do despacho foi pedida ao TC por um grupo de deputados do PSD e do CDS e baseava-se em dois tipos de argumentos: os que diziam respeito ao conteúdo da lei e os formais.

No primeiro caso, os deputados argumentavam que a lei promoveria a chamada “ideologia de género” e uma “programação ideológica do ensino pelo Estado e da liberdade de programação do ensino particular”. Sobre isto, o tribunal não se pronunciaria, fazendo questão de assegurar que o chumbo deixava “intocada a garantia do direito à identidade de género e de expressão de género e a proibição de discriminação no sistema educativo”.

Mas o tribunal daria razão aos deputados nas críticas formais. O chumbo baseou-se, assim, no princípio da “reserva de lei parlamentar”: a lei teria de ser regulamentada pelos deputados, e não pelo Governo, por tratar de matérias de “direitos, liberdades e garantias”, como está previsto na Constituição.

Para mais, “quanto maior a novidade política ou o caráter polémico do objeto de regulação”, maior a necessidade de privilegiar o pluralismo e o debate político, argumentava o tribunal. Ou seja, o despacho não serviria. É a esse obstáculo que PS, BE e PAN querem agora responder, vertendo o conteúdo do antigo despacho agora num projeto de lei próprio.

Mas pode haver mais problemas à vista para os proponentes: a transformação do despacho em projeto de lei resolve este obstáculo, mas o tribunal também apontava para uma certa indeterminação do texto, por usar medidas “exemplificativas” ou recorrer ao advérbio “nomeadamente”, deixando para cada escola uma margem de decisão “largamente discricionária”.

E não é garantido que o problema não se volte a colocar agora, uma vez que não há grande concretização em relação aos passos que devem ser seguidos para se considerar que uma criança ou jovem está a passar por um processo de “transição social de identidade”, conceito incluído na lei de 2018, e que a escola fica com bastante margem para gerir a forma como o processo se desenrola.

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