O Tribunal Constitucional decidiu chumbar duas normas que estabeleciam medidas para promover o direito à identidade de género nas escolas, dando assim razão ao grupo de 86 deputados do PSD, CDS e PS que tinham pedido a fiscalização sucessiva da lei, em 2019. Embora não se pronuncie sobre a substância das normas em si, o TC acredita que os argumentos formais invocados pelos deputados — que explicaram que uma lei sobre este tema, assim como a sua regulamentação, deve ser elaborada pela Assembleia da República e não pelo Governo — são válidos e decidiu travar as duas normas em causa.

As normas que o tribunal decidiu travar, que fazem parte do artigo 12.º da lei n.º 38/2018, determinavam que as escolas de todo o sistema de ensino promovessem “o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas”. As escolas teriam, assim, de adotar medidas para prevenir “discriminação” em função de género, detetar situações de risco para crianças e jovens com uma identidade de género “que não se identificasse com o sexo atribuído à nascença” e assegurar condições para proteger a “expressão de género” e os processos de “transição social de identidade” de crianças e jovens.

Como o Tribunal Constitucional recorda no acórdão que data desta terça-feira, os deputados tinham argumentado que estava em causa uma “programação ideológica do ensino pelo Estado e da liberdade de programação do ensino particular”, por acreditarem que a lei nestes moldes promovia a chamada “ideologia de género”. Sobre este argumento, os magistrados não se pronunciaram, uma vez que não analisaram a substância destas normas, e fizeram questão de referir, em comunicado, que “esta decisão deixa intocada a garantia do direito à identidade de género e de expressão de género e a proibição de discriminação no sistema educativo”.

O segundo argumento dos deputados passava por defender os princípios da “precisão e determinabilidade das leis” e da “reserva de lei parlamentar”, ou seja, o princípio segundo o qual a lei teria de ser feita pelos deputados, e não pelo Governo.

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Ora é neste argumento que o tribunal dá razão aos deputados, por considerar que esta é “inequivocamente uma lei em matéria de “direitos, liberdades e garantias” e por isso se torna “objeto da reserva de competência legislativa parlamentar”, não podendo, como acontece nestas normas, reenviar para “regulamento administrativo” matérias que têm de ser decididas pelo Parlamento. O artigo 165 da Constituição define precisamente a lista de assuntos que só podem ser legislados pelos deputados — as matérias de “direitos, liberdades e garantias” aparecem logo em segundo lugar de uma longa lista.

Quanto a isto, os juízes não podiam ser mais claros: “Na matéria dos direitos liberdades e garantias, a reserva de lei é total, abrangendo todos os aspetos do regime, pelo que apenas se admite a edição de regulamentos de execução”, explica o comunicado. “Ora, o Tribunal entendeu que as normas em causa ficam muito aquém desse nível de exigência quanto à extensão da regulação legal”.

E há outros fatores que não deixam dúvidas aos magistrados, especificados no acórdão: por um lado, “a reserva de lei é mais exigente quando a matéria reservada integra o objeto principal do diploma do que quando se situa na sua periferia ou é atingida de forma acidental”; ou seja, a questão dos direitos, liberdades e garantias é mesmo a matéria central, e não lateral, nesta lei. Por outro lado, “quanto maior a novidade política ou o carácter polémico do objeto de regulação”, mais é preciso previlegiar o pluralismo político e o debate próprios do Parlamento.

No acórdão, o tribunal aponta ainda a indeterminação da própria lei — usa medidas “exemplificativas”, recorrendo ao advérbio “nomeadamente”, o que “evidencia o caráter aberto da regulação legal”; usa conceitos “muito vagos” e atribui à regulamentação posterior uma margem de decisao “largamente discricionária”, sobre “medidas” ou “mecanismos” que ficam por definir.

Além disso, o diploma “não contém nenhuma definição” de conceitos como identidade de género ou expressão de género. O texto acrescenta: “se a lei ocupasse todo o espaço de regulação que lhe está reservado em matéria de direitos, liberdades e garantias, estas normas administrativas de carácter inovatório seriam ilegais”. Mas, como é vaga, “deixando uma larga margem ao poder administrativo para o qual reenvia a sua regulamentação, é inevitável concluir que o vício é da própria lei, que fica aquém do que constitucionalmente se lhe encontra reservado”.

Juízes apontados pelo PS discordam

Mas o acórdão esteve longe de ser consensual. O texto inclui as declarações de voto vencido dos juízes que discordaram e que apontam vários tipos de problemas e discordâncias.

Por um lado, os juízes Fernando Vaz Ventura, Mariana Canotilho e Assunção Raimundo — todos indicados pelo PS — enunciam uma série de argumentos contrários aos do acórdão, mostrando preocupação com o que esta decisão poderá significar para o futuro. A necessidade de intervenção do Parlamento, argumentam, para normas sobre vestuário e casas de banho escolares é “excessiva”. E avisam: “Se é esta a nova posição do Tribunal Constitucional – isto é, se este Acórdão define uma nova leitura, mais estrita, sobre os limites da reserva de lei – haverá que tomá-la em conta, dela extraindo as devidas consequências para o futuro” — porque haverá casos “significativos” em que esta postura, se passar a ser aplicada de forma rígida, “invalidará” decisões administrativas.

Igualmente apontado pelo PS, José Abrantes entende que estas normas “não deveriam ter sido declaradas inconstitucionais” porque tratam apenas de “promover as condições para que os indivíduos que apresentem uma inconsistência entre o género manifestado e o sexo biológico possam exercer o seu direito a ver reconhecida a identidade sexual com que se identificam”, sem querer impor “qualquer conceção sobre o modo e causas de criação do género”. Ou seja, para este juiz, “as normas em crise não se projetam sobre a liberdade de ensino”, até porque “a neutralidade do Estado” não deve impedir a transmissão de valores éticos fundamentais, como a dignidade humana e a igualdade.

Pode ainda ler-se mais uma declaração de voto, neste caso do juiz Lino Rodrigues Ribeiro (independente, cooptado pelos seus pares), que o Estado está vinculado aos direitos fundamentais, e que no âmbito do dever de proteger os alunos “com ingruência de género” pode fazê-lo, desde que não restrinja, ao mesmo tempo, direitos dos outros. Por isso, o juiz considera a “conceção de reserva de lei parlamentar” usada neste acórdão demasiado “rígida”.

No pedido de fiscalização dirigido ao tribunal, o grupo de deputados tinha argumentado que a intenção da lei seria usar conteúdos “não permissíveis” na escola com um propósito “doutrinário e ideológico”, além de verificarem uma “latitude” exagerada na lei que daria ao Governo uma liberdade de movimentos demasiado alargada. Os deputados Miguel Morgado, Nilza Sena e Bruno Vitorino eram os responsáveis pela redação do texto.