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Conceptual, figurativa, realista, orgânica, abstrata, surrealista, humorística, irónica, por vezes disciplinada e utilitária — a cerâmica não é só uma gaveta dentro das artes decorativas, é ela própria um universo plural habitado por correntes, linguagens e abordagens, tal como a própria arte o é. Portugal conhece cada uma destas faces, do naturalismo bordaliano aplicado à mesa de todos os dias às obras de autores como Sofia Beça, Ricardo Casimiro e Bela Silva, que encontraram em museus e galerias o seu habitat.
Para muitos, foi e continua a ser um parente pobre das belas-artes, hierarquia implacável que não hesita em enaltecer figuras mais nobres, como é o caso da pintura e da escultura. Há 20 anos, o gosto pela cerâmica, enquanto ofício e enquanto investimento, parecia adormecido. Quem o cutucou de perto foram os autodidatas, gente acabada de sair dos cursos de design, de fotografia, de desenho e de artes tidas como maiores. Nada fazia prever que, entre a travessa e a terrina e os tesouros dos colecionadores de arte, coubesse tanta coisa.
Fábricas históricas como a Vista Alegre e a Bordallo Pinheiro souberam atualizar-se. A primeira cruzou o saber fazer centenário com o talento de artistas e designers de todo o mundo, das colaborações com a Christian Lacroix à série “Artistas & Designers”. A segunda deu-se a interpretar por autores deste e do outro lado do Atlântico, primeiro com o projeto “7 Bordallianos ao Jantar”, em 2011, e, dois anos depois, com “Bordallianos do Brasil”, ambos exibidos em exposições, no MUDE e na Gulbenkian, respetivamente. Décadas depois, afirmaram-se artisticamente relevantes.
Decorativa por natureza, a cerâmica também se reinventou nas mãos de pequenos ateliers, na escala que os seus fornos foram permitindo. Hoje, além de peças de autor, trabalham para responder a encomendas megalómanas — séries para galerias, peças desenhadas à medida para chefs com estrelas Michelin, desenhos engenhosos de designers e arquitetos e colaborações com outros artistas. Através deste suporte, rico em plasticidade, podem fazer o que quiserem: roupa interior, dejetos decorativos, pastelaria francesa, fruta da época e pequenos monstros alienígenas. Quando é preciso, a utilidade sai da equação. Destas mãos saem coisas bonitas e isso basta.
A arte de atirar o barro à parede
O atelier de Vitor Reis é aquilo a que podemos chamar um caos organizado. Verdade seja dita, é maior a organização do que o caos, com uma única exceção, a prateleira do refugo. Está cheia de peças nas quais não se revê, cerâmicas empoeiradas — como estão quase todas devido as preceitos naturais de trabalhar esta matéria-prima — e ideias cuja materialização não encheu as medidas ao autor. O espaço é um bem precioso e para preservá-lo Vitor criou o “Atirar o barro à parede”, um jogo simples em que põe amigos e convidados, em festas e inaugurações, a fazer pontaria a um quadro composto por números. Cada um corresponde a uma peça (das que já deram tudo o que tinham a dar) e se o barro se aguentar é sinal de que um sortudo ou uma sortuda vão voltar para casa com uma bela cerâmica debaixo do braço.
Há seis anos, voltou para as Caldas da Rainha, de onde é natural. As idas e vindas tornaram-se pouco comportáveis, o facto de manter dois empregos não ajudava e o espaço de trabalho na capital saía caro. Deixou Lisboa e assentou aqui, neste atelier que conseguiu através da câmara. Vitor tem um forno, quilos e quilos de barro e faz peças para galerias, lojas e restaurantes. Definir o que faz parece fácil, mas nem o próprio tem assim tantas certezas. “Nem eu sei muito bem o que sou, mas sim, ceramista soa bem. Sempre tive este lado muito irónico, muito cómico, mas nunca o tinha considerado como uma possibilidade profissional ou que pudesse materializá-lo em alguma coisa. Comecei com a instalação, mas passei depressa para a cerâmica porque percebi que podia pôr lá tudo — o texto, a escultura… Quando reparei, estava mesmo a fazer o que queria”, explica Vitor, enquanto faz as honras do atelier.
As peças que faz distinguem-no dos restantes ceramistas do país. Muitas não têm utilidade, como é o caso dos cocós e cagalhotos, que se tornaram numa espécie de imagem de marca do autor. Já tiveram asas, já foram dourados (por oposição ao castanho original), alguns formam um comboio de dejetos reluzentes, outros, com tamanhos diferentes, formam uma matriosca fecal. Como em quase tudo, o impulso criativo foi rápido e intuitivo. “Foram as primeiras peças de todas. Às vezes, perguntam-me porque é que fiz isto em barro. Acho a pergunta quase tão parva como a minha resposta. O que é que posso dizer? É a cena do impulso, do imediato. Olho para um bocado de barro e ele já é isto… é castanho e tem esta forma. Comecei pelo mais óbvio”, explica.
Mas há exercícios menos literais e até incursões à secção dos utilitários: um saleiro e um pimenteiro com a cara de Michael Jackson, as pernas de Obelix em jeito de tigelinha, uma jarra em forma de camisola, catos, nuvens, relâmpagos e tijolos. O mesmo humor que espreita nas peças de Vitor Reis esconde-se noutras zonas do atelier. “MoMA mas não abuses”, “Com duas letrinhas apenas se escreve a palavra rabo” e “Ser artista em Portugal = Meter os tomates numa gaiola e esperar que deem flor” são só uma amostra dos cartazes mirabolantes que decoram o atelier. Da bancada de trabalho saem puros desabafos, moldados, cozidos, pintados e vidrados de acordo com a criatividade do autor. Noutras vezes, as peças são encomendadas, como o tentáculo de polvo que desenhou para o Ocean de Hans Neuner, ou as novas peças que está a ultimar e que serão postas à venda na galeria Underdogs, em Lisboa.
Perdida entre a secção de acabamentos e a tal prateleira do refugo, está uma peça única, um volume fálico coberto por um pano branco, tudo feito em cerâmica. “O meu pai dizia-me que, antes do 25 de abril, as garrafas das Caldas eram vendiam na praça tapadas com um pano. Pois bem, voltei a tapá-las”, resume. E pensar que tudo começou num contexto bem mais católico. Vitor recorda a primeira aventura no mundo da cerâmica, um convite para desenhar uma figura sacra, em 2011, e que acabou por aproximá-lo da tradição familiar. “Tinha uns amigos de arquitetura que estavam a renovar uma igreja e que me pediram um trabalho em pedra ou em madeira. Os orçamentos excediam o que tinham em mente, em custo e em tempo. Venho de uma família de oleiros, por isso tenho um irmão que já fazia cerâmica há mais tempo. Eu nunca quis nada com aquilo, mas sabia que era possível fazer mais rápido e com menos dinheiro. Fui falar com ele, ele aceitou e correu também que até trabalhámos para mais igrejas na altura”, conta.
Na cerâmica, Vitor encontrou um novo suporte para as suas ideias, quase tão imediato como ter um lápis e um papel à frente. “Vim para o atelier, tinha barro e ao fim de umas semanas já tinha feito algumas peças. Comecei a olhar para elas e a pensar que tinha gostado muito daquilo. Acontecia-me muito ter ideias e não conseguir materializá-las, começar a duvidar delas e a esquecê-las. A cerâmica foi boa por isso, agora faço e depois penso. E faço quase tudo o que penso”, reflete. Atualmente, divide-se entre o atelier, as aulas de cerâmica que dá na ESAD (Escola Superior de Artes e Design) e alguns trabalhos na área da cenografia. Enquanto aluno, foi percebendo que a arte do barro não era vista como nobre. “Sempre percebi isso, até porque vim das artes plásticas. Mas foi outras das coisas que me agradou. Pensava: ‘Será que vou entrar na arte contemporânea pela porta dos fundos?’. Agora, como professor, fala num movimento que tende a misturar as coisas. Mais do que hierarquizar as artes, interessa fundi-las e adaptá-las à linguagem de cada autor. A de Vitor há-de continuar por aqui, a brincar com o óbvio.
Caulino: a cerâmica que se come
O charme natural deste atelier faz com que o entra e sai seja inevitável. Ali, a caminho da Sé de Lisboa, entra de tudo, do alfacinha curioso ao turista asiático. E o melhor nem está na montra, é preciso estar lá dentro para encontrar os jarrões irregulares, ricos em cor, o grande painel montado pétala e pétala ou a vitrine da pastelaria onde nem os bolos de arroz ficaram de fora, em cerâmica, claro. O Caulino abriu em 2006, ou seja, há pouco mais de 12 anos, contas que ainda fazem Cátia Pessoa arregalar os olhos. Dos três fundadores, foi a que ficou até hoje e está para continuar. A longevidade à frente deste espaço não é em vão. Embora tenha chegado acompanhada, talvez esta seja, desde o primeiro dia, a sua empreitada de vida.
“Foi muito difícil no início, não se passava nada na cidade. Saí do ArCo [Centro de Arte e Comunicação Visual], precisava de um sítio para trabalhar e este foi logo o meu sítio”, recorda Cátia, ceramista e proprietária do atelier Caulino. Na altura, chegou aqui através de um anúncio de jornal — “como antigamente ainda se via” — e foi o velho cliché do amor à primeira vista, que, veio o futuro a provar, trazia a sua dose de teimosia. “O espaço era tão bonito. Nessa altura, nem sequer tinha trabalho, arranjei um numa semana. Fui trabalhar à noite para um bar para pagar a renda do atelier. Mas disse logo que sim, apesar de nem saber como ia pagá-lo”, conta.
Nas palavras de Cátia, o caminho que iniciou nesse dia parece obedecer aos mesmos preceitos rígidos que o próprio barro exige: “tracei-o, tinha de seguir com isto”. O momento era de crise e a explosão do turismo ainda ia esperar mais uns anos, mas a ceramista, que antes de o ser foi modelo e assistente de um fotógrafo e ainda completou um curso de Design de Interiores, não largou a sua bancada de trabalho. “Na altura, não via este sítio como um espaço comercial, nem como um negócio”, relembra. Ainda assim, o número 28 da Rua de São Mamede deu para tudo: forno, bancada, sala de arrumações e frente de loja, onde a produção de artistas e alunos da casa veem a luz do dia. “Ainda hoje, gosto mesmo é do cheiro do trabalho, do atelier, do cheiro da terra. Traz-me memórias de infância felizes. Acho que por isso é que, quando comecei a fazer cerâmica, me senti bem, senti-me em casa. Fez-me lembrar as férias no campo com os meus avós”, acrescenta.
Anos depois, o projeto de viver da cerâmica tornou-se realidade. Acabado de chegar ao Tavares, José Avillez bateu à porta do Caulino e fez a primeira encomenda. “Eram umas pedras onde queria servir entradas. Faziam-lhe lembrar as da praia, no Guincho, onde cresceu. E eu fiz-lhe um conjunto de pedras. Ainda hoje, ele sabe muito bem o que quer. Vem aqui, desenha e faz a peça em cinco minutos”, descreve. Depois do primeiro trabalho vieram outros. Em 2016, a empreitada ocupou o verão inteiro. Para o Bairro do Avillez, o atelier produziu dezenas de peças, as que hoje se vêem suspensas no teto e nas paredes do restaurante do chef. Aí, o realismo foi rei, bem ao estilo do mestre Bordalo Pinheiro. Peixes, carnes, frutas, legumes, pães e ovos — toda a cozinha mediterrânica reproduzida em peças de cerâmica. Foi o maior trabalho, apenas comparável aos pratos produzidos para abertura do Belcanto, em 2012.
O trabalhos para o chef rapidamente de tornaram no principal cartão-de-visita do atelier, embora o público estrangeiro tenha começado a chegar e a contribuir para a valorização da cultura portuguesa além e aquém-fronteiras. “Os de fora dão valor primeiro, depois damos nós. Gostamos muito mais de nós porque nos vemos na maneira como recebemos os de fora. Vemo-nos nos outros e acho que até nos conhecemos melhor agora”. O mesmo se aplica à cerâmica, sobretudo à cerâmica que andou meio esquecida durante anos. Cátia fala num movimento de recuperação da tradição.
Se, por um lado, hoje valorizamos mais a arte, também o momento de sujar as mãos ganhou mais adeptos. Atualmente, a ceramista trabalha com mais três pessoas no atelier: Diana Barbosa, Vincent Richeux, biólogo de formação e jornalista, e Marisa Ferra que, antes da cerâmica, explorou o design de moda. A par das encomendas que recebem e do trabalho autoral desenvolvido por cada um — este varia entre objetos utilitários e peças meramente decorativas –, são as aulas que dominam a agenda do Caulino. Os e-mails chegam todos os dias, de fora do país e até da Europa, e o atelier já tem sete horários por semana. Sim, há quem programe uma visita a Lisboa, com direito a aulas de cerâmica no centro da cidade. “As pessoas estão fartas do trabalho industrial, das peças que toda a gente tem e da produção em massa. Depois, com esta vida louca que temos, é tudo tão rápido que as pessoas sentem a necessidade de abrandar um bocadinho. Aqui sentem-se bem, estão descontraídas”, resume.
Os devaneios criativos são sempre bem-vindos e, mais uma vez, nem todas as peças têm de ter uma função. Num dos móveis antigos que abrilhanta a zona de exposição do atelier está o busto de um rato, pesado e branco. Podia ser mais imponente, caso a figura não fosse tão caricata. “Foi uma estupidez que fiz”, desabafa Cátia, relembrando que a peça data dos primeiros meses do atelier. A personagem acumula, portanto, 12 anos. Nunca foi vendida. Dentro de uma vitrine, a pastelaria fina de Vincent. Há para todos os gostos e níveis de doçura: éclairs que não poupam no recheio, palmiers, tarteletes, donuts e os famosos bolos de arroz, todos eles incrivelmente realistas. Ainda assim, não convém cair na tentação de provar.
Sedimento: deste forno pode sair tudo (até maminhas)
A provar que a cerâmica lisboeta está de boa saúde e é altamente recomendável, Maud Téphany e Úrsula Duarte abriram um novo atelier, no verão de 2017. A primeira chegou com formação em belas-artes e em web design e, depois de experiências nas áreas da pintura, da fotografia e da gravura, decidiu experimentar a cerâmica, precisamente, numa das aulas do atelier Caulino. “Passado pouco tempo, já não conseguia dormir à noite. Estava sempre a pensar em novas peças, levantava-me e pegava no barro. Entretanto, a Cátia [Pessoa] precisava de ajuda e perguntou-me se queria trabalhar com ela. Foi aí que troquei os computadores pela cerâmica”, recorda Maud, que há 12 anos deixou a Bretanha e mudou-se para Lisboa.
O atelier Caulino foi uma rampa de lançamento para a ceramista, mas também o local onde conheceu Úrsula, uma arquiteta que se aborreceu por nunca ver nada a ganhar forma. “Passava os dias a desenhar, nunca ia às obras, não via nada construído. Em dois meses, ter alguma coisa palpável parecia-me simplesmente genial”, explica Úrsula Duarte. Aprendeu a trabalhar o barro, desenvolveu um estilo próprio e viciou-se. Tal como Maud, foi convidada a integrar a equipa do atelier onde entrou como aluna.
No novo espaço, foi amor à primeira vista. Amplo e com metros quadrados suficientes para ter várias estações de trabalho, era o lugar ideal para implementar um novo conceito de atelier de cerâmica — além de workshops e das bancadas das proprietárias, existem até hoje zonas alugadas ao mês, o que faz do Sedimento uma espécie de co-work exclusivamente vocacionado para a cerâmica. Para arrancar com o projeto, as duas sócias recorreram ainda ao crowdfunding. O forno, o equipamento mais caro que encontramos dentro de um atelier deste género, é resultado da contribuição de dezenas de amigos, através da plataforma portuguesa Boa Boa. “Em troca da ajuda das pessoas, demos aulas. Além de ganharmos os primeiros alunos, as pessoas começaram a conhecer o projeto e começaram a divulgá-lo, mesmo antes de abrir”, conta Úrsula.
As aulas são sustento do atelier. Há cinco por semana, embora já pensem a adicionar um sexto horário para conseguir escoar as cerca de 15 pessoas que estão em fila de espera. “Há cada vez mais ateliers de cerâmica. As pessoas vêm, nem que seja só duas horas, e experimentam fazer cerâmica, assim como quem experimenta uma aula de yoga. Querem voltar a fazer algo com as mãos e a verdade é que, enquanto estão aqui, perdem a noção do tempo”, explica Maud.
Úrsula é pragmática, vestígios da formação em arquitetura. Maud nutre uma especial simpatia por peças inúteis. “Na vida, há coisas que não servem para nada, têm apenas forma”, refere. “Estou sempre a tentar dar uma utilidade às peças da Maud e ela diz: ‘Pára, Úrsula. Não serve para nada’. Ainda assim, há um entendimento a meio caminho, sobretudo quando trabalham juntas para responder a encomendas. Entre os principais clientes está o chef Vasco Coelho Santos e o seu Euskalduna Studio, no Porto. Do fine dining para um novo turismo de habitação no Alentejo, por estes dias, a dupla produz também uma coleção de candeeiros para um projeto do estúdio Anahory Almeida.
Mas o trabalho colaborativo não fica por aqui. Disposto a receber residências artísticas, no ano passado, o Sedimento abriu a porta a Maria Imaginário, pseudónimo artístico de Edna Costa. Depois da pintura, mural e em tela, e de ter explorado a arte a três dimensões através da instalação, a artista quis aventurar-se no mundo da cerâmica e procurou ajuda. “Já andava a pensar nisto há dois ou três anos. Sempre quis que as minhas peças também tivessem tridimensionalidade e a cerâmica pareceu-me ideal para começar. Além de ser um suporte bastante portátil também torna as peças mais acessíveis”, explica Edna.
O processo criativo foi de Maria Imaginário, que desde logo soube que queria fazer uma série de maminhas animadas, o apoio na execução foi dado pelas duas ceramistas. “É um desafio para nós porque implica entrar no mundo deles”, acrescenta Maud. Foram necessárias 40 maminhas (testes) para chegar à peça final. Os pigmentos têm de ser pesados grama a grama, as cores finais testadas vezes sem conta. No final, ficou uma série limitada de dez peças, todas diferentes umas das outras. Foram vendidas num abrir e fechar de olhos, depois de terem passado pela exposição “Marie Antoinette Says Au Revoir!” na Travessa da Ermida, em Belém. O sucesso da primeira edição motivou a artista a voltar ao atelier. Já pensa em chupa-chupas fálicos e num coração cheio de personalidade. Elas abrem-lhe as portas, enquanto confessam aquela que é a primeira resolução para 2019: ter mais um forno.
De Israel para Chaves: a descoberta de uma arte comum
Marta Malheiro nasceu e cresceu em Portugal, mas foi preciso mudar de continente para descobrir os encantos da cerâmica. Há quase quatro anos, foi para Israel para trabalhar como voluntária e acabou no atelier da tia do namorado, em Beersheva, que lhe ensinou os preceitos básicos. Um ano e meio depois, voltou à terra natal, Chaves. O bichinho tinha lá ficado e fê-la voltar a percorrer uns quantos quilómetros, menos desta vez. Em Montemor-o-Novo, no Alentejo, fez um workshop. Mais do que moldar, cozer, pintar e vidrar, aprendeu a tratar o barro, o processo que antecede o início de qualquer peça.
Hoje, de volta à cidade fronteiriça, é ela quem extrai a sua própria matéria-prima. “Aprendi a fazer copos e taças, mas ia sempre adicionando um detalhe de que gostava. Pegava num bocadinho de barro e começava a moldar sem plano. Sabia que queria algo criativo e que não era bem o design gráfico [a área de formação]. A cerâmica foi um clique”, conta Marta. O atelier fica dentro de casa e é onde passa a maior parte do tempo, ao final do dia e nos fins de semana. Durante o dia continua a trabalhar como designer gráfica. Diz que está em fase de experimentação — escavar o barro, deixá-lo secar, pôr água, deixar secar novamente e esperar que ganhe a consistência perfeita para ser trabalhado. Depois, é um jogo de mãos e dedos para ver no que dá.
“É como tirar fotos com uma máquina analógica e depois revelar. É disso que gosto, de processos lentos”, afirma Marta. Em comum com outros ceramistas tem esta espécie de acaso feliz em que, quando menos esperava, tropeçou na cerâmica. Passar ao lado de peças utilitárias faz parte da “experimentação” de que fala e, apesar de não ter muitos anos disto, já encontrou aquela que, para já, é a sua imagem de marca: os pezinhos que são vasos. “As pessoas adoram o pé — é a planta do pé –, mas também há quem tenha reações esquisitas. Acho que a algumas pessoas faz lembrar aquelas peças de Fátima em cera”, continua. O forno é pequeno, por isso, para já, as peças vão continuar nesta escala: pequeninas.
Marta tem 29 anos e procura apoio financeiro para o seu pequeno (em todos os sentidos) negócio. O último empurrão foi ter ficado em terceiro lugar num concurso de ideias, atribuído na região do Alto Tâmega. A atribuição de um espaço para montar atelier, ter peças à venda e organizar workshops é o próximo passo. Até lá, anda a fazer “coisas mais esquisitas”. “Peças que não se sabe bem o que são, mas, para mim, faz sentido esta abordagem mais figurativa. Sei que, normalmente, as pessoas compram coisas úteis, mas não quero render-me. O ideal é conseguir juntar as duas coisas”, conclui. Enquanto o processo se desenrola, Marta vende online, através da plataforma Tictail e do Instagram. Este não é só o pequeno atelier de Marta Malheiro, chama-se Barro Alto.
Tosca Lab: o Japão em Lisboa
Ricardo Milne é recordista, pelo menos nesta competição de contar os quilómetros que alguém tem de fazer para descobrir um futuro na cerâmica. Em 1996, terminou o curso de Desenho Gráfico no Ar.Co, em Lisboa. Como designer, trabalhou na área da divulgação cultural, paginou livros e revistas e desenvolveu um gosto especial pela ilustração. Na altura, sem saber, já estava a desenhar as personagens que, anos mais tarde, viria a ganhar vida a três dimensões. “Entretanto, a minha namorada, que era ceramista, conseguiu uma bolsa para fazer um mestrado no Japão. Fui com ela e apaixonei-me por Tóquio”, conta Ricardo.
O resto já se pode imaginar. As férias deixaram de ser férias e Ricardo acabou por se mudar para o outro lado do mundo. As visitas à universidade da namorada tornaram-se cada vez mais frequentes e as ligações entre os desenhos que fazia e a cerâmica cada vez mais óbvias. Quatro anos depois, de volta a Portugal, o projeto continuou a ser a dois. Nasceu o Tosca Lab, um atelier que fundia design, cerâmica e ilustração. Em 2006, chegavam os “Pontos Negros da Tosca”, uma coleção que não era deste mundo, desenhada em Tóquio, materializada em Lisboa. “No Japão, toda a gente desenhava. Foi lá que descobri o mundo dos designer toys e, basicamente, é isso que faço até hoje”, explica.
A pedido de amigos e clientes, os monstros negros ganharam cor, várias por sinal. As personagens continuaram a migrar do papel para figuras tridimensionais e o passo seguinte foi fazê-las nascer na combinação de vários moldes. Foram ficando maiores e mais complexas, mas invariavelmente arredondadas. Vieram os Bipolares, os Tripolares e, quando deu por isso, Ricardo já tinha o seu nome conhecido pelas figuras alienígenas. Através de um processo semi-industrial, que lhe permite recriar o mesmo objeto, criou um estilo próprio. “Em Portugal, somos um bocado conservadores, especialmente quando falamos de cerâmica. Estamos habituados à louça utilitária, às travessas, às marcas já estabelecidas. Trouxe uma linguagem nova, um movimento artístico — a toy art — que não tem grande expressão aqui”, conclui.
Os designer toys de Ricardo Milne podem ter dado nas vistas, mas comercialmente passaram ao lado de um sucesso estrondoso. Para ajudar a manter o atelier, o autor tem criado algumas peças utilitárias, pequenos copos e chávenas que, recentemente, fizeram sucesso numa galeria holandesa. “Preciso de fazer essas peças porque se vendem mais, mas não é o que gosto realmente de fazer. Gosto de chegar ao atelier e brincar dentro do meu mundo. Tento ao máximo não estar dependente das restrições do mercado”, admite. Enquanto isso, o design gráfico e a ilustração continuam a contribuir para o orçamento. Como homem de três ofícios, Ricardo não cabe numa única profissão. “Não me posso considerar um ceramista. Sou um autodidata, até porque acabei por nunca fazer nenhum curso de cerâmica. Quando estou a criar sinto-me artista, quando estou a fazer trabalhos fora sinto-me designer. Por outro lado, quando faço cerâmica da forma que faço, semi-industrial, também acho que estou mais próximo do design de produto. Ando sempre nesta dicotomia entre ser artista e ser designer, mas no fundo, o que interessa é sentir as coisas quando as trabalhamos”, esclarece.
“Agora, estou a fazer trabalhos novos, a experimentar novas técnicas”, exclama. Refere-se a uma caveira com as orelhas do Mickey, evolução de um estudo a que chamou “The Mouse is Dead”. Em vez do acabamento liso e vidrado que predomina nas restantes peças, esta é rugosa, depois de ter sido minuciosamente esburacada durante quatro horas. Seguirá o caminho de todas as peças novas: a prateleira de uma loja da preferência do autor, com o objetivo de ser testada junto dos clientes. Ricardo já repensou o próprio atelier — diminuiu o número de lojas para onde enviava peças e ponderou criar uma marca e entregar a produção a uma fábrica. “Cheguei à conclusão de que o que me dá gozo é continuar a fazer as minhas peças”, afirma. Atualmente, diverte-se a criar alguns utilitários e perde-se, maioritariamente, a explorar texturas. Em caso de dúvida, o “autodidata” esclarece: “Não sou uma fábrica”.
Ana + Betânia: a cerâmica como autobiografia
A cerâmica é uma zona de fronteira entre a arte e o design. A especificidade do método criativo, a reprodutibilidade da peça, a sua função e a plataforma de divulgação definem se estamos perante uma escultura numa galeria ou uma travessa para servir o jantar. Existe criatividade nos dois lados, porém menos liberdade quando exigimos de um objeto mais do que o seu valor artístico. É do outro lado desta linha ténue, do lado da arte, que encontramos a dupla Ana + Betânia.
Em 2013, começaram a criar a quatro mãos, ainda nas oficinas da Faculdade de Belas-Artes, em Lisboa. Há um ano, mudaram o atelier para as Caldas da Rainha, localização obviamente vantajosa. Existem fornos industriais a poucos metros. A escala nunca as deteve e, em 2015, chegaram mesmo a criar uma peça da mesma altura que elas, o “Cacto Leiteiro para Perdidos na Fase Oral”, resultado de uma residência artística em Montemor-o-Novo. Em vez de acessórios de mesa para estrelas Michelin, estão de olho no circuito das galerias e nos colecionadores de arte. Escolher esta via nem sempre é fácil, no caso de Ana e Betânia os desincentivos começaram logo na faculdade.
“Éramos um bocado outsiders na Belas-Artes. A maioria dos nossos colegas estava direcionada para a videoarte, para a instalação, e havia um grande burburinho em torno das aulas técnicas. Nós, um bocado contra a corrente, quisemos dedicar-nos a uma técnica que ainda hoje é muito conotada com artesanato. A cerâmica era mal vista, como se estivéssemos ali para pintar azulejos”, afirma Ana Cruz, parte da dupla. Juntas deram a volta. Apegaram-se à própria técnica, tiraram partido da tecnologia e enveredaram por uma abordagem muito mais artística. Ana chegou de Aveiro para ingressar diretamente na Faculdade de Belas-Artes. Betânia, natural de Viseu, ainda frequentou o curso de arquitetura, no Porto, durante dois anos.
“A cerâmica é um mundo de possibilidades. Na pintura, por exemplo, mais cedo ou mais tarde, acabamos por ter mais facilidade em adquirir a técnica. A cerâmica tem muitas temperaturas, muitos materiais, muita física, muita química. É difícil não desistir”, completa Maria de Betânia, o outro elemento da dupla. Na faculdade, uns acarinharam a opção, como foi o caso do professor Vidal; outros reagiram com desilusão. Para Ana e Betânia, a reação do professor de estética é a que continua mais fresca na memória. “Ele não percebia como é que duas pessoas inteligentes estavam a trabalhar a cerâmica”, recorda Ana.
Um projeto do Centro de Investigação de Estudos Cerâmicos manteve-as a trabalhar na faculdade, mesmo depois de concluírem o curso. Em 2013, surge o primeiro grande desafio e aquele que as une como dupla criativa. Com um mês de antecedência foi-lhes pedida uma peça que celebrasse os 500 anos das relações entre Portugal e China. Porque duas cabeças pensam melhor do que uma e quatro mãos sempre agilizam o processo, uniram esforços. “Uma coisa é dares-te bem com uma pessoa em termos de partilha de espaço, outra coisa é trabalhares conceitos em conjunto. Nós entendemo-nos e a coisa resultou”, explica Betânia.
Depois disso, passaram por uma residência artística em Saragoça, Espanha. Em 2015, após uma nova união de esforços para montar a exposição “Femina”, na Galeria Abraço, interromperam definitivamente o trabalho em nome individual. Ana + Betânia seria, daí em diante, uma única assinatura. Vieram outras exposições e peças que marcariam para sempre a linguagem deste atelier — cuecas com padrões juvenis, marshmallows em forma de tampões, pedidos de namoro, simbioses de frutas de genitais (“Elizabeth, the virgin queen”, a imagem na abertura do artigo, é um exemplo) e úteros dissecados. “Quisemos que o nosso trabalho falasse de nós. Já tínhamos passado ligeiramente dos 30 e estávamos com esse mal-estar existencial, fruto da passagem do tempo e do que é suposto termos aos 30 e que não tínhamos — pensávamos: ‘Será que é normal? Será que não é?'”, refere Betânia. “Porque é que insistimos em ter uma meninez tão visível? Porque é que resistimos ao cliché de ter família e filhos? Porque é que estamos tão apegadas às nossas raízes e à nossa infância? Por outro lado, também é ridículo perpetuarmos isso para sempre, senão tornamo-nos velhas com cuequinhas aos corações”, completa.
Num manifesto mais pessoal do que social, Ana e Betânia moldaram o barro em função das suas próprias dúvidas. Durante dois anos, séries como “Tutti Frutti”, “Nursery”e “Flesh Flowers” foram rotuladas como feministas. Foram reflexões sobre o “sentir feminino” e não tanto inseridas numa corrente de pensamento ou como bandeira de uma causa, como explicam hoje. “Gostámos dessa dualidade, um bocado irónica, surrealista, marota. Conseguimos ser provocadoras, mas subtis, e, ao mesmo tempo, fazer coisas bonitas”, acentua Ana. O surrealismo, o figurativismo, o bordaliano, o pop e o kitsch — as duas artistas exploraram o potencial criativo das suas próprias dúvidas e emoções. Quando estas mudaram, a arte encarregou-se de tomar outra direção. “Foi bom, ajudou-nos a tratar e a arrumar aquilo e isso tem a ver com o processo catártico da arte. Entretanto, houve outras coisas que nos foram incomodando mais”, esclarece Betânia.
“Quando desenvolves um trabalho em que te sentes confortável, de que gostas, com que te identificas e que, tecnicamente, resolves bem, como é que vais sair dali se é isso que as pessoas te pedem?”, questiona Ana. “Não vamos estar eternamente a fazer a mesma coisa, não é bom para nós. É como estarmos a fazer quase uma produção em série”, justifica. Atualmente, no atelier, continua a haver vestígios desses tempos — desenhos, peças que ficaram em vitrines e até uma nova edição de cuecas, cozidas e postas à venda pela altura do Natal. O tom pop deu lugar a outra coisa — a peças maiores, a formas mais orgânicas, silhuetas bolbosas e bem mais abstratas do que as que vimos nas últimas exposições da dupla.
Ana e Betânia não perderam o fio à própria meada, só começaram a desenrolá-la noutra direção. “Estávamos limitadas à figuração, ao realismo absoluto. Tivemos montes de peças com bananas, por exemplo. Eram super kitsch, amarelas, transformavam-se em catos e flores. Agora, já não temos bananas, temos as cascas amontoadas. Estão podres”, exemplifica Betânia. A peça em questão é o fim decretado da ditadura do desenho. Hoje, experimentam novos materiais e acabamentos menos perfeitos, incorporam os erros e imperfeições nas peças e desenvolvem formas, à primeira vista, estranhas. No ano passado, a exposição “Mater” foi esse ponto de viragem. Enquanto dupla, estão a sair da zona de conforto e a criar para um público diferente. “São outras formas de fazer cerâmica e queremos posicionar-nos de forma diferente no mercado. As cuecas, os tampões e as pastilhas tinham um público que nos achava graça, agora já criamos para colecionadores de arte. Parte do amadurecimento também tem de passar por aí”, expõe Betânia.
Hoje, saem menos peças do atelier, no entanto, são mais caras. Feitas as contas, o volume de vendas mantém-se, mesmo depois de Ana e Betânia terem parado de criar e produzir os seus objetos mais comerciais. Têm um emprego a tempo inteiro. Ana trabalha na Associação Comunitária de Saúde Mental de Odivelas, Betânia no Hospital Júlio de Matos. Ambas usam as artes para reabilitar e reinserir pessoas com doenças mentais. “Em Portugal ainda é muito difícil viver disto. Ou só trabalhas em cerâmica, mas tens de fazer trabalho comercial, às vezes souvenirs, para te sustentares, ou tens um emprego que te permite manter esta parte. Por muito que as coisas estejam a mudar — na América, na Austrália, Inglaterra, França, onde a abordagem já é muito diferente –, cá, a cerâmica ainda está muito conotada como uma arte menor, à produção dos utilitários, ao artesanato”, afirma Ana.
Sem nenhuma exposição à vista, as duas ceramistas dão largas à imaginação, desapegadas de desenhos rigorosos e dispostas a lidar com os erros e imperfeições. “Se o vidrado repele no forno, isso também é bonito”, exclamam. Agora, o processo também está a nu, tal como elas próprias também se expuseram através da própria cerâmica.