Cada vez mais pessoas à espera de vaga, falta de camas e unidades subfinanciadas e com grandes dificuldades financeiras. É este o retrato atual da Rede Nacional de Cuidados Continuados (composta por entidades públicas e privadas com ou sem fins lucrativos) que o Governo diz querer reforçar com mais 5500 camas até ao próximo ano — uma meta que a Associação Nacional de Cuidados Continuados considera inalcançável.
A rede nacional de cuidados continuados, composta por quase 10 mil camas, é uma espécie de retaguarda dos hospitais, para onde são — ou deveriam ser — encaminhados os utentes que precisem de recuperar a autonomia ou que precisem de cuidados de forma contínua. “São uma espécie de hospital de segunda linha. Quando um determinado hospital decide que alguém já não necessita de estar nesse meio, esse doente é transferido para os cuidados continuados, tendo a vista a reabilitação”, explica ao Observador o presidente da Associação Nacional de Cuidados Continuados. No entanto, José Bourdain critica a falta de capacidade da rede para responder a todos os pedidos. “A resposta é insuficiente face às necessidades do país. Há uma lista de espera enorme”, sublinha.
Utentes a aguardar vaga na Rede aumentaram quase 40% em dois anos
O número de utentes a aguardar vaga na Rede Nacional de Cuidados Continuados tem, de resto, vindo a subir ao longo dos últimos anos. De acordo com os dados do Portal da Transparência do SNS, consultados pelo Observador, a 31 de dezembro de 2021, havia 1310 pessoas a aguardar uma vaga, mas, no final do ano seguinte, o número já se fixava nas 1562 pessoas. No último dia de 2023, eram já 1804 pessoas, o que corresponde a um aumento de 37% em apenas dois anos.
Das cerca de 1800 pessoas que esperavam por uma vaga no final do ano passado, mais de um terço (671) tinha indicação para ingressar numa Unidade de Longa Duração e Manutenção, um dos dos três tipos de unidades da Rede Nacional de Cuidados Continuados. A maioria das camas existentes pertence a esta tipologia, que é também a mais procurada. Destina-se às pessoas que vão precisar de cuidados médicos diferenciados até ao final da vida, explica José Bourdain. “São pessoas que já não têm potencial de reabilitação, muitas acamadas”, detalha.
Para além destas, há também Unidades de Convalescença, para pessoas que foram submetidas a cirurgia e que apresentem uma perda temporária da autonomia (com 533 pessoas à espera de vaga no final do ano passado); e as Unidades de Média Duração e Reabilitação (onde aguardam vaga 600 pessoas), destinadas aos doentes em fase de recuperação, que necessitem de continuação do tratamento, sob supervisão clínica.
Unidades de média duração são as que têm mais prejuízo nos cuidados continuados
Número de camas estagnou e muitas unidades fecharam
O aumento da atividade assistencial dos hospitais — de onde sai a esmagadora maioria dos utentes que dão entrada nas unidades de cuidados continuados — é uma das explicações para o crescimento da lista de espera. Outra é a falta de camas na Rede, cuja capacidade de resposta não tem acompanhado o aumento da procura. Se, por um lado, o número de utentes em lista de espera disparou, o número de camas praticamente estagnou. Segundo dados da Administração Central do Sistema de Saúde, no final de 2021 existiam 9759 camas; dois anos, depois há 9723 camas, o que corresponde a uma diminuição de 0,4%. Todos os anos abrem camas, mas há também muitas unidades que fecham portas. José Bourdain diz que, só em 2o23, encerraram mais de 340 camas.
“Muitas unidades de cuidados continuados estão à beira da falência, outras foram à falência — decidiram fechar porque tinham enormes prejuízos”, denuncia o presidente da Associação Nacional de Cuidados Continuados, salientando as dificuldades económicas que afetam o setor. Em causa, diz, está a insuficiente comparticipação atribuída pelo Estado a estas unidades, que, face ao aumento continuado dos custos, têm acumulado défices ano após ano. “O governo paga abaixo do preço de custo. Não é financeiramente viável”, garante o responsável.
Um estudo da Faculdade de Economia da Universidade do Porto concluiu que as unidades de cuidados continuados são as que têm maior prejuízo devido ao subfinanciamento do Estado, com um défice diário por doente entre os 10 e 16 euros — entre 300 e quase 500 euros por mês. O valor pago pelo Estado “continua a ser consideravelmente menor do que os custos unitários suportados pelas instituições de cuidados continuados”, sublinhavam os autores do estudo. Uma ideia que José Bourdain reforça: “As entidades neste momento gastam, imaginemos, 100 e recebem do Estado 90, quando deviam receber, no mínimo, 110. O lucro é necessário porque é com ele que investimentos em equipamentos, na conservação dos edifícios.”
Mais de 300 camas de cuidados continuados fecharam este ano por questões financeiras
Governo não faz atualizações anuais do valor da comparticipação
Um dos principais problemas é o do valor da comparticipação paga pelo Estado, que não tem sido atualizada nos últimos anos, de modo a acompanhar, pelo menos, a taxa de inflação e os aumentos de custos com recursos humanos, realça o presidente da Associação Nacional de Cuidados Continuados.
Em 14 anos, os preços dos cuidados continuados foram atualizados apenas três vezes. “Todos os anos há um aumento dos custos [como resultado da inflação], os trabalhadores querem aumentos salariais, mas o governo congela os preços”, lembra José Bourdain. “Em 2024, o Governo aumentou os preços com base na inflação de 2023, mas esqueceu-se da inflação de 2022. O Governo faz isto sistematicamente isto desde 2015″, acusa José Bourdain.
As dificuldades financeiras estão a gerar um aumento da tensão em muitas unidades, que não têm forma de cobrir os custos com a prestação de cuidados aos utentes. “No dia 31 de janeiro, houve o aumento do salário mínimo, muitos trabalhadores que esperavam ter esse aumento não tiveram e houve algumas rebeliões. Recebi telefonemas de dirigentes que não têm dinheiro para pagar as contas, quanto mais para aumentar salários”, revela o responsável, acrescentando que “há unidades com salários em atraso”. José Bourdain aponta o dedo ao poder político. “Este Governo não é credível, não dá os meios necessários para que o trabalho seja realizado.”
Mas as dificuldades não se limitam à incapacidade de atualizar salários dos funcionários destas unidades. Em alguns casos, a única solução foi mesmo fechar portas. “A minha entidade está localizada em Sintra e tínhamos duas unidades de cuidados continuados. Uma, com 25 camas, fechou em dezembro de 2021 porque ficou sem enfermeiros. A outra perdeu metade dos enfermeiros e quase fechou”, sublinha José Bourdain.
Subfinanciamento e salários baixos impedem fixação de profissionais
O défice crónico das unidades de cuidados continuados reflete-se também na capacidade de fixar os profissionais que, perante as condições mais favoráveis oferecidas pelo SNS ou pelos hospitais privados, acabam por sair. “Os profissionais deste setor sentem-se altamente discriminados. Ganham 60 a 80% menos que os funcionários do SNS, o que é revoltante. Estamos a falar de enfermeiros, médicos, psicólogos, terapeutas da fala, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas. Os enfermeiros ganham 1020 euros brutos, um fisioterapeuta ou uma terapeuta ocupacional ganha o salário mínimo, é inqualificável”, diz.
O défice de camas na Rede Nacional de Cuidados Continuados afeta todo o país, mas faz-se sentir com maior intensidade na região de Lisboa e Vale do Tejo, onde a procura por este tipo de cuidados é muito superior à oferta disponível. A nível nacional, quase 40% das pessoas a aguardar vaga (cerca de 700 utentes) vivem na região de Lisboa. Na região Norte, que tem mais habitantes do que Lisboa e Vale do Tejo, há “apenas” cerca de 400 doentes a aguardar vaga.
Na área de Lisboa, o tempo de espera para unidades de longa duração ronda um ano e há até casos de pessoas que chegam a esperar dois anos para darem entrada na Rede Nacional de Cuidados Continuados, diz José Bourdain. Perante esta realidade, não é de estranhar o facto de o Governo ter alocado a Lisboa e Vale do Tejo 60% das 5500 novas camas previstas no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).
O Ministério da Saúde fala num “alargamento necessário, que permite responder aos desafios demográficos do país, contribuindo assim para a sustentabilidade dos sistemas de saúde e de proteção social”. No entanto, e apesar de sublinhar a importância do aumento da capacidade da Rede, José Bourdain não acredita num reforço da dimensão anunciada pelo Governo. Isto porque, diz, a atividade não é atrativa, nomeadamente no que diz respeito às unidades que têm de ser construídas de raiz.
Associação antecipa “fiasco” no alargamento da rede de cuidados continuados
“Não haverá um número de candidaturas suficiente para preencher as camas previstas, porque há falta de confiança. O Plano de Recuperação e Resiliência só cobre, a fundo perdido, 30% do custo de construção de uma unidade. Portanto, as entidades [do setor social] vão ter de se endividar para construir um edifício. Como é uma entidade se vai endividar sabendo, à partida, que o dinheiro que recebe do Estado não chega para pagar as contas?”, questiona José Bourdain, antecipando um “fiasco” na concretização desse objetivo. “Para entidades de grande dimensão, o défice [financeiro] acaba por ser diluído e acabam por não ter prejuízo. O problema é que a maioria das entidades são de pequena dimensão”, e não suportam o subfinanciamento crónico, realça.
No final do ano passado, o Ministério da Saúde determinou, através de despacho, o aumento da Rede em mais 561 camas: 154 em Unidades de Convalescença, 159 em Unidades de Média Duração e Reabilitação e 248 em Unidades de Longa Duração e Manutenção. No entanto, José Bourdain acusa a tutela de fazer “propaganda” e garante que o impacto real é “próximo de zero”, uma vez que, diz, “na maioria dos casos, é a mudança de cama de uma tipologia para outra”. “Não há um aumento real. Muitas unidades, numa tentativa desesperada de sobreviver, pedem para mudar da tipologia de longa duração — que é mal paga —para outra”, explica o responsável.
Assim, o presidente da Associação Nacional de Cuidados Continuados espera que o próximo governo crie um grupo de trabalho para aferir quanto custa cada doente numa unidade de cuidados continuados. Depois, e para tornar a atividade das unidades de cuidados continuados atrativa e financeiramente sustentável, o novo governo deve cobrir os custos e pagar um valor por doente acima do valor-custo, defende José Bourdain.
Hospitais sofrem com falta de resposta dos cuidados continuados
A verdade é que a insuficiência de resposta da rede de cuidados continuados cria problemas a montante, nos hospitais. Sem capacidade de ‘escoar’ os doentes com alta clínica, as unidades hospitalares não libertam camas, o que limita a resposta a doentes urgentes que precisam de internamento e que se vão acumulando (tal como aconteceu em janeiro, de forma mais visível) nos serviços de urgência. “A rede de cuidados continuados deveria servir para dar uma resposta a doentes idosos, com múltiplas comorbilidades, que ficam acamados”, mas isso não acontece, porque “há uma clara falta de vagas”, lamenta o médico Luís Duarte Costa, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna.
São as enfermarias desta especialidade que mais sofrem com a falta de resposta dos cuidados continuados, com os casos sociais a acumularem-se sem solução à vista (a que se soma a incapacidade dos lares para receberem doentes que não precisem de acompanhamento clínico regular). “A esmagadora maioria dos serviços de Medicina Interna tem uma taxa de lotação superior a 100%, o que significa que têm macas”, e uma das causas é a falta de respostas sociais, realça.
O médico alerta para a falta de racionalidade do modelo atual, em que os custos de manter estes doentes nos hospitais são muito superiores aos de transferir para uma unidade de cuidados continuados. “Uma cama numa unidade hospitalar de agudos é muito mais cara do que uma cama num internamento de cuidados continuados“, critica o especialista ao Observador, salientando que, na grande maioria dos casos, estes doentes apenas precisam de apoio da fisioterapia e da enfermagem e não de cuidados médicos.
Luís Duarte Costa pede um aumento na aposta nos cuidados continuados, até porque, avisa, a tendência é para a situação piorar, tendo em conta a evolução do perfil da população portuguesa, “cada vez mais idosa e com comorbilidades várias”.
Mais de um terço das camas estão ocupadas com casos sociais
Um outro problema que afeta as unidade de cuidados continuados é o elevado peso dos casos sociais, utentes com alta clínica, mas que continuam internados. Se nos hospitais do SNS o problema é grave (com 10% das camas ocupadas com estes casos), na Rede Nacional de Cuidados Continuados esta realidade assume proporções muito maiores. Segundo José Bourdain, retirar estes utentes das unidades permitiria libertar 35% das quase 10 mil camas. São mais de 3 mil lugares, que “rapidamente cobririam a lista de espera” e ainda sobravam, sublinha.
O presidente da Associação de Cuidados Continuados diz que o principal fator que explica este fenómeno é o modelo atual de comparticipação direta do Estado aos doentes e às famílias. “Em certas patologias, o Estado cobre 100% do custo dos doentes. Nos casos de tipologia de média e longa duração, as famílias pagam consoante os seus rendimentos: no pior dos cenários, a família não paga mais de 500 euros por mês. Ora, um lar privado custa 1300 a 1400 euros. Muitas pessoas não vão buscar o pai ou a mãe, porque os utentes acabam por ter uma assistência muito melhor do que num lar (com enfermeiros 24h por dia, por exemplo) e o custo é pelo menos três vezes inferior“, explica José Bourdain, acrescentando que a Associação já denunciou esta realidade ao governo, até agora sem consequências práticas.
O Observador questionou a Direção Executiva do SNS, que tem a função de gerir a Rede Nacional de Cuidados Continuados, de modo a perceber de que a forma a entidade liderada por Fernando Araújo olha para o aumento das listas de espera, que estratégias pensa implementar para aumentar o número de vagas e para minorar o problema do elevado peso dos casos sociais nos internamentos das unidades de cuidados continuados. No entanto, até ao momento, não foi enviada qualquer resposta.
Em março do ano passado, Filomena Cardoso, membro do conselho de gestão da DE-SNS, recusava a ideia de que o fecho de camas se deve a um “estrangulamento financeiro” das unidades. “É verdade que fecharam algumas unidades [da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI)], nem todas por problemas de financiamento ou do valor da diária”, disse a responsável aos deputados da Comissão de Saúde, numa audição na Assembleia da República. “Não me parece que haja um estrangulamento financeiro dos promotores. Como em todas as atividades de negócio, há pessoas de sucesso e pessoas de insucesso”, dizia Filomena Cardoso.
Já em junho, em declarações à Renascença, a mesma responsável adiantava que a DE-SNS se encontrava a trabalhar com a Segurança Social de modo a transferir “os doentes da rede, que são casos sociais, para a Estrutura Residencial Para Pessoas Idosas [ERPI]”.