Índice
Índice
Pina Martins queixava-se, no tricentésimo aniversário da morte de D. Francisco Manuel de Melo, de que se avaliássemos sua obra pelo estrépito da efeméride, então D. Francisco Manuel de Melo seria o mais glorioso anónimo das letras portuguesas. Somados cinquenta anos, não somámos nem mais um murmúrio de homenagem.
Talvez os admiradores ainda cumpram um luto respeitoso que os vote ao silêncio; talvez o deixem a descansar em paz, por julgarem que, à vida atribulada do fidalgo, trezentos e cinquenta anos de repouso ainda não chegaram para lhe devolver forças que o aguentassem na ribalta. Não sabemos se esta paz agradaria ao Melodino (nome que lhe davam, embora ele dividisse, com humor autodepreciativo, a alcunha em Melo indigno) que tanto pelejou; nele, aliás, os efeitos da Fortuna foram sempre imprevisíveis: buscou a glória, mas esta apenas veio com a desgraça.
A juventude miliciana e política, ora ao serviço do ducado brigantino, ora ao serviço do Imperador Espanhol, deu-lhe em igual número penas e proveitos; a maturidade encarcerada, porém, da qual tanto se queixou, deu-lhe a ele o ambiente para escrever e a nós algumas das mais importantes páginas da literatura portuguesa.
Mundano e espiritual
D. Francisco Manuel foi tudo, e de tudo nos deu testemunho. Nasceu espanhol pela mãe e português pelo pai, fidalgo mas de linha bastarda, solteiro mas escreveu para casados, vassalo de Filipe e D. João quartos, guerreiro e escritor, famoso e desafortunado, mundano e espiritual. Mesmo nas letras, correu toda a gama de obras e estilos: foi poeta e dramaturgo, hagiografou santos (Agostinho e Francisco de Assis) e biografou duques (Teodósio de Bragança), foi memorialista, historiador, cronista, publicou cartas e obras morais, até tratados de artilharia, em português e em espanhol, de tal maneira e com tantas variações que podemos afirmar que a única constância na sua obra é a da solidez do seu génio.
D. Francisco Manuel foi tudo, já o dissemos, mas também o seu contrário. Se há Homem que confirma a tese Cristã das duas Naturezas, esse Homem é D. Francisco Manuel, o Homem que na mesma carta é capaz de nos dar de si o mais mundano retrato e dos Homens mostras do maior desprezo. Que aconselha o tacticismo político com a mesma agilidade argumentativa com que demonstra uma lealdade corajosa ao seu soberano. Não há cortesão mais puro do que o Melodino, exímio a mediar conflitos entre a corte portuguesa, ainda submissa, e a espanhola, ambicioso da glória política, exemplo maior do bilinguismo seiscentista, conversador charmoso, amador do ambiente da corte, interessado pela história e pelas intrigas do seu tempo; mas também não há Cristão mais devoto, Homem mais desencantado com os prazeres, amigo mais infeliz e feitio mais trágico do que aqueles que D. Francisco debuxa de si próprio nas cartas familiares.
D. Francisco Manuel foi tudo, foi também o seu contrário, e de quase tudo nos deixou testemunho. Da ascendência, informa na Epanáfora Amorosa, que trata do descobrimento da madeira em duas partes: uma lendária, sobre a fuga de dois ingleses apaixonados; outra real, pelo português João Gonçalves Zarco, seu avoengo de quem herdou a fidalguia principal dos seus costados. A Epanáfora Amorosa, além de um dos seus mais aprimorados trabalhos, é também um dos melhores exemplos da escrita de D. Francisco. A acusação a que ele responde nos Apólogos Dialogais sobre El mayor pequeno (vida de S. Francisco de Assis), de que era muito erudita para obra espiritual, e muito sentenciosa para obra académica, também podia acusar a epanáfora.
Sempre nas raias do romance, estilizada por um português perfeito, já completamente adestrado, a epanáfora mostra como poucos dos seus textos a dimensão da curiosidade de D. Francisco: o amor pela lenda, o amor pela verdade, o amor pelas personagens, pela terra e até pela língua; apesar das várias vezes em que depreciou o feitio ilhéu, D. Francisco ainda herdou um morgado madeirense que durante uns anos o sustentou; e é a essa Madeira que consagra a mais apaixonada das suas Epanáforas de História vária.
Das origens tratou na epanáfora amorosa, das suas aventurosas belicosas, a renhir contra ingleses ou Holandeses, em outras tantas epanáforas; só da infância não deu relato, mas deu Edgar Prestage por ele. D. Francisco estudou no colégio de Santo Antão onde, ao que parece, mostrou talento matemático suficiente para escrever um pequeno tratado sobre o assunto. Mais importante, no entanto, da herança escolar, parece ter sido a cultura latina ensinada pelos grandes mestres de Santo Antão, que lhe deu um recurso estilístico que usou toda a vida. Só D. Francisco (e talvez André de Resende, mas sem o jogo literário do Melodino) brinca com as etimologias das palavras a ponto de urdir expressões como “A melancolia, ainda que negra” (por melancolia significar, à letra, negra bílis).
Mestre trágico
Da formação jesuítica seguiu-se a formação militar. Embora uma das primeiras experiências marciais não tenha corrido bem, como mostra a Epanáfora Trágica, que além da tragédia expõe o ridículo da decadência da armada portuguesa, parece que D. Francisco renhia com garbo e inteligência. Com isso, foi escalando posições no exército filipino e prestígio nas mentes cupulares.
Antes, e mesmo alguns anos depois da restauração, são frequentes as estadias de D. Francisco em Espanha; quando se dá a restauração, por exemplo, D. Francisco Manuel está na Catalunha, encarregado não só de desbaratar os revoltosos, mas também de relatar a vitória, coisas aliás que logra e a segunda com reconhecimento igual aos feitos de um exército inteiro. Talvez por não ter assistido à restauração é que as epanáforas nos dão apenas conta da revolta de Évora, anos antes, que para Portugal não ganhou nada e para D. Francisco ganhou apenas a prisão. Acusado de conspirador, D. Francisco é preso nessa altura, como antevisão do longo cárcere da sua maturidade.
Antes, porém, conhece Francisco de Quevedo, de quem se torna amigo e admirado. D. Francisco, de facto, irmana com os seus contemporâneos espanhóis, mais ainda do que na língua, no estilo. D. Francisco é barroco se ao barroco chamarmos o gosto por explorar as possibilidades da língua, os torneios que economizam palavras e a procura de duplos sentidos e semelhanças em cada frase. Se ao barroco chamarmos a exploração da grandeza da língua e da alma, se não o tomarmos pelo jogo desenfreado que ofusca toda a centelha viva na prosa dos seus autores, se não o considerarmos os floreios verbosos e desnecessários, a artificialidade pura, então D. Francisco Manuel é barroco, como o são os grandes Francisco de Quevedo, Lope de Veja ou Guevara.
Talvez pelo que sofreu depois, talvez por feitio, a elegância da escrita, o humor mesmo nos estados mais melancólicos, uma certa cortesia artificial, ressumbram uma dignidade que poucos escritores alcançam. A cerimónia está travejada de ironia, como quem sugere que não acredita no que diz; a elegância é sofrida, magoada, como que o último anelo de glória num guerreiro vencido que anota sentido aqueles que lhe voltam as costas; o humor é viçoso, de quem ama a vida que lhe tiraram; D. Francisco, preso por dez anos na flor da idade por causa de uma história escabrosa, alimentou a sua prosa trabalhada de uma dignidade trágica raríssima na literatura portuguesa.
O gosto pela elegância mesmo quando sabe que ela é vã, num espírito em que Proust é mestre e o Cavaleiro de Oliveira aprendiz; o queixume habitual das letras portuguesas, o sangue quente e a frieza cortesãs dão ao Melodino uma complexidade que ultrapassa em muito as formas vulgares do barroco.
Foi na prisão, ainda mal explicada (envolve uma morte, tramas conspiratórias e uma lenda de disputa amorosa com a líbido augusta, de que Camilo é um dos principais propagadores) que D. Francisco escreveu alguns dos seus textos mais importantes. É do cárcere, desde logo, que saem as suas cartas familiares, a Fénix de África e o Fidalgo Aprendiz. A fénix junta o lado mundano e o lado espiritual do nosso fidalgo, as cartas são a epítome da dignidade ferida de que falávamos e o fidalgo aprendiz talvez a mais importante farsa do moderno teatro português.
Dom Francisco sempre foi rico em ideias. Da sua forma original de defender os seus trabalhos, em diálogos argumentatórios impressos nos Apólogos, às mais divertidas tramas, como a do cofre do avarento, em que as moedas se queixam do fim da sua existência viajado por chegarem ao cofre empoeirado de um sovina, Francisco Manuel nunca consegue amofinar o leitor do seu teatro.
O fidalgo sofrido
Em parte herdeiro da tradição medieval, mais atenta ao diálogo e à sucessão de tipos, em parte herdeiro do fabulário tradicional, D. Francisco Manuel tem desde confrontos entre relógios falantes, campestres e urbanos, a diálogos entre fontes. Em nenhum auto e em nenhuma farsa, porém, cria uma personagem tão forte como o D. Gil do Fidalgo Aprendiz. Arrivista antes de Rastignac, alvo do choque entre a fidalguia de província e a fidalguia cortesã antes de Calisto Elói da Barbuda, o fidalgo aprendiz é cómico pelos usos, pelos enganos, pela ambição da sua personagem principal, mas também útil à moral e ao dealbar da vaidade. O olho arguto de D. Francisco, que o leva a perorar com acerto mesmo sobre aquilo que não conhece (exemplo da Carta de Guia de Casados), não podia deixar escapar este tipo, habitual tanto na literatura como na vida portuguesa, que aqui é humanizado com uma ambição desmedida e com uma sede de glória ao mesmo tempo cómicas e trágicas.
D. Francisco só deixou a prisão para um curto exílio brasileiro, depois de dez anos agrilhoados, os mesmos dez anos que, à saída, lhe restavam de vida. O cárcere e as letras deram-lhe o prestígio que antes lhe trouxera a espada; há até um episódio curioso nas cartas familiares, em que D. Francisco Manuel é, da prisão, júri de um concurso literário.
Esse prestígio valeu-lhe, na volta a Portugal em 1658, lugares cimeiros num dos mais curiosos fenómenos da vida literária de seiscentos: as academias. Lugares esquecidos, quando não motejados, da vida intelectual, as academias, de que o Conde da Ericeira era o principal adepto e dinamizador, funcionavam como assembleias de literatos em que se discutiam temas literários e produziam discursos, tantas vezes fátuos e medíocres, mas outras tantas de um pinturesco assinalável. D. Francisco dedicou os seus últimos anos à Academia dos generosos, talvez na esperança de que a Fortuna também o fosse com ele.
Como não podia deixar de ser em personalidade tão estranha, morreu em glória, depois de tanto viver em desgraça. A 24 de Agosto ou 13 de Outubro, não se sabe. Para duas naturezas tão distintas, também não ficam mal duas datas de morte.
Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.