Com D. Manuel I, rei do Portugal burocrático e mercantilista que descobriu o Brasil e o caminho marítimo para a Índia, viveu-se um “período áureo” no domínio artístico e surgiu o estilo arquitetónico que a partir do século XIX passará a ser conhecido como manuelino. O monarca da viragem para o Renascimento patrocinou o desenvolvimento da pintura e da escultura, instigou o uso da imprensa para divulgação de livros que afirmassem o nome de Portugal noutros países e mandou remodelar o arquivo régio, o que implicou a produção de documentos e livros carregados de iluminuras hoje consideradas obras-primas.
Quis situar-se como força de inspiração divina, messiânica e paternalista, logo abaixo de Deus todo-poderoso — a doutrina jus-divinista. Para tanto recorreu a uma “grande campanha de propaganda em que os elementos visuais coadjuvaram a própria administração do reino” e “incorporou vários artistas na corte, dando início a uma série de estruturas que se dedicavam essencialmente à promoção da figura do rei através das artes visuais.”
Foi com esta narrativa que o diretor do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, contextualizou a exposição temporária Vi o Reino Renovar: Arte no Tempo de D. Manuel I, que abre portas nesta sexta-feira e se prolonga até 26 de setembro, com bilhete normal a seis euros. O título da mostra vem de um verso do escritor eborense Garcia de Resende (1470-1536), que no livro Miscelânea fixou episódios e transformações da época: “Vimos-lhe fazer Belém/ Com grande torre no mar;/ As casas do Armazém,/ Com armaria sem par,/ Fez só el-rei que Deus tem;/ Vimos seu edificar;/ No reino fazer alçar/ Paços, igrejas, mosteiros/ Grandes povos, cavaleiros,/ Vi o reino renovar.”
Numa visita guiada para a imprensa, na quarta-feira de manhã, Joaquim Caetano disse que exposição começou a ser pensada há cerca de três anos. Destacou que esta resulta da cooperação entre o museu da Rua das Janelas Verdes, a Biblioteca Nacional e a Torre do Tombo, pretendendo assinalar os 500 anos da morte de D. Manuel I (1469-1521). O comissariado da exposição ficou a cargo de Joaquim Caetano, de Rui Loureiro (Biblioteca Nacional) e de Rosa Bela Azevedo (Torre do Tombo), enquanto o apoio mecenático é do BPI e da Fundação La Caixa, duas instituições de capital espanhol.
“Não pretendemos aqui dar uma ideia da grandeza da arte no período manuelino, mas sim mostrar como D. Manuel integrou o fenómeno artístico na sua própria administração e nas reformas que foi fazendo no reino”, sublinhou Joaquim Caetano. “Quando ele chega ao trono tem necessidade de afirmar a sua figura, para marcar a centralidade do seu poder, e vai fazê-lo de uma forma muito hábil, através por exemplo das intervenções artísticas. O reino está então a ganhar a autoconsciência de já não ser apenas um cantinho europeu, antes tem uma expansão comercial global e capacidade de trazer novidade à Europa.”
Do profeta Daniel à Custódia de Belém
Na quarta ao fim da manhã a exposição estava ainda a ser montada e algumas peças emprestadas ainda chegavam ao museu, razão por que dois carros e pelo menos quatro agentes descaracterizados da Polícia Judiciária se encontravam na lateral do museu, num momento de habitual escolta de obras especialmente valiosas, segundo explicou o diretor.
Nos quatro núcleos que a compõem — “Vi o Reino Renovar”; “O Poder das Artes”; “A Reforma dos Forais e a Leitura Nova”; e “A Imprensa” — viam-se técnicos a desembrulhar e a expor peças, outros a retocar molduras. Alguns objetos principais, desde logo os que pertencem à coleção do próprio MNAA, estavam já colocados. A curiosa tapeçaria de lã e seda Rei Sentado no Trono (1500-1525). O impressionante óleo sobre carvalho O Profeta Daniel Julgando os Dois Velhos e a Casta Susana (1508-1512), de Francisco Henriques. A pitoresca escultura em nogueira São Marcos (1510-1525), assinada por Cornelis de Holanda.
Porém a Custódia de Belém (1506), a mais famosa peça da ourivesaria portuguesa e que integra o acervo do museu, ainda estava para chegar à sala de exposição. De proveniência externa via-se um volume da Bíblia dos Jerónimos (1495), pertencente à Torre do Tombo — “joia mundial da iluminura pela qualidade artística”, disse Joaquim Caetano, secundado pelo diretor-adjunto, Anísio Franco. Ou ainda a escultura Virgem com o Menino (1501-1525), do Museu de Lisboa. Brilhava numa vitrine o único exemplar conhecido do Tratado da Esfera, redigido em 1516 por João de Sacrobosco e hoje pertencente à Biblioteca Pública de Évora, ao lado de outro livro impresso, o Almanach Perpetuum (1496), com tábuas astronómicas de Abraão Zacuto, proveniente da Biblioteca Nacional.
Devido à pandemia, disse o diretor, a exposição não pôde contemplar obras vindas do estrangeiro, como inicialmente pensado: uma salva manuelina do Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque, ou uma armadura de D. Manuel que pertence ao Estado francês, foram duas hipóteses.
O interesse de D. Manuel I pela intensificação da produção artística explica-se pelos abastados recursos financeiros de que o Estado então dispunha e pela noção por parte do monarca de que o investimento no que hoje se chama cultura era “parte essencial da transformação administrativa e conceptual do reino”, nas palavras de Joaquim Caetano. Além disso, o rei tinha sido parcialmente educado em Espanha e aí terá contactado com “o mecanismo da propaganda através da arte, que os reis católicos estavam fazer em Espanha, desde logo com as grandes catedrais”, apontou o diretor.
Quando D. João I (1357-1433) mandou construir o Mosteiro da Batalha, símbolo da vitória portuguesa na Batalha de Aljubarrota, era já esse princípio de afirmação régia que se verificava. “Mas D. Manuel vai levar isso a um nível superior, que se estenderá a todo o país”, referiu o diretor do MNAA. Esta política terá logrado efeitos internos e externos, dando de Portugal uma imagem de país global e moderno, arrojado e capaz de dar mundos ao mundo — imagem cuja construção hoje se atribui com frequência apenas à propaganda do Estado Novo. Mas será anterior a isso. “O Estado como patrono e a política do espírito de António Ferro colheram de facto certas lições manuelinas, mas não podemos é dizer que D. Manuel era salazarista, desde logo pelo anacronismo da comparação”, ironizou Joaquim Caetano.
“Não é uma exposição fácil”
De resto, a exposição pode até ser interpretada como um comentário à atualidade: às políticas públicas culturais, à relação dos artistas com o regime, à forma como os Governos e as instituições decidem temas e montantes que marcam o ritmo da produção cultural e os seus efeitos na sociedade.
“Houve críticas à época, segundo as quais o rei se comprazia mais no edificado do que na gestão da coisa pública, o que não era bem verdade, porque ele compreendeu que a afirmação do poder se fazia precisamente através da arte”, destacou Joaquim Caetano perante os jornalistas. “O facto de os pintores, escultores e iluminadores terem sido chamados para a própria estrutura administrativa, ou seja, para a corte, significa que vão incorporar a própria cultura da corte, o que os diferencia dos mesteirais, os artistas comuns. O que era novidade do ponto de vista literário, litúrgico ou político refletia-se muito na pintura, por exemplo. Era uma arte que refletia diretamente quem a produzia e a patrocinava”, concluiu.
Vi o Reino Renovar é acompanhada de um catálogo de quase 300 páginas, com coordenação de Ana Sousa e Miguel Soromenho e textos dos historiadores Maria de Lurdes Rosa, Diogo Ramada Curto, Rafael Moreira, Hélder Carita, Miguel Metelo de Seixas e Alice Sedgwick Wohl, entre outros. “O gosto pessoal do rei, a necessidade de estabelecimento de uma identidade visual e simbólica do primeiro monarca do novo ramo da dinastia de Avis, a disponibilidade económica e a autoconsciência do acréscimo da importância política que a expansão territorial dava ao país terão estado na origem do enorme interesse por formas de representação artística”, lê-se nas primeiras páginas.
Num texto introdutório do catálogo, escreve Bernardo Alabaça, diretor da Direção-Geral do Património, que tutela o MNAA: “D. Manuel teve a perfeita consciência de que a difusão e a massificação da representação simbólica da presença régia, através do que hoje consideramos como património cultural, correspondia a um fator essencial de afirmação real e de unidade do estado, incorporando-a na sua governação através de estruturas administrativas próprias de execução e controlo das obras realizadas, cuja modernidade é bem evidente.”
No fim da visita, Joaquim Caetano referiu que esta “não é uma exposição fácil”, no sentido de conter peças aparatosas de apreensão imediata. No entanto, como aposta estival do principal museu público português, e apesar das restrições em função da pandemia, parece estar pensada para o grande público. A inauguração oficial, com presença da ministra da Cultura, Graça Fonseca, está agendada para esta quinta-feira às 17h30.