Depois de no passado dia 25 de janeiro ter sido a autora do primeiro filme português a ser distinguido nos prémios Annie, em Los Angeles, – considerados os Óscares da animação – não foi fácil contactar Regina Pessoa. Valeu-nos uma escala em Chicago para que nos pudesse atender o telefone e marcar esta entrevista. O local só poderia ser a Casa Museu de Vilar – A Arte em Movimento, em Lousada, projeto que conta a história do cinema de animação e que gere juntamente com o realizador, produtor e seu companheiro Abi Feijó.
Ainda a recuperar do jet lag, a realizadora não perde o sorriso, a memória e o entusiasmo. Conduz-nos até à sua sala de trabalho, onde não faltam cartazes de filmes nas paredes, livros, dossiers, caixas e computadores. “Há muita coisa que foi para a Solar Galeria de Arte, em Vila do Conde, que inaugura uma exposição sobre o filme a 15 de fevereiro”, partilha com o Observador.
Num escritório que é também a sua casa, Regina fala da infância não privilegiada no campo, da liberdade que foi crescer sem ter uma televisão e do tio materno que um dia a incentivou a desenhar nas paredes de casa, com o carvão que sobrava da lareira. É ele, o tio Tomás, o protagonista do filme premiado — “Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias”. Os lápis e o papel só lhe chegaram às mãos graças à irmã mais velha, que lhe dava os cadernos usados da escola. Já a vontade de se expressar através do traço parece ter nascido consigo e fez com que nunca imaginasse fazer ou ser outra coisa.
Embora muitos pensem que os seus filmes são tristes, Regina garante dar-lhes um lado luminoso e uma mensagem positiva. Quase todos giram em torno da infância, dos seus medos, das suas experiências e do que conhece. Não tenciona abandonar este universo e o próximo será uma homenagem à sua mãe.
Apaixonada pelo método analógico e pelos tons monocromáticos, a realizadora não cai na tentação de obedecer a padrões ou a gostos formatados. Confessa a dificuldade que sente em viver da animação em Portugal, “o parente pobre do cinema”, lamenta os anúncios que substituíram as curtas-metragens, o mito da celebridade e a falta de política cultural.
Regina Pessoa já ganhou centenas de prémios, diz que fazem bem ao ego e reforçam a sua credibilidade e auto confiança. Afinal, são eles que tornam o seu trabalho visível ao comum dos mortais e isso, ainda que penoso, vale sempre a pena.
[o trailer de “Tio Tomás, a Contabilidade dos Dias:]
Já recuperou do jet lag?
Ainda estou um bocadinho lenta, mas sim…
Gosta de viajar ou é um sacrifício?
Gosto muito de viajar e é muito melhor quando conhecemos as gentes nos locais. Normalmente viajo sempre em trabalho e às vezes, quando consigo ir com o Abi [Feijó], reservamos dois ou três dias para conhecer o local. Curiosamente, desde que nos mudámos para aqui [Casa Museu Arte em Movimento, em Lousada], gostamos mais de estar aqui. Viajar mais de três dias já é demais.
Mas não vai ficar aqui por muito tempo, pois não?
Só fico hoje e amanhã, depois volto a viajar. O filme está selecionado para o festival Clermont-Ferrand e tenho que ir lá. É importante acompanhar o filme.
Faz questão de ir sempre?
Só vou quando ou me convidam e pagam tudo ou há festivais em que conseguimos fundos, caso contrário não iria porque é caro.
Estava à espera desta nomeação?
Não, mas faz parte do trabalho. É dessa forma que as curtas-metragens vivem, não existe outro meio de distribuição. São mesmo os festivais e estes prémios.
Concorreu com este filme?
Neste caso, a Ciclope Filmes teve uma coprodução com França (Les Armateurs) e o Canadá (Office National du Film) e ainda um produtor inglês associado, o Phil Davies. Partilhamos territórios de intervenção e o Canadá é responsável por toda a América, exceto o Brasil porque temos uma relação privilegiada, e foram eles que inscreveram o filme para os Annie Awards e para os Óscares.
Foi preparada para ganhar?
O facto de o filme ter sido nomeado para os Annie praticamente ao mesmo tempo que saiu na short list dos Óscares criou alguma expectativa, porque o grosso da comunidade da Academia de Hollywood é a mesma nas duas competições, por isso parecia indicar um direção. Ficámos muito contentes, mas quando percebi que não tinha conseguido ser nomeado para os Óscares pensei que não iria receber nenhum prémio nos Annie, apesar de ser um evento importante e de já ter sido nomeada uma vez, em 2013. Desta vez os nomeados tinham uma configuração única que nunca existiu. Quem domina normalmente é a indústria mainstream americana, mas este ano, excecionalmente, os cinco nomeados eram todos europeus.
Isso surpreendeu-a?
Sim. Em 2013 quando fui nomeada com “Kali, o Pequeno Vampiro”, era o único filme independente e os outros eram todos de grandes estúdios.
Acha que se caminha para uma mudança de paradigma nesse sentido?
Não sei, vamos ver como será para o ano, essa indústria é muito poderosa e pode tentar controlar. Não lhes interessa que os prémios para a indústria deles vão parar a outras mãos. Quando houve o anúncio da não nomeação para os Óscares, eu e o Abi ficámos na dúvida se íamos ou não aos Annie. Passámos a semana inteira naquilo, porque é um investimento muito grande. Só no domingo, a menos de uma semana da cerimónia, é que decidimos fazer um esforço e ir. Ficámos lá dois dias.
Tiveram algum dress code especial?
Sim, era black tie e lá arranjámos umas fatiotas. Usei uma saia da Maria Gambina e um top preto, o mais simples possível. Fomos a pensar que o importante era marcar presença porque é sempre uma oportunidade. Lembro-me de estar a assistir à cerimónia também como espetadora e quando anunciaram o meu nome fiquei verdadeiramente surpreendida.
Levou algum discurso preparado?
Não, saiu-me tudo naturalmente. Foi um discurso curto, mas adequado. Nem comecei a chorar.
Este filme – “Tio Tomás, a Contabilidade dos Dias” — fala de um tio seu que a ensinou a desenhar…
No fundo é uma homenagem a um homem desconhecido, a um anti-herói. Ele era um tio fora do comum, era um solteirão e, por isso, tinha muito tempo disponível para os sobrinhos e tratava-nos muito bem. Era um homem bom. Tinha sempre aquele canivete que se vê no filme e nos passeios pelo campo pegava num gaio e fazia rapidamente um pião para brincarmos. Era muito apelativo porque não conhecia outros adultos assim, sem aquela pedagogia que os adultos costumam ter com as crianças. Entre essas atividades incluia-se também o desenho nas paredes com carvão, o que me mostrou que há sempre outras soluções. A minha família era pobre e não havia, como há hoje, papel e lápis em abundância. Ele mostrou que havia outros meios para desenhar e na casa dele era autorizado desenhar nas paredes. Abriu-me a mente e morreu em 2005.
Lembra-se do primeiro desenho que fez?
Não, foram vários momentos. Recordo-me de ele nos dar dicas como: “é importante ter atenção às proporções na cabeça”. Uso muito estas frases icónicas dele no filme.
Quando desenhou pela primeira vez com lápis e papel?
A minha irmã é cinco anos mais velha do que eu e teve um papel muito importante porque a minha mãe tinha uma doença mental e não tinha capacidade para se ocupar de nós, portanto tomava conta de mim. Ela dava-me os cadernos da escola usados e deixava-me usar os lápis dela. Os cadernos já estavam preenchidos, mas tinham aquele espaço no cabeçalho, no rodapé e nas margens que era onde eu desenhava. Havia poucos lápis, um dia eu estava lá a pintar com um amarelo e outro azul, misturei as duas cores e percebi que aquilo dava a cor verde. Chamei logo a minha irmã e para nós foi uma descoberta, dissemos uma à outra que não iríamos partilhar aquilo com ninguém. Achei mesmo que tinha inventado o verde (risos).
Curiosamente, os seus trabalhos não têm muita cor, só em 2013 é que se aventurou na cor.
Não é por não me querer aventurar, é porque gosto mesmo dos tons monocromáticos. Agora também me questiono se isso não está relacionado com o meu tio Tomás, porque os meus primeiros desenhos foram feitos com carvão da lareira, a preto e branco. Também há outra história que pode explicar este meu gosto. Quando tinha quatro anos, o primeiro filme que vi projetado numa sala de cinema na minha aldeia foi “A Quimera do Ouro”, do Charlie Chaplin, portanto a minha primeira memória de imagem em movimento foi também a preto e branco. Anos mais tarde, o Abi conheceu o distribuidor desse filme e foi uma espécie de lição para mim.
Porquê?
Somos o lado marginal do cinema, a curta metragem, e sobretudo a de animação, é o lado marginal do cinema. Vamos feitos saltimbancos por aí mostrar os nossos filmes, às vezes somos bem recebidos, outras vezes menos, umas vezes vezes a sala está cheia, outras vezes tem só três ou cinco pessoas. Mas vamos fazer a nossa missão e o nosso trabalho com o mesmo empenho. Esse acontecimento foi uma lição porque sei lá se daqui a 30 anos vou encontrar alguém que tenha sido marcado por um filme meu.
Quando percebeu que tinha jeito para desenhar? Houve um momento, um elogio?
Essa coisa de ter jeito… era o que eu gostava de fazer, de facto foi sempre o que eu gostei de fazer. Nunca imaginei fazer outra coisa.
Era daquelas miúdas que nas aulas estava sempre a desenhar?
Sim. Nos cantos das páginas dos livros, às vezes os livros tinham ilustrações e eu aumentava-as.
Viveu no campo até aos 17 anos. De que forma é que crescer nesse universo mais rural a influenciou? Foi um privilégio?
Foi um privilégio e uma maldição ao mesmo tempo. É um privilégio quando se tem a sorte de pertencer a uma família favorecida, em que se é bem integrado e se tem uma vida mais confortável. No meu caso não era e daí essa parte ter sido uma maldição, porque se alguém é diferente, como era a minha mãe, toda a família era estigmatizada. Eu e a minha irmã sofremos disso. Por outro lado, tínhamos a vantagem do espaço, da imaginação e de não termos formatado o nosso gosto.
Como assim?
Por exemplo, nós não tínhamos televisão, eu cresci sem televisão. Até é curioso eu estar a fazer filmes porque não tinha qualquer formação em imagem em movimento, não tinha esse acesso. Por outro lado, é curioso que isso talvez tenha sido uma vantagem, porque não fui formatada. Acho que muitas vezes as pessoas que cresceram com essa dependência da televisão acabaram por ser formatadas, não têm a necessidade de fazer o exercício de criar o seu próprio entretenimento. Eu acabei por ficar, de certa forma, virgem desse tipo formatação, tanto em género como em estética, talvez isso explique que os meus filmes sejam esteticamente diferentes, porque de facto eu nunca segui um padrão.
Existe alguma liberdade consciente associada a isso?
Só percebi isso mais tarde, após uma reflexão. Naquela altura, qualquer criança ou jovem sentia uma inferioridade em relação aos outros colegas: “eles têm e eu não tenho”. O reconhecimento de que isso talvez tenho sido uma vantagem veio mais tarde, quando comecei a fazer os meus primeiros filmes em 1999.
No segundo ano do curso de pintura na Faculdade de Belas Artes do Porto decide levar alguns desenhos a um estúdio de animação. É aí que descobre este mundo?
Sim, antes disso nunca tinha despertado para a animação. O pouco que conhecia eram os típicos cartoons para rir, leves e ligeiros e isso não me interessava particularmente. Nessa época procurava um part time para poder pagar os meus estudos e ouvi dizer que o estúdio do Abi Feijó estava a precisar de gente. Ele viu os meus desenhos e disse-me que começava no dia seguinte.
O que mais a fascina na animação?
No estúdio do Abi conheci um outro lado da animação, que não fazia ideia que existia, que era a animação de autor, onde nós podemos explorar a nossa linguagem pessoal. Conhecer filmes onde eu me podia reconhecer a nível visual e narrativo foi uma revelação para mim. Eu tinha formação em belas artes e o que eu gostava de fazer era desenvolver visuais plasticamente ricos, com muita textura, e nesse tipo de animação de autor eu podia privilegiar isso. Foi o que mais me atraiu. Por outro lado, o mundo da arte, que eu tinha conhecido apenas como estudante, era muito mais formal e menos atraente a nível humano.
Como assim?
O mundo da arte é muito cruel e pretensioso, enquanto o mundo da animação é muito acolhedor, mais descontraído, mais leve, menos pretensioso e onde a pessoa se sente bem recebida. Não há tanta rivalidade e tanta hierarquia, o que permite que a pessoa se sinta à vontade para aprender e explorar várias coisas.
Como é o seu processo criativo?
Primeiro preciso de ter uma ideia ou uma intenção que seja importante, que valha a pena começar a pensar nisso, e depois uma motivação forte. Acho que esse é o meu ponto de partida.
Já com uma mensagem associada?
Sim.
E necessariamente positiva?
A motivação acho que é sempre positiva. Embora a maioria das pessoas ache que os meus filmes são muito tristes, penso que há sempre um lado luminoso. No caso do “Tio Tomás”, a ideia era fazer uma espécie de homenagem ao meu tio, com quem eu comecei a desenhar. Para isso, queria usar a minha memória, mas também os diários dele, os objetos que guardei dele, os tais canivetes, réguas de contabilidade, os papéis e as notas. Essas eram as minhas motivações técnicas, mas também continuar a desenvolver a minha linguagem pessoal. Penso que uma das paixões de fazer um trabalho artístico é desenvolver uma linguagem e o lado que dá prazer em fazer um filme é essa pesquisa que a pessoa faz sobre a sua linguagem. Tecnicamente, era esse o meu desafio.
Mas tudo começa no desenho…
Sim, eu costumo trabalhar com animação 2D, o desenho à mão neste momento pode ser num tablet. Comecei de forma analógica nos meus filme, depois passei para o desenho digital, mas quero continuar a usar a herança da minha formação. Aqui o desafio era integrar técnicas de animação diferentes, juntando o real, como os objetos, com um universo completamente irreal, de animação 2D. No que diz respeito à minha motivação pessoal, gostava de transmitir a ideia de que não é preciso fazer nada de extraordinário na vida para ser importante na vida de alguém. Foi esta mensagem que me fez fazer este filme até ao fim.
Quanto tempo de trabalho?
O filme levou muito tempo a ser feito, existiram três ou quatro anos antes de começar a produção. Nós fazemos coproduções para reunir o melhor orçamento e para garantir uma melhor rede de distribuição, se for só Portugal, como somos muito pequenos, menos gente terá acesso ao filme. Entre organizar o dossier, redigir o projeto consoante as regras das comissões, submeter o projeto e esperar meses pela resposta são muitos meses. Por vezes o trabalho não é aprovado e são exigidas mudanças na própria história ou em aspetos técnicos.
Como se lida com esses meses de espera?
Ia desenvolvendo o filme, fiz muita animação e muitas cenas sozinha. Usei esse tempo para resolver os problemas técnicos que o filme colocava. Qualquer autor tem que lidar com isso. Quando em 2017 começámos a produção, já tinham passado três ou quatro anos destas tentativas de encontrar coprodutores e muitas cenas já estavam prontas e desenvolvidas em 2D e stop motion, depois foi só executar. O tempo de produção para um filme desta complexidade visual e com esta duração, 13 minutos, foi muito pouco, foram 20 meses.
Como é a Regina a trabalhar?
Nos meus filmes sou um bocado control freak, não quero que os animadores que trabalham comigo — neste filme foram dois em França, dois no Canadá e três em Portugal – fiquem perdidos, com dúvidas, porque se perde tempo. Preparo muito bem a cena e eles já sabem exatamente em que desenhos ou em que frames devem intervir. Isso facilita imenso a comunicação.
Os seus filmes giram em torno de temas sobre a infância. São, de alguma forma, autobiográficos?
Ao ver o último filme do Almodóvar aprendi uma expressão nova, que é auto ficção. No início optei por esses temas por uma razão muito simples. A minha formação era visual e não de cinema nem de escrita, quando comecei a trabalhar com o Abi e ele me colocou a possibilidade de fazer o meu próprio filme, tentei escrever uma história, um argumento e não saía nada de jeito. Então ele disse-me para não complicar, para pensar apenas em algo que fosse importante para mim, de alguma forma as pessoas iriam sentir esse vosso envolvimento. Aí fez-se um clique na minha cabeça. Ao pensar numa coisa minha, simples, lembrei-me que tinha medo do escuro, que é a coisa mais banal e comum. Portanto, foi assim que comecei a falar das minhas coisas, para fugir a uma dificuldade.
Também para se resolver?
Embora já tenha ultrapassado o medo do escuro, foi para fugir da minha dificuldade em não saber escrever histórias de ficção e porque é o que eu conheço. Quem sou eu para falar de assuntos complicados ou socialmente relevantes? Não tenho formação para isso, não tenho esse conhecimento. É melhor começar por uma coisa simples, básica, que eu sei. Foi assim que começou esta linha, que depois segui porque descobri que pode ser uma via.
Vai continuar nesse terreno fértil ou apetece-lhe explorar outros temas?
Sim, vou continuar por aqui. O “Tio Tomás” já foi assumidamente autobiográfico, a criança representada sou mesmo eu. Acho que tenho bastante assunto para desenvolver este caminho e vou continuar a percorrê-lo.
Já ganhou centenas de prémios. Os prémios mexem consigo? Trazem mais responsabilidade?
Quando uma pessoa passa anos e anos a fazer um filme, receber um prémio é sempre bom apara afagar o ego. Todos temos fragilidades e é sempre bom. Um prémio dá confiança, tem esse lado, claro que há prémios mais importantes do que outros. A nível profissional também é positivo porque precisamos de reforçar a ideia de que o nosso trabalho vale a pena. O filme é o mesmo antes e depois do Annie, eu sinto a mesma coisa em relação a ele. No entanto, a atenção das pessoas é muito maior e isso reafirma o meu trabalho junto das instituições, para o Instituto do Cinema e do Audiovisual, para o meu curriculum, para da próxima vez que apresentar um projeto ter mais credibilidade. Os prémios também servem para chamar a atenção para a animação em Portugal que era vista como um parente pobre do cinema.
[o trailer de “Kali, O Pequeno Vampiro”:]
Ainda o é?
Acho que isso está a mudar um bocadinho, mas os portugueses têm um défice de auto confiança e precisam do mito da celebridade e do glamour para darem importância a alguma coisa. A imagem real tem essa vantagem e esse defeito, em que se confunde muitas vezes a importância de um filme. Se é pelo conteúdo ou pela atriz que é muito bonita e se calhar nem é muito boa atriz, mas é mediaticamente conhecida. Para mim, este é o risco e a vantagem da imagem real, confunde entretenimento com o valor artístico. Na animação não corremos esse risco porque não há atores.
Mas há vozes conhecidas, bandas sonoras que se tornam populares…
Esse é outro recurso ao mito da celebridade que é usado na indústria, que vai buscar vozes conhecidas para usar a fama desses atores.
Nunca procurou isso?
Sim, aconteceu no filme “O Kali, o Pequeno Vampiro” (2013). Eu queria a voz de alguém idoso e carismático, no Canadá sugeriram o ator Christopher Plummer, que aceitou e fez um trabalho excelente. Foi a minha única experiência com alguém conhecido.
Valeu a pena?
Sim, mas estou satisfeitíssima com as vozes que tive. Neste filme, por exemplo, sou eu e o Abi, não somos atores nem conhecidos por isso, mas não poderia ter escolhido melhor.
O que pensa daqueles, que ao não serem críticos nem atentos ao cinema de animação, só prestam atenção a determinados trabalhos quando existe um prémio?
Essas pessoas não sabem que este tipo de conteúdo existe porque é pouco divulgado, as oportunidades de o mostrar são poucas. As televisões não o mostram, não o exibem porque financeiramente não lhes é apelativo, portanto o público comum não conhece e não tem acesso a esse conteúdo. Ao saberem do prémio, eventualmente vão ter curiosidade em vê-lo. Tento dar vários níveis de interpretação na linguagem que uso nos meus filmes, seja para um público leigo, que quer apenas ver um filme, seja para um público mais profissional, que procura um olhar mais técnico, concetual e artístico.
É difícil viver da animação em Portugal?
Sim, é possível trabalhando mesmo muito, especialmente na construção das coproduções porque isso melhora o orçamento, mas também exige muito mais trabalho. Consigo receber um salário, que não é muito grande, mas permite-me viver. Como não tenho filhos, consigo viver do meu trabalho, se tivesse uma família isso não seria possível, teria que procurar outras fontes de rendimento.
Em Portugal perdeu-se o hábito de ver curtas-metragens. Consegue encontrar uma explicação para isso?
Estamos a discutir a hipótese de o filme sair em sala cá em Portugal e o que os distribuidores nos dizem é que a curta foi substituída por anúncios o público prefere ver anúncios a um filme. O público foi formatado para um certo tipo de conteúdo em que não se importa a ser usado para ver anúncios e protesta quando há uma curta-metragem. Tudo isto vem de hábitos culturais que deviam ser melhorados, penso que é necessário trabalhar melhor a política cultural.
Já está a pensar no próximo filme?
Claro. Agora estou nas homenagens, o próximo vai ser uma homenagem à minha mãe, que tinha esquizofrenia. Ela era muito ativa e, apesar da doença, ninguém a conseguia controlar, fisicamente tinha mesmo muita energia. Quando ficou velhinha, perto dos 80 anos, apesar de ser diferente teve os mesmos problemas das pessoas normais, e deixou de poder andar. Aquela energia latente ficou difícil de gerir, tornou-se agressiva e frustrada. Eu estava sempre à procura de atividades para a distrair e descobri que ela podia desenhar no iPad. Ela nunca tinha experimentado desenhar. Eram desenhos de caras muito expressivas, quase infantis, mas muito fortes. Quero usar esses desenhos no filme. “As Caras da Mãe” é o titulo provisório.