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Entrevista a Vera Fernandes, fundadora da marca Buzina, e a Paulo Borges, responsável pela semana de Moda de São Paulo, onde a marca estará presente. 20 de Julho de 2022 Lumen Hotel, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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Em 2016, Vera Fernandes lançava a Buzina, uma marca portuguesa com tamanhos únicos e coleções limitadas. Mentor e diretor criativo da São Paulo Fashion Week, Paulo Borges começou sua carreira no mundo da moda nos anos 80, na Vogue Brasil.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Em 2016, Vera Fernandes lançava a Buzina, uma marca portuguesa com tamanhos únicos e coleções limitadas. Mentor e diretor criativo da São Paulo Fashion Week, Paulo Borges começou sua carreira no mundo da moda nos anos 80, na Vogue Brasil.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Da Joane de Vera ao Brasil de Tieta e Anitta: o encontro da Buzina com a São Paulo Fashion Week

Seis anos depois da estreia, a marca de Vera Fernandes parte à conquista da Semana de Moda de São Paulo, uma montra lançada por Paulo Borges. Em Lisboa, falou-se de novelas, consumo, Chanel e Anitta.

Ele maravilhava-se com cortejos nupciais na igreja da terra. Ela não perdia um casamento nas novelas. A moda insinuou-se sempre através de caminhos misteriosos e, talvez porque as coincidências não cabem na maior parte das histórias, aproximou-os até os juntar nesta manhã em Lisboa. Paulo Borges, fundador da São Paulo Fashion Week, e Vera Fernandes, fundadora da Buzina, a marca que se prepara para desfilar do outro lado do Atlântico, guiam-nos por uma conversa entre Portugal e Brasil, entre a Chanel e Anitta, entre a eterna curiosidade humana que nos faz comprar em excesso e os dilemas de um mundo que não precisa de mais roupa para ser feliz.

Paulo, falava desse jeitinho brasileiro tão característico. Como é que se geria esse jeitinho por volta de 1995, quando a São Paulo Fashion Week começou e se dizia que a moda era muito mais importante que os media?
Paulo — Não tinha media naquela época. Na verdade, eu comecei na moda em 1982, completamente ao acaso. Sou do interior do estado de São Paulo, de uma área do agronegócio, terra do café, da laranja, cresci no meio do mato. Mas sempre gostei. Acho que o que me aproximou da moda foram duas coisas, o teatro, que havia na minha escola, e o facto de a minha mãe ser muito religiosa. Desde pequeno ia à igreja e adorava ver casamentos. Todo o sábado a minha diversão era passar o dia na igreja vendo o casamento dos outros.

Já tinha aí muita moda.
Paulo — Era um desfile, inconscientemente. Tinha plateia que entrava, a família, a música. Adorava. Quando me mudei para São Paulo, fui ajudar um amigo que tinha uma marca de moda masculina. Ele queria fazer um desfile para lançar a coleção. Era tudo entre amigos. Mas como ia acontecer? Sou do signo de aries [carneiro], com ascendente em aries, com a lua em aries…

Teimosia absoluta, é isso? Ou determinação.
Paulo — É, não vi ninguém a fazer nada e em cinco minutos peguei na coisa. Você faz isto, você faz aquilo…Todo o mundo adorou. Não acredito em coincidências mas eu morava num prédio na Avenida Paulista onde morava a diretora da Vogue, a Regina Guerreiro. Eu nem sabia. Uns amigos meus tinham ido jantar a casa dela e ela falou que precisava de um assistente. Ela era muito famosa pelas brigas. Eles indicaram o meu nome. Eu era um moleque de vinte anos, imagina! Estava chegando, mas lá fui fazer a entrevista, esperei uma hora e meia por ela… Sabe “O Diabo veste Prada”?

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Foi tal e qual?
Paulo — É, poderia ser [risos]. O espírito era o mesmo. Em 1982 o Brasil era um país completamente diferente. Estava no final da ditadura, economia fechada, décadas de inflação, apesar de que hoje estamos a correr o risco de voltar a isso… Ela fez-me um raio-X. O que eu fazia, se eu era gay… Ela foi falando dela e eu fui-me encantando. Quis trabalhar na moda por causa dela, da personagem, não tinha interesse na roupa. Ela é uma biografia.

É curioso porque a Vera também não veio da moda, vem da Psicologia, e ambos de uma terra pequena.
Vera — Sim, eu penso como o Paulo, acho que não existem coincidências. A vida encaminha-nos e põe-nos nos sítios onde devemos estar. Formei-me em Psicologia, sempre adorei moda e sempre fui uma deslumbrada por novelas brasileiras.
Paulo — Está aí a ponte [risos].
Vera — Tenho 40 anos, era a minha ponte com o mundo. Na altura a novela brasileira entrava em casa todos os dias em horário nobre.

Entrevista a Vera Fernandes, fundadora da marca Buzina, e a Paulo Borges, responsável pela semana de Moda de São Paulo, onde a marca estará presente. 20 de Julho de 2022 Lumen Hotel, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

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E também havia muitos casamentos nas novelas.
Paulo — Sempre!
Vera — Quando casei, já tinha toda a gente dentro da igreja e comecei a chorar compulsivamente, porque estava a imaginar um final de novela, como se estivesse a fechar um capítulo. O meu vestido foi igual a um que a Carolina Dieckmann usou numa novela.

Feito pela Vera já?
Vera — Não. Já casei há 10 anos. A minha avó era modelista e sempre me pôs um gosto por roupa, era vaidosa mas eu extravasava criando personagens na minha cabeça e a imaginar como se iriam vestir em certos momentos. Eu fazia roupa não para bonecas mas para personagens. A minha ligação com o Brasil vem daí. Lembro-me de ver a Tieta, a Viúva Porcina….
Paulo — Odiada hoje no Brasil [risos]. Acabou com a carreira dela.
Vera — Mas ali era incrível! Acho que as coisas acabam por acontecer de forma natural.

Mas pelo menos no começo as pessoas não entendiam bem as suas criações, contava.
Vera — Lá está, eu também sempre estudei fora de Joane, tinha um estilo muito próprio. Recordo-me da minha avó engomar muito a roupa, e de eu achar que as peças ficavam melhor sem goma. Ou de usar materiais para forro que eu achava que podiam ser usados como roupa. Já tinha isto na cabeça quando surgiu a Buzina. Trabalho imenso tafeta, que na altura era usado para forros.

É aquela ideia de ser sustentável à força, de recorrer ao que hoje chamamos deadtosck porque não havia alternativa na altura.
Vera — Sim, é muito difícil criar uma marca, não tinha capital… Mas eu moro num meio em que em todo o lado há uma confeção. Muita da minha família trabalhava na Riopele, que fica a dois quilómetros de minha casa. Tinham venda ao público e no Natal davam tecidos aos funcionários. Criaram o terilene, que nos anos 80 foi um sucesso, que passou a ser um tecido de rico para pobre. Quando comecei a Buzina fui lá e disse que queria terilene e eles ficaram “mas para que queres isto?!” Comprei o stock quase todo, readaptei e ressuscitei. As pessoas da terra lembravam-se de já ter usado aquele tecido e viram como estava a reinventar uma coisa muito nossa. Acho que ajudou no sucesso. O dono da fábrica começou a mostrar-me artigos muito antigos, parados, foi por aí que comecei.

Nessa altura ainda muito longe de imaginar a internacionalização?
Vera — Acho que já pensava nisso. Quando me meto numa coisa é para levar a sério. Não estava de todo nos meus planos criar uma marca, mas depois de a ter criado… Nunca fui movida pelo dinheiro mas no meu íntimo achava que era possível ir além daquela grupo de amigas. Aliás, só assim as coisas fazem sentido. Quando investes, queres mais, até porque achava que a Buzina merecia.

Paulo, para quem hoje começa a vender como a Buzina com forte expressão online, que importância ainda pode ter esta passagem por uma Semana de Moda?
Paulo — Porque é que eu comecei a pensar numa Semana de Moda? Sempre fui muito curioso. Nos anos 80 até 90 fui assistindo desfiles em Paris, Milão, e cinco minutos depois a roupa já não me interessava mais. Era o ecossistema, aquilo que estava a acontecer, que não existia no Brasil. Ali eu entendi a importância de uma semana de moda. Eu costumo dizer que você não precisa de estar na moda e fazer desfile, há muitas marcas que não o fazem. Significa sim um momento específico em que você desperta em todo o mercado um trabalho todo em cadeia. Todo conectado. Desde a criação de um tecido, uma inspiração… Por mais que no final do dia todo o mundo faça uma roupa o ponto de partida é sempre diferente.

Essa teia de intervenientes revela-se em especial naquele momento?
Paulo — É, eu sempre pensei muito nessa cadeia económica. No Brasil a moda sempre foi uma das maiores economias. Sempre pensei numa Semana da Moda muito além de uma tendência. Esse ecossistema, esta cadeia sustentável de que eu falava há 30 anos e as pessoas não entendiam… É isso que me interessa e é isso que mantém uma Semana de Moda viva. Fala-se do fim da moda, do digital….

Do metaverso.
Paulo — Vai estar tudo junto, sem dúvida, do ponto de vista organizacional. Essas novas tecnologias estão desconstruindo uma cadeia. Se pensarmos bem, o prêt-a-porter começou apenas em 1973. A questão do vestir o ser humano é milenar, a moda é uma fotografia de um tempo, a roupa sempre determina tudo, o tempo, a classe social, a situação do país. É nisso que eu acredito na moda. Primeiro, é uma potência produtiva, tem uma capacidade de inclusão muito pouco comparável com outros meios produtivos e culturais. Traz uma riqueza ancestral.

Ainda pouco entendida?
Paulo — Pouco valorizada. Dos anos 80 para cá a moda quis expandir-se, criou em si o próprio processo do fast fashion, quis vender rápido.

Entrevista a Vera Fernandes, fundadora da marca Buzina, e a Paulo Borges, responsável pela semana de Moda de São Paulo, onde a marca estará presente. 20 de Julho de 2022 Lumen Hotel, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

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Tornou-se demasiado autofágica?
Paulo — Tão autofágica que se esgotou. E como todo o movimento de vida quer voltar. Acho que nos jogámos de tal forma para o mundo, muitas vezes de forma gananciosa, que isso esgarça um processo equilibrado.

Coleções em número limitado, drops de vez em quando, são uma da marcas da Buzina. É o caminho que faz mais sentido neste contexto? Como se gere este desejo da eterna novidade enquanto o mundo nos pede para consumir menos?
Paulo — O próprio movimento da Buzina é esse, já começa com outra mentalidade. Você quer ser uma marca gigantesca, Vera?
Vera — Não tenho essa ambição.
Paulo — No início da SPFW, quando tínhamos grandes marcas, todos queriam ser gigantes. Se perguntar hoje, mais ninguém quer ser gigante. As pessoas querem ser felizes.

Já não é preciso apontar a um império de moda para singrar?
Paulo — Se ficar feliz com isso, OK, mas isso tem outra demanda de mundo porque o mundo está a questionar o consumidor. Na etiqueta tem o QR Code, com a informação toda. A escolha é mais difícil porque é mais cara, tal como o nosso primeiro celular, que era caro, pesado e esquentava a orelha, depois já não.

Acredita que essa escolha diferenciadora, que hoje para muitos ainda é mais cara, pode tornar-se mais acessível e generalizada?
Paulo — Temos a ideia de que só é valioso aquilo que é caro. De uma forma geral se colocar três t’shirts brancas, uma a 50 reais (feita numa alta produção na China ou Bangladesh), outra a 100 e outra a 150, que é 100% sustentável, tenho a certeza absoluta que a pessoa ainda vai escolher a de 50, apesar de dizer que é sustentável.
Vera — Eu costumo dizer que para mim vender é o mais fácil. É muito fácil vender. Eu posso fazer a coisa mais básica e nós vendemos. Estamos formatados, as pessoas veem uma influencer com uma roupa e compram. O que é o trabalho mais difícil da Buzina? Explicar às pessoas que se sou sustentável não tem apenas a ver com a matéria-prima. Tenho costureiras bem pagas, que conhecem a peça do princípio ao fim, e queria dar um valor final que fosse aceitável, porque também não entedia os grandes designers que iam comprar tecidos ao mesmo sítio que eu e praticavam preços exorbitantes.

Diferenciar sem que esse produto se tornasse inacessível?
Vera — A minha maior frustração seria comprar roupa inatingível, que as pessoas não vestissem. Esse equilíbrio é que foi difícil. Atualmente as pessoas sabem que quando compram uma peça da Buzina ela não existe, é produzida para aquela pessoa. Ela tem a responsabilidade sobre aquela encomenda.

Esse regime de pré-encomenda, ou seja só é produzido de facto a quantidade pedida, é decisiva na mudança de paradigma?
Vera — Temos que educar um pouco as pessoas, o dinheiro não se pode sobrepor a tudo. A Buzina quer mostrar que não é inatingível e que é possível ajudar toda uma cultura da marca. Estas pessoas que trabalham comigo vibram tanto como eu em cada passo que dou. Ganhava muito mais dinheiro se mandasse um destes vestidos para produção e fizesse uns 100? Claro que sim. Mas não é o meu objetivo. Faço toda a minha produção num raio de 11 kms.
Paulo — É a economia circular. Tem um estudo que fala que o mundo só vai encontrar equilíbrio quando mudar o processo de pensamento económico. O capitalismo não cumpriu o papel dele. Os ricos estão mais ricos e os pobres mais pobres. Há um novo mundo, que é de enriquecer quem está ao meu redor, seja na roupa ou na comida.

Paulo, como chegou ao trabalho da Vera?
Paulo — Primeiro, elas chegaram até mim.
Vera — Muito atrevidas [risos]
Paulo — … E acharam que era muito difícil chegar até mim. Segundo, eu sou louco por Portugal. Já tivemos estilistas portugueses, espanhóis, argentinos. SPFW se construiu com alguns valores que outras semanas não pensavam, vinte anos anos.

Por exemplo?
Paulo — A questão da sustentabilidade. A semana tem um tema. O meu trabalho aqui não é da roupa, a nossa ideia foi trazer pauta através do tema, transformar a cultura. Moda são pessoas, pessoas são comportamentos, comportamentos são épocas. Antigamente a moda ficava um ano antes … Se hoje você conseguir ficar 15 dias antes, 15 minutos antes da informação, essa é a grande revolução. Estou sempre aberto para colocar essas mudanças no processo. Paris vai ser Paris a vir a inteira, você pode pagar para desfilar em Nova Iorque, mas como damos espaço aos novos?

Entrevista a Vera Fernandes, fundadora da marca Buzina, e a Paulo Borges, responsável pela semana de Moda de São Paulo, onde a marca estará presente. 20 de Julho de 2022 Lumen Hotel, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

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Tem resposta para isso?
Paulo — Acho que a SPFW faz isso. Trabalhámos muito a diversidade. Brasil é feito de pretos e indígenas, de gente invisibilizada, alvo de racismo violento. Em 2000, quando entrou a internet no Brasil fomos logo para o digital e transmitimos a semana online desde 2001. A imprensa internacional achava que a moda tinha que ser fechada, que não se podia fazer aquilo.

Ainda há muito essa ideia de gate keeping? De preservação do status quo?
Paulo — Agora a moda está aprendendo. O Brasil é um país enorme, se a gente queria mesmo criar uma cultura de moda no país… Até aos anos 90 pensavam que só o que vinha de fora era bom.

Aliás, durante anos o país era sobretudo conhecido por exportar grandes top models.
Paulo — E isso começou com a SPFW. Ninguém se via. Havia uma invisibilidade criativa. Quando comecei, por exemplo a indústria têxtil não conversava com o estilista. Trabalhei todas as áreas, percorri todo o ecossistema.

A Vera também sentia essa falta de comunicação? Que estações foram mais difíceis neste processo?
Vera — O que acho atualmente é que não faltam marcas de roupa, qualquer pessoa pode produzir um vestido. Mas é importante ter um ADN, uma história, um conceito definido. Nem toda a gente em Portugal tem acesso à moda mas tem acesso à Zara. As pessoas metem tudo no mesmo saco. É importante perceber que a moda vai muito além do que vestimos. A Buzina começou pelas campanhas, pela comunicação. Eu crio apenas o conceito. É esse o meu papel. Depois há um vestido da Buzina e outro igual, dez euros mais barato, e as pessoas compram o outro. É essa cultura que ainda não há. As pessoas não querem saber, só procuram andar iguais às influencers. Mas isso é o mais fácil, como digo. No primeiro desfile que fiz de ModaLisboa quis que todas minhas clientes estivessem sentadas na plateia. Para mim quem conhece, quem compra, é que deve ir ver o desfile.

Como se conjugam os grandes compradores com as estrelas que trazem essa visibilidade útil?Vera — Nunca foi estratégia da Buzina passar por influencers. Felizmente fazemos campanhas cada vez mais consistentes, porque quero que a marca deixe um registo. Quero que as pessoas se identifiquem. Quando fiz a ModaLisboa já vendia, tinha público, só queria o selo de qualidade do meu país

Era um reconhecimento importante para si?
Vera — Exatamente. E pensando na internacionalização, o Brasil diz-me muito. Queria tentar por aqui. Mas ainda há medo de arriscar, está tudo muito formatado e os novos designers não têm espaço.

O que sentia que a travava mais? Era não vir da moda? Ser de uma terra pequena?
Vera — Durante muito tempo achava que a formação em moda era muito importante, agora acho que ter bons valores é mais.
Paulo — Completamente.
Vera — A marca não é criada em função do dinheiro mas claro que quero que as pessoas vistam o que faço. E que não fique ali, que a história circule.

Ainda comparam os seus vestidos a “sacos de batatas”?
Vera — Sim, porque lá está estou num meio pequeno, faço roupas sem forma, sem tamanhos. Tenho um publico muito fiel de compradoras que fazem o negócio crescer. Tiro-lhes o chapéu porque acho que consegui incutir-lhes alguma cultura de moda. Pensar que a gordinha ou a magrinha podem vestir isto. As pessoas dizem que não são mas são muito preconceituosas. Compete-nos a nós não deixar margem para isso. Se nos questionam muito é porque também não são o nosso público alvo. Chocou-me quando me apercebi o quão fechada era a moda.

Paulo, é possível apaziguar este encontro entre a moda vestível e que desfila e produz espectáculo?
Paulo — Acho que nada vai sumir, as coisas vão coabitar. Vai continuar a ter as marcas de luxo, com uma linguagem cada vez mais jovem, a rua a entrar nas grandes maisons de moda. Só que esse território é apenas um pedaço do mundo, vai poder ajudar na transformação da cultura, acho, porque essas marcas têm mais poder para educar toda esta cadeia de consumo. O facto é que o mundo não precisaria de mais nenhuma peça de roupa. Já tem roupa para o resto da vida. Então porque produzimos? Porque a roupa não está só ligada ao produto, está ligada à alma. Uma peça mexe com você.

Esse lado afetivo é difícil de domesticar no ser humano, mesmo no mais sustentável?
Paulo — É o que movimenta o ser humano. O teu olho cansa. Se o ser humano parar de ter curiosidade tudo acaba, é isso que está ligado à moda. As redes trouxeram uma velocidade de conexão. Hoje qualquer negócio é possível, eu posso controlar o crescimento que quero. Dantes para ser bom era preciso ter de lojas.

Nem se conseguia produzir em pequena quantidade.
Vera — Atualmente a Buzina não tem coleções passadas. Tem coleções que são intocáveis em qualquer altura. Queres comprar algo que saiu há dois anos, estão lá os modelos, continuam a ser atuais se conheceres a história.
Paulo — Sabe há quantos anos a SPFW não fala mais de estações? Há 15 anos. Não tem mais sentido dividir em primavera ou inverno. Deu abertura para que cada negócio se moldasse na sua necessidade. Uma marca faz algo que vai vender daqui a pouco.
Vera — Muita gente acha que a moda, que querer ter algo bom, é ostentação. Discordo. O meio onde nasci é pequeno. Há uns tempos dizia ao meu pai que queria uma Chanel.Ficou escandalizado quando soube o valor. No entanto deu um cordão de ouro à minha mãe que custou o dobro. É da perceção. Há hoje uma ideia de investimento que não havia.

Prevalece muito a ideia da culpa no uso dado ao dinheiro? Falamos de países que não são ricos.
Vera — Mas a ostentação já existia.
Paulo — Hoje o Brasil tem diferentes cenas muito claras. Tem a antiga elite que ainda está no mood das roupas de alta griffe, que paga 50 mil reais por uma bolsa da Chanel. Tudo bem, mas acho que esse mundo acabou. Depois tem um novo chique cool, que envolve arquitetura, modernismo. Isso também está mais apagado. Chique mesmo hoje é o purismo da nossa criatividade brasileira. Uma geração inteira que já está no meio do campo e que já paga caro para isso. São jovens que vêm para quebrar, da periferia, de menor poder aquisito mas alto poder de influência, como a Anitta. Eu peguei hoje o resultado de media da SPFW e os seis desfiles mais vistos são de jovens ou de desfile com propósito. Os outros grandes nomes não causam esse impacto.
Vera — Mas lá está, quando dei o exemplo da Chanel é pela história, pelo modelo icónico, não é por ter poder de compra.
Paulo — Mas sabes que isso é uma pessoa em mil [risos].
Vera — Mas isso é a minha luta. Gostava que se comprasse mais com propósito. Uma marca tem obrigação de criar valor para não ser só mais uma roupa.
Paulo — Olha, mas eu vou jogar uma provocação: essas marcas, sem critério de julgamento, elas entenderam que podiam faturar muito mais se esquecessem esse princípio. Essa bolsa hoje da Chanel é feita na Índia, no Paquistão, em alta escala e existe todo um mercado paralelo onde são vendidas.
Vera – É curioso porque vinha de viagem do Norte, aqui para baixo, e tenho um modelo best seller, o Clarisse, e esta semana estive tentada a acabar com ele, achei que ia cair como uma bomba. [entretanto, não estranhe se já não conseguir comprar o modelo]

Gosta de ver muita gente com roupa da Buzina mas não assim tanta a gente?
Vera – Porque começa mesmo a fazer-me confusão vender tanto. É muito difícil gerir. Pensei em acabar
Paulo — Estamos numa fase de transformação. Sabemos que jogaram uma montanha de roupa no deserto do Atacama. É uma imagem monstruosa. Essas coisas não poderão mais acontecer. Como fazer isso?
Vera – Temos mesmo que ter os valores no sítio.

Mas como o Paulo dizia, o ser humano está condenado à curiosidade, para o bem e para o mal.
Vera — Eu tinha um professor de História que nos dizia que um dia ia ser chique voltar a ser agricultor. Isto há uns 30 anos. Tinha razão.

Entrevista a Vera Fernandes, fundadora da marca Buzina, e a Paulo Borges, responsável pela semana de Moda de São Paulo, onde a marca estará presente. 20 de Julho de 2022 Lumen Hotel, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

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Se os anos 90 voltaram, tudo volta.
Paulo — Há uns anos que digo isso, a gente voltou para o início dos anos 90, em todos os aspectos, pelo menos no Brasil, mas hoje com um dano maior. Há mas gente, problemas amplificados. O centro de São Paulo parece um cidade em guerra, sitiada, com famílias que ficaram miseráveis. Na edição de novembro do ano passado, tinha que fazer um trajeto na cidade e falei que não queria trabalhar mais com moda depois de ver o que via nas ruas. É muito complexo ver a miséria dos refugiados.

Como se resolve esse dilema? Esse sentimento de frivolidade quando se pensa em moda.
Paulo — É, como é que vai pensar numa coleção assim? É aí que você tem que ter muita certeza dos seus valores a longo prazo. É isso que me segura na moda, é entender porque que fiz o que fiz nesses 40 anos. Se não tivesse sido eu na moda o Brasil não estava a discutir o que está hoje. Eu não sou estilista, o meu papel é conexão, mentalidade. Porque é que Paris não institui uma regra nas passerelles a bem da equidade racial? A gente fez. A Gisele começou a desfilar com 13/14 anos. Na SPFW hoje ninguém desfila com menos de 16. Mas só a gente fez isso na época. Assumimos como regra. Em 2020, depois do caso George Floyd, o ambiente estava muito forte, dissemos chega. Era preciso que 50% a desfilar fosse negro e indígena. Esse é o meu papel. Com o mundo como está, é complicado falar de moda. A maior onda de refugiados e a gente falando de moda? O propósito para mim hoje é tudo.
Vera — Não dá para ser de outra maneira.
Paulo — Antes de ter blogueiras abrimos o nosso site e as pessoas podiam escrever o que achavam dos desfiles. Imagina, a Camila Coutinho nasceu ali. Aí vieram as influenciadoras, o jornalismo perdeu muito terreno, depois voltou. O facto é que temos um alcance digital maluco. Nesse período o SPFW tem 9 biliões de visualizações. Mesmo que superficial aos olhos de algumas, é aqui que entendemos a importância disto e como podemos passar mensagens e apontar coisas que a moda não pode mais fazer.

Todas as indústrias passam por esta reflexão. O setor tem noção de que há aspectos que o cliente já não aceita?
Paulo — O mundo mudou e a nova geração está aí. As empresas que não acompanharem a mudança vão sumir como os dinossauros.
Vera — A cultura de moda tem que ser mais abrangente.As pessoas muitas vezes atropelam-se e respeitam pouco o trabalho dos outros. E a culpa é nossa que compramos uma cópia do trabalho dos outros. Sabes o que estás a comprar?

Mas percebe que possam ir ao fast fashion?
Vera — As pessoas podem não ir à Zara. Dantes precisavam de ter roupa de semana, de domingo, hoje não. Vão a essas lojas e depois têm um guarda roupa atulhado de roupa. As pessoas perderam a noção da realidade. As influencers viraram supermercados, são prateleiras com roupa.
Paulo — Eu sempre questiono muito a educação. Levei uma parte da SPFW para dentro de uma universidade para trabalhar todas as áreas de ensino. Saíram de lá extasiados.
Vera — A minha modelista desfila sempre comigo…e nem sabes como vibra.

A Salomé?
Vera — Sim, e ela merece lá estar. Ela achava que era uma coisa que não podia acontecer. Como não? O amor que deposita a fazer as coisas é incrível. A velha guarda acha que isto é uma aberração. Não sou nenhuma iluminada. Basta olhar à volta e ver que as coisas estão a mudar.

De parte a parte, o que podemos esperar da próxima SPFW?
Vera — Claro que vai haver novidade. Para já, agradecer ao Paulo o voto de confiança e depois quero aproveitar o palco para mostrar uma coleção mais consistente ainda. Mudar alguns tecidos, retomar outros. Quero chegar lá e marcar o ADN da marca, que veio para ficar. Acredito que há publico no Brasil. E depois há todo o afeto que tenho pelo país. Estou onde quero estar. Queria começar por lá, não fui descartando opções.
Paulo — Querer é poder [risos].

Já tem tema para a edição?
Paulo — Impactos. Estamos a falar da responsabilidade de cada um, que pactos estamos dispostos a fazer.
Vera — Fui a São Paulo ver se estava conectada com aquilo também e tive a certeza de que era bom estar ali.

Só falta ver Carolina Dieckmann e outras atrizes de novela com as suas roupas?
Vera — Pelo simbolismo, por me lembrar que em algum dia em pequenita aquilo podia acontecer… Não vou mentir, eu ia gostar.

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