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Acusado de populismo, Javier Milei tentava assumir-se, sempre que tinha oportunidade, como um político antissistema, quebrando convenções, usando palavrões e agindo de forma impulsiva

Getty Images

Acusado de populismo, Javier Milei tentava assumir-se, sempre que tinha oportunidade, como um político antissistema, quebrando convenções, usando palavrões e agindo de forma impulsiva

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Da televisão à presidência da Argentina. Quem é Javier Milei, o economista que prefere "a máfia ao Estado"?

Ganhou fama a fazer comentário sobre economia na televisão e foi uma estrela em ascensão na política. Com um discurso antissistema, Javier Milei vai governar a Argentina, um país em crise.

“Se eu tivesse de escolher entre o Estado e a máfia, escolhia a máfia. Porque a máfia tem códigos, a máfia cumpre, a máfia não mente.Num estilo provocatório, aquele que será o novo Presidente da Argentina, Javier Milei, defendia, durante uma entrevista, a mínima intervenção do Estado na economia, como fez durante toda a sua vida de economista. Assumindo-se como um “libertário” e um “anarcocapitalista”, o Chefe de Estado eleito promete mudar radicalmente o país e transformá-lo numa “potência”.

Para isso, Javier Milei, nascido a 22 de outubro de 1970 num bairro de classe média de Buenos Aires, vai aplicar a teoria económica em que tanto acredita, após ter vencido as eleições presidenciais argentinas deste domingo com cerca de 56% de votos. Num discurso da vitória em que se dirigiu inicialmente aos “argentinos de bem”, o economista apontou como solução para a profunda crise económica que a Argentina atravessa, com uma inflação galopante, a “liberdade”. “Um governo limitado [mais pequeno], o respeito pela propriedade privada e o comércio livre” são algumas das suas ideias.

Em concreto, o economista deseja mudar a moeda oficial da Argentina do peso — que chegou a adjetivar de “excremento” — para o dólar norte-americano e “queimar” o banco central argentino, num processo que diz que trará estabilidade. No seu livro O Fim da Inflação, lançado este ano, Javier Milei clarificou que a expressão condensa a ideia de “deixar todo o entulho para trás”.

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A festa no quartel-general do partido Liberdad Avanza

Bloomberg via Getty Images

Foi com estas ideias económicas menos moderadas e com uma retórica inflamada que Javier Milei se tornou famoso. Em 2015, pela mão do milionário Eduardo Eurnekian que detém as empresas que gerem os aeroportos argentinos e o América TV — um dos canais de televisão mais populares argentinos —, o economista começou a fazer comentário nos programas de informação. Acabaram por trocar palavras mais acaloradas já Milei se apresentava como candidato presidencial. “Tenho 3.700 trabalhadores que fazem parte da empresa. Um acabou falhado, o que querem que faça?”, comentou o empresário, para levar como resposta de Milei: “Tem razão. Saí do setor privado. Acho que é uma piada engraçada”. O vínculo laboral já estava desfeito, depois de Milei ter começado a trabalhar para Eurnekian na área financeira em 2008, para anos mais tarde lhe ter dado espaço televisivo.

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A vida antes da televisão de Javier Milei

Conquistando grandes audiências, o estilo mais contestatário de Javier Milei ganhava adeptos. Pelo seu cabelo peculiar e as declarações polémicas sobre a sua vida sexual e pessoal, o economista escandalizava os argentinos, ao mesmo tempo que se tornava cada vez mais reconhecido. A história de Conan, o cão que morreu em 2018 e que diz ter clonado através de um método experimental, foi das que mais impressionou a opinião pública.

Vivendo com quatro cães idênticos a Conan, o novo Presidente da Argentina considera-os os “seus filhos” e desenvolveu uma forte ligação com os animais. Javier Milei garante que continua a falar e a estar ligado a Conan através de uma técnica que aprendeu com uma “médium” especializada em “comunicação interespécies”. 

Tudo isto fez com que ganhasse a fama de ser um “louco”. Javier Milei nunca se preocupou com essa designação. “Não tenho medo de nada”, contou numa entrevista, em que lembrou os maus tratos físicos e psicológico que sofreu quando era criança, principalmente por parte do pai, um condutor de autocarros em Buenos Aires. “Ele sempre me disse que eu era lixo, que ia morrer de fome e que ia ser um inútil.”

[Já saiu: pode ouvir aqui o segundo episódio da série em podcast “O Encantador de Ricos”, que conta a história de Pedro Caldeira e de como o maior corretor da Bolsa portuguesa seduziu a alta sociedade. Pode ainda ouvir o primeiro episódio aqui.]

Além disso, todas as “sovas” que levou, quando era criança, “fazem com que não tenha medo de nada” — nem de se expor ao ridículo. “Quando se vem de uma situação de alto stress onde todos estão assustados e ninguém sabe o que fazer, resolvo como se fosse nada”, explicou Javier Milei, numa alusão às dificuldades que enfrentou quando era miúdo. “Afetou a minha personalidade.”

Ainda que admita que a relação com os pais foi sempre disfuncional e que esteve anos sem falar com eles, os dois estiveram presentes na sede do quartel-general de Javier Milei este domingo para assistirem à vitória do filho. Quem também esteve presente foi a irmã, Karina Milei, que foi um dos seus braços direitos na campanha eleitoral e com a qual sempre manteve uma boa relação.

"Quando se vem de uma situação de alto stress onde todos estão assustados e ninguém sabe o que fazer, eu resolvo como se fosse nada"
Javier Milei, o novo Presidente da Argentina

Para o economista, a irmã é o “ser humano mais maravilhoso do planeta”. Licenciada em relações públicas, Karina é sempre quem tem a “última palavra” sobre as suas decisões e quem ajuda a determinar o estilo do irmão, claramente inspirado nas estrelas de rock, especialmente Mick Jagger, do qual os dois são fãs. Preferindo ficar nos bastidores, isso não aconteceu este domingo. A mulher de 51 anos subiu ao palco para chamar o novo Presidente argentino ao púlpito no quartel-general. No discurso à nação, Javier Milei voltou a agradecer-lhe: “Obrigado à minha irmã. Sem ela nada seria possível”.

Numa entrevista ao jornal Clarin, Karina Milei confessou que sempre “acompanhou” o irmão, que durante anos jogou futebol (era guarda-redes), modalidade que deixou de praticar quando era adolescente. “Eu ia sempre com ele aos treinos e vestia o disfarce das mascotes das equipas em que jogou”, relatou.

Depois de abandonar o futebol, o recém-eleito Chefe de Estado dedicou-se à economia. Licenciou-se na universidade de Belgrano, em Buenos Aires, e seguiu na academia, dando aulas no ensino superior. Paralelamente, trabalhava em empresas e proferia conferências. Até que se estreou na televisão. A política chega tarde à sua vida — apenas em 2021 — e, segundo a irmã, nem sequer era necessária para o seu bem-estar. “Ele podia tranquilamente a fazer o que fazia, que vivia muito bem.”

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Javier e Karina Milei no discurso da vitória deste domingo

Getty Images

Da televisão à presidência: como se fez o político Milei?

Entre comentários chocantes — um dos quais em que confessa ser professor de sexo tântrico — e declarações polémicas sobre o estado da economia na Argentina, Javier Milei foi ganhando uma legião de fãs, que chegavam mesmo a debater as suas palavras nas redes sociais, plataformas nas quais o economista também se tornou popular.

A gestão da imagem de Javier Milei nas redes sociais foi uma das chaves para o sucesso. Vários jovens, afastados da televisão, tomaram conhecimento daquele economista com aparência de rock star no YouTube, Instagram e Facebook, principalmente decorrente do isolamento social gerado pela pandemia de Covid-19. Com uma linguagem simples e agressiva, o candidato chegava às camadas mais jovens, mesmo que muitos o ridicularizassem.

O discurso do economista ressoava nos jovens, que desejam um futuro melhor. É o caso da jovem argentina de 20 anos, Carolina Carabajal, que, em declarações à Agence France-Presse, comentou que as “propostas de Milei de levantar a Argentina” davam esperança aos mais novos de ficarem no seu país natal. Caso contrário, “se isto continua assim, muitos vão abandonar o país.”

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Apoiantes de Milei este domingo

AFP via Getty Images

Marcada pelo peronismo, um movimento político nacionalista que engloba várias correntes ideológicas, a política da Argentina parecia não dar resposta aos problemas da população, particularmente da mais jovem. Com uma taxa de pobreza crescente, as soluções pareciam não chegar. Este clima de descontentamento social foi terreno fértil para um político com o discurso de Javier Milei florescer e ter sucesso.

O contexto económico-social, a fama que foi obtendo na televisão e o desejo de entrar na vida política levaram a que, em 2021, criasse o partido Liberdade Avança, com o objetivo de terminar com a “casta” dos políticos e levar a cabo políticas de cariz liberal. Antes disso, tinha feito parte do Partido Libertário, mas abandonou-o por incompatibilidades com a direção.

Num primeiro desafio, o economista candidatou-se às eleições municipais de Buenos Aires de 2021 e ficou em terceiro lugar, com 13,64% dos votos, um resultado que foi tido como surpreendente. Na altura, Javier Milei já parecia antever o que aí vinha. “Este é o primeiro passo em busca da reconstrução nacional, o primeiro passo para voltar a que a Argentina seja um potência”, sinalizou em 2021, num discurso que encontra paralelismo com o da vitória nas eleições presidenciais.

“Eu já disse: não vim para guiar cordeiros, vim para despertar leões. E os leões estão despertos”, proclamou, numa frase que viria a ser um dos chavões do seu partido. Aquele animal converteu-se mesmo num dos símbolos de Javier Milei, que o acompanhou nas eleições legislativas no final de 2021 (onde foi eleito para o congresso argentino) e, agora, nas presidenciais.

"Milei é profundamente antidemocrático. Sente-se muito incomodado quando o contrariam, não gostam nada quando digam uma coisa distinta ao que ele pensa"
Carlos Maslatón, advogado argentino

Como defendia um Estado pouco interventivo, Javier Milei considerava que o salário que usufruía como deputado era “injusto” — e portanto decidiu fazer um sorteio para oferecê-lo a alguém de forma aleatória. Na primeira vez que o fez, inscreveram-se um milhão de pessoas para puderem ganhar 205 mil pesos argentinos (o equivalente, na altura, a cerca de 1.750 euros).

Acusado de populismo, Javier Milei tentava assumir-se, sempre que tinha oportunidade, como um político antissistema, quebrando convenções, usando palavrões e agindo de forma impulsiva. Mesmo sendo mais conservador no âmbito social — é crítico do direito ao aborto e propõe revogá-lo nos próximos anos —, o economista chegou a propor um mercado de venda de órgãos livre. “Há 7.500 pessoas a sofrer, à espera de transplantes. Alguma coisa não está a correr bem. O que proponho é procurar mecanismos de mercado para resolver o problema.”

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"Eu já disse: não vim para guiar cordeiros, vim para despertar leões. E os leões estão despertos"
Javier Milei, novo Presidente da Argentina

Embora sendo bastante criticado por algumas suas declarações como deputado, o economista viu nas eleições presidenciais de 2023 uma oportunidade. Não só o país estava com a economia em chamas, como politicamente ia ganhando cada vez mais capital. No início deste ano, decide candidatar-se pelo partido Liberdade Avança e surge como um dos favoritos, mantendo-se fiel ao seu estilo e à sua retórica mais inflamada.

Enquanto candidato presidencial, o escrutínio aumentou e várias das suas posições foram discutidas em praça pública, tais como a negação das alterações climáticas, a sua posição abertamente contra a educação sexual nas escolas e a sua luta contra o “marxismo cultural”. Apelidado de “louco” pelos críticos que também notavam a falta de experiência dele, Javier Milei foi somando polémicas.

Um advogado argentino e ex-militante do Liberdade Avança, Carlos Maslatón, não tem dúvidas de que “Milei é profundamente antidemocrático”. Contou ao El País como um dia, num programa de rádio, expressou desacordo com uma ideia de Milei e este, furioso, levantou-se e saiu do estúdio, ficando três semanas sem lhe falar. “Sente-se muito incomodado quando o contrariam, não gosta nada que digam uma coisa distinta ao que ele pensa”, afirmou ao El País, Carlos Maslatón.

Foi, assim, como uma espécie de cartão amarelo ao seu estilo mais radical que a primeira volta da campanha presidencial lhe deu, contrariamente ao que antecipavam as sondagens, um segundo lugar, com cerca de 28%, a sete pontos percentuais do candidato da continuidade peronista, Sergio Massa. O seu sonho de “despertar leões” parecia estar em risco.

"Milei é profundamente antidemocrático. Sente-se muito incomodado quando o contrariam, não gostam nada quando digam uma coisa distinta ao que ele pensa"
Carlos Maslatón, advogado argentino

Javier Milei moderou o discurso. Como escreve a Folha de São Paulo, o candidato conseguiu aproximar-se do eleitorado do centro-direita, ao mesmo tempo que teve o cuidado de não afastar os mais radicais e que se entusiasmavam com o político “anticasta”. Deixou cair, por exemplo, a defesa da venda de órgãos: “Não faz parte da nossa agenda, nem das nossas propostas de campanha”.

A 10 de dezembro, o economista ultraliberal que se moderou na reta final da campanha vai chegar a Presidente da Argentina. Longe do peronismo, o país vai agora experimentar as políticas de alguém impulsivo, que gostava de provocar e que se assume abertamente como antissistema.

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