Foi como um fantasma que aparecia e desaparecia sem deixar rasto. O misterioso jornalista e aventureiro italiano Cesare Dante Vacchi viajou para Angola com a sua namorada francesa quando rebentou a guerra. No dia 1 de abril de 1962, cerca de um ano depois de se iniciarem as hostilidades, começou a acompanhar um batalhão de tropas portuguesas em Nóqui, no norte do país, junto à fronteira com o Congo.
Mas ele era mais que apenas um repórter. Tinha treino militar desde o tempo do fascismo italiano. E poderá ter passado pela Legião Estrangeira. Homem relativamente baixo, com menos de 1,67m, rosto magro, Vacchi era um civil, mas era um duro. Mais duro que os militares portugueses com quem seguia. Um dia, a meio de um percurso, o grupo em que seguia sofreu uma emboscada de guerrilheiros angolanos. E então percebeu que as tropas portuguesas não estavam preparadas para o combate de guerrilha. Ainda usavam velhas espingardas Mauzer e capacetes de aço, armamento obsoleto do tempo da II Guerra Mundial.
A partir desta experiência, havia de nascer uma nova força especial: os Comandos. António Neves, tenente-coronel na reforma, estuda há três anos o papel de Dante Vacchi na criação daquela tropa de elite. O militar fez o curso de comandos em 1970 e interessou-se pela história do homem que deu origem à temida força anti-guerrilha durante a Guerra Colonial. “Não tinha interesse nenhum no Dante Vacchi a não ser no seu papel na origem dos Comandos — que não passa de quatro ou cinco meses –, mas comecei a investigá-lo e percebi que era mais interessante que isso, era um homem do mundo, um nómada, metia-se em todo o lado no seu trabalho de correspondente”, diz António Neves ao Observador.
A história do jornalista que criou os Comandos é uma imensa sombra, sobretudo o antes e o depois de ter lançado as bases da tropa especial, em Angola. A ligação entre o italiano e as tropas portuguesas — curta, mas intensa — também nunca foi contada em pormenor. Imagens do próprio fotógrafo são raras, quase não há registo gráfico da sua existência. “O Dante Vacchi nunca entrava em fotos, nunca ia a eventos em que pudesse ser identificado”, recorda ao Observador o coronel Raul Folques, que se cruzou com o jornalista em Zemba, no primeiro curso de Comandos, em 1962.
Mas o secretismo vai além da sua imagem. Do espólio do jornalista, também não há sinal. E mesmo quem privou mais de perto com o italiano perdeu-lhe o rasto. Fora os livros que publicou, Cesare Dante Vacchi é como um fantasma que deixou uma marca profunda no Exército para desaparecer de seguida. “É frustrante”, desabafa António Neves, que continua a procurar informações sobre aquele que pode ser considerado o pai desta tropa especial. Há, no entanto, “demasiados hiatos, falta muita documentação”, o que o impede de preencher os espaços em branco.
Cesare Dante Vacchi terá aterrado em Luanda no início da década de 1960. Chegou como jornalista. Queria viajar para o norte de Angola para fazer uma reportagem com as tropas portuguesas que combatiam na região de Nóqui, na margem do Congo, o rio que separa Angola daquela república africana. Com ele viajava Anne Dominique Gaüzes, fotógrafa de nacionalidade francesa, apelido alemão e com um percurso tão misterioso quanto o do colega. “Ele apareceu lá para fazer uma reportagem”, recorda o então alferes miliciano João Vieira Pereira, ao Observador, que no início da guerra comandava um grupo de homens em Nóqui. O antigo combatente conta que Dante Vacchi “era bem visto em Portugal pelo regime de Salazar e pela PIDE”.
“Para um jornalista, ainda para mais italiano, poder fazer uma reportagem com as tropas portuguesas em Nóqui era preciso ter o agreament [a concordância] da PIDE e o agreament do Estado-maior do Exército”, sublinha o coronel Raul Folques. Para o militar, Vacchi não chegou a Angola por acaso. “Em condições normais, um jornalista estrangeiro que viesse para Portugal — e estamos a falar do regime de Salazar — tinha de ser referenciado”, acrescenta o tenente-coronel António Neves.
Poucas semanas depois da emboscada que viveu junto das tropas portuguesas, Dante Vacchi passava a ter uma influência pouco comum para um estrangeiro, jornalista e civil: era um tipo extrovertido, que tinha sempre conversa, um bon vivant que ia contribuir para formar o primeiro grupo de Comandos portugueses. “Não me custa nada a aceitar que, aqui em Portugal, ele tivesse ligações a um qualquer serviço secreto, mas não tenho nenhuma evidência disso. Nem aqui nem lá, em Angola”, admite António Neves.
Tropas portuguesas arrasadas
Antes de saber como Vacchi acabou a formar os Comandos, há outro ponto sem resposta: como foi que o italiano conseguiu autorização para acompanhar os militares portugueses destacados no norte de Angola? Ninguém tem ideia. Nos registos oficiais permanece um vazio.
António Neves procurou nos arquivos do Secretariado Nacional de Informação — organismo que centralizava a ação de todos os ministérios de Salazar e tinha mão de ferro sobre a imprensa — e deparou-se com “dezenas e dezenas de referências a jornalistas estrangeiros creditados” para trabalhar em Portugal (no início da década de 60, Angola ainda era uma extensão da metrópole). “Dante Vacchi nunca aparece”. Mas a busca do tenente-coronel ainda mal tinha começado. Neves também vasculhou os arquivos do Governo Civil, a entidade do regime que nesse tempo era responsável por colocar os vistos nos passaportes. “Nada”. Pesquisou nos arquivos da PIDE e “nada”. Percorreu os arquivos do Ministério da Defesa, procurou pistas na Torre do Tombo, foi à Câmara Municipal do Porto para consultar revistas angolanas em busca de trabalhos do jornalista. Zero.
E é garantido que Vacchi esteve em Lisboa, antes e depois da sua incursão por Angola. O nome do italiano aparece, juntamente com outros jornalistas, numa entrevista a Marcelo Caetano quando este substituiu António de Oliveira Salazar na liderança do Governo, em 1968. O trabalho foi publicado na revista Flama em outubro. Ainda antes desse trabalho, em 1961, o jornalista assinou um artigo na revista Notícia com uma reportagem sobre o “palacete senhoril” em que vivia Salazar. Eram raras as vezes em que o ditador abria as portas da sua casa a um jornalista (em 1952, por exemplo, Christine Garnier tinha escrito Férias com Salazar). Mas, nos registos oficiais do antigo regime, garante António Neves, se alguma informação havia sobre a presença de Vacchi em Portugal, ela desapareceu.
“Em 1970, quando entrei para o curso de Comandos, ainda ouvi falar de um jornalista italiano que fazia mil e umas coisas, que tinha sido membro da Legião Estrangeira e combatido na Indochina e na Argélia”, recorda ao Observador o tenente-coronel Neves. “Mas isso era o que se dizia, porque ninguém o provou”.
Aos militares em Nóqui, o jornalista apresentava-se como ex-militar com experiência de combate na Indochina. Com base na sua investigação, António Neves conseguiu confirmar que Vacchi esteve no Líbano nos primeiros anos de confronto entre muçulmanos e cristãos. Também tinha assistido a confrontos militares no Médio Oriente e na Indochina. “Mas sempre como repórter, como correspondente, nunca como militar”. A experiência militar de Dante Vacchi começara muito antes, quando se voluntariou para o Exército italiano com apenas 15 anos.
Dante Vacchi: um jornalista a treinar comandos
O antigo miliciano do norte de Itália também acompanhou de perto a preparação de militares de elite franceses. E essa experiência terá sido fundamental para impressionar o comandante do batalhão português em Nóqui. Quando chegou ao norte de Angola, italiano, francês, inglês, alemão e árabe eram línguas que dominava. Mas não o português. Uma barreira que ultrapassou em poucas semanas. “Os palavrões que nós dizíamos, ele dizia-os também, em português da tropa, estivesse o general ou quem fosse”, conta Vieira Pereira.
A aproximação aos militares portugueses foi quase imediata: “A imagem mais vincada que tenho dele é a disponibilidade para nos acompanhar nas operações, durassem um dia, dois, três dias, dormir em qualquer lado como nós dormíamos — em cima de um ribeiro a correr, por exemplo — e comer a mesma ração de combate que nos era distribuída”, lembra o antigo oficial miliciano.
Ao mesmo tempo, Vacchi ia ganhando a “confiança” das chefias militares. Vieira Pereira recorda: “Ele era um indivíduo muito expansivo e foi-se familiarizando com o meu comandante de batalhão, o tenente-coronel Almeida Nave. Foram falando sobre táticas, sobre guerras, sobre movimentação no terreno”, continua Vieira Pereira, que haveria de tornar-se o braço-direito de Dante Vacchi no Ultramar. Já de pistola à cintura — uma arma cedida pelo Exército –, o jornalista “chegou a fazer demonstrações com soldados” para exemplificar como a preparação daqueles homens podia ser melhorada.
“O comandante foi sensível às sugestões de Dante Vacchi, ao ponto de o italiano sugerir que, se o comandante quisesse, ele estava disponível para dar-lhes uma instrução à imagem daquilo que tinha visto nos paraquedistas franceses ou na Legião Estrangeira”, explica António Neves ao Observador.
Já com a autorização do comandante de batalhão, Vacchi reuniria 40 homens, divididos em dois grupos, para começar a revolucionar a formação dos militares portugueses. “Aqueles dois grupos prepararam-se bem, havia treino físico, muita carreira de tiro, aprenderam a progredir na mata, a andar em silêncio”. Era o próprio jornalista quem, no terreno, com o apoio dos oficiais, dava orientações sobre como a instrução devia ser feita. Além disso, mandou arrancar as proteções dos jipes usados pelas tropas portuguesas, que impediam os militares de saltar rapidamente quando apanhados numa emboscada.
Era um contraste com a formação que tinham recebido em Portugal antes de embarcarem para Angola. E os resultados foram imediatos. “Em meia dúzia de dias, Vacchi transformou por completo aqueles dois grupos, que já se diferenciavam bem do resto do pessoal. Começaram a ir para a mata, foram alvo de emboscadas e a reação já era completamente diferente”, assinala António Neves.
Carta branca da hierarquia para dar instrução
As informações sobre a intervenção de Dante Vacchi chegaram a Luanda. Os relatórios sobre a situação dos militares destacados já referem a intervenção de “dois grupos de comandos de Nóqui” em incursões pelo norte de Angola. Mas as referências a um jornalista que estava a formar um grupo de tropas especiais pareciam não levantar ondas. É preciso ter em mente o “contexto” em que a guerra se fazia, ressalva António Neves: “Não havia nada. Os próprios homens que trabalharam com ele — e eu já falei com muitos — dizem que ele tinha bastantes ideias que, para nós, mais tarde, seriam consideradas elementares”.
No fundo, “naquele tempo, tudo o que viesse para melhorar a situação era aproveitado”. Mais do que consentidos, os resultados conseguidos por Vacchi foram apreciados pela hierarquia. De tal forma que, em meados de maio, cerca de um mês e meio depois de o jornalista ter chegado ao norte de Angola, e já depois de oficiais portugueses visitarem o acampamento de Nóqui, o comandante do batalhão foi convocado à capital. E devia levar consigo o italiano.
“Houve uma reunião entre o tenente-coronel Bettencourt Rodrigues, chefe do Estado-Maior do Quartel General de Angola, e o comandante de batalhão, que lhe descreveu tudo o que se passava” no acampamento a norte, conta o investigador António Neves. “O futuro passaria por criar um centro de instrução, devidamente organizado e estruturado, para preparar uma tropa especial com características próprias para andar naquele teatro operacional”, indica Bettencourt Rodrigues. Mas isso seria mais tarde.
No imediato, o Exército tentou aproveitar os ensinamentos de Vacchi. Numa “conversa de duas horas, muito interessante” — escreveu Bettencourt Rodrigues no seu diário, registando o encontro –, o italiano foi sondado pelo tenente-coronel sobre a sua disponibilidade para dar formação às tropas portuguesas. Vacchi avançaria rapidamente, assinando um contrato com o Exército onde se estabeleceu o seu salário (ia ser pago em dólares) e as condições para a colaboração.
A paternidade dos Comandos contestada
O primeiro curso oficial de Comandos foi dado em Zemba, cerca de 300 quilómetros a nordeste de Luanda. A instalação do campo de treino — o centro de instrução 21 — foi decretada pelo general Venâncio Deslandes, governador de Angola e comandante das Forças Armadas no país. “O Zemba era um descampado, ninguém lá tinha ido desde que tinha começado a tropa”, descreve Vieira Pereira.
No regresso de uma viagem a Moçambique, para gozar férias ao fim de um ano de comissão em Angola, o oficial miliciano recebeu uma convocatória para se apresentar de imediato em Luanda. “Quando lá cheguei, um oficial do quartel-general disse-me: ‘O Dante Vacchi diz que só vai dar instrução no campo de Comandos se você for’. Logo eu, que nunca me tinha voluntariado para nada na tropa… Mas lá pensei que entre fazer o campo de instrução e preparar as coisas todas, aquilo ainda dava para passar uns dias bons em Luanda”, diz Vieira Pereira ao Observador.
O capitão Jasmins de Freitas (atualmente com mais de 90 anos), que também tinha acabado de regressar de Lisboa, foi nomeado para comandar o centro. Para dar a instrução, foram convocados alguns oficiais: os então capitães Marquilhas e Ramalho, o tenente Caçorino Dias, os alferes Raul Folques, Vasco Ramires, César Rodrigues, o próprio Vieira Pereira e os alferes-médicos Resina Rodrigues e Freire Águalusa. O repórter Dante Vacchi completava o grupo, como adjunto do comandante de campo. Rodeado por militares sem qualquer experiência de forças especiais, cabia ao italiano orientar a instrução.
Foi essa a versão da história a que António Neves chegou na sua investigação. Mas, ao Observador, o coronel Raul Folques apresenta outra leitura desse período inicial. “Ele não estava em permanência em Zemba, ia e vinha, às vezes ficava dois ou três dias e voltava”, recorda o militar, que recusa atribuir a Vacchi a paternidade desta força especial.
O papel que Dante Vacchi teve foi fundamental pela sua ideia inovadora, mas mais fundamental ainda foi o facto de o tenente-coronel Nave ter sido recetivo às ideias daquele civil, porque se não fosse assim aquilo não teria acontecido”, defende Raul Folques — militar que se inscreveu como formando no curso de Comandos de Zemba e acabou a dar instrução a outros militares.
“Os Comandos devem a Santos e Castro, comandante do segundo curso, em Quibala, a fama que hoje têm”, entende o coronel. “Foi ele que criou uma instrução, criou uma mística, criou uma motivação, uma doutrina, ele é que é de facto o pai“, defende com convicção.
Vieira Pereira contrapõe, assertivo: “Dante Vacchi é o pai dos Comandos“. O miliciano sustenta a sua opinião no contributo que o italiano deu às tropas estacionadas em Nóqui, com uma mudança de mentalidade que contrastou com o que existia até essa altura. O protagonismo do jornalista na preparação do curso de Zemba sugere que Vacchi teve mais do que um papel acessório na criação desta tropa especial.
Entrar no gabinete do general sem pedir licença
Com a passagem dos meses, o miliciano Vieira Pereira tornou-se próximo do italiano, ainda em Nóqui. Ao Observador, o antigo militar lembra que “ninguém lhe punha travão” e conta um episódio que ilustra a liberdade, pouco comum, com que o italiano se movia entre as altas patentes militares em Angola. “Ele entrava pelo quartel-general adentro, vestido à civil, sem passar cartão ao sentinela, chegava ao gabinete do general, batia à porta — “oh senhor general” — e entrava”. Além disso, “tinha à-vontade suficiente para chegar ao quartel-general, dizer que queria ir para Zemba e arranjar um avião”.
Em meados de 1962, Vieira Pereira continuava em Luanda a preparar o primeiro curso da tropa especial, reunido com o capitão Marquilhas e com o futuro comandante Jasmins de Freitas no quartel-general. “Íamos fazendo desenhos sobre como ia ser o campo de instrução, apontávamos o que seria preciso”.
Foi também nessas reuniões que “nasceu” a primeira versão do emblema que os comandos usam atualmente: o capacete de aço e a cimitarra (uma espada de lâmina curva) brancos sobre um fundo preto, um ramo folhado e, em baixo, a divisa, em latim, “Audaces Fortuna Juvat” (a sorte protege os audazes). O emblema foi desenhado pelo capitão Jasmin de Freitas, porque “ele tinha mais jeito”, diz Vieira Pereira. Nessas semanas de preparação do curso, Dante Vacchi pouco aparecia em Luanda.
Em breve ia começar um curso novo. Candidatava-se quem queria, mas só seria aceite quem estivesse em boas condições físicas. Já no anúncio do Exército se percebia que o curso seria duro, com treinos em que era usado fogo real e em que se apostava no contacto direto com o inimigo ainda durante a formação.
A instrução começou no início do verão de 1962, com a presença de um dos dois grupos formados por Vacchi em Nóqui, para “servir de exemplo” aos novos recrutas. António Neves conta que começou nesse tempo a música subitamente ligada no máximo, de dia e de noite, sem aviso prévio, acompanhada dos gritos de ordem dos instrutores. “Um dos grandes contributos que todos reconhecem a Dante Vacchi foi a ação psicológica“, garante António Neves. “Era preciso criar nos instruendos instabilidade, para que estivessem sempre prontos para a reação”, refere o tenente-coronel, que ainda é uma característica dos cursos atuais de Comandos, a par da agressividade desta formação. De tal forma que, no ano passado, o curso de Comandos voltou a estar sob destaque depois de dois instruendos terem morrido devido a um golpe de calor.
João Vieira Pereira não tem memória de que esse tipo de práticas tivesse surgido nas primeiras instruções. “A única coisa que se fazia era, durante os treinos de progressão no terreno, com uma espingarda pressão de ar, ao longe, enfiar um chumbo no rabo de quem se levantasse”, recorda. Os militares deviam tornar-se peritos em ganhar terreno ao inimigo sem serem detetados pelos guerrilheiros.
Em Zemba, quando se formaliza a instrução da nova tropa especial, formaram-se seis grupos com homens vindos de seis batalhões diferentes. Cada grupo tinha 40 militares. O primeiro curso de comandos acabou no final de novembro e os homens regressaram aos respetivos batalhões, onde começaram a atuar como grupos especiais de intervenção imediata.
António Neves refere que, mesmo antes do Natal (a 21 de dezembro de 1962), Dante Vacchi — que, pela sua atitude já tinha entrado em choque com o rigor militar dos oficiais de Zemba e, por isso, estava de volta a Luanda — voou com o ajudante de campo do general Deslandes até Nóqui. Entregaram pessoalmente os crachás e o cartão de comando aos militares dos dois grupos iniciais formados no início desse ano em Nóqui, além das divisas com a inscrição da tropa especial. Mais tarde, os homens de Zemba também receberiam as insígnias.
O coronel Folques recorda-se de só ter recebido esse material mais tarde. “Só fomos considerados comandos depois de sairmos de Angola. Eu recebi uma carta a dizer que tinha passado no curso de comandos, mandaram-me um crachá bordado, já em 1964”.
Nos anos seguintes, foram criados e extintos mais dois campos de treino de comandos em Angola. E só em 1965 foi instalado, em Luanda, o Centro de Instrução de Comandos, de onde passariam a sair regularmente novos militares formados.
O desaparecimento do misterioso italiano
Nesta fase, Dante Vacchi voltaria a evaporar-se. António Neves enviou dezenas de cartas e emails para tudo o que havia de instituições ligação ao italiano. “Escrevi para a Paris Match, escrevi para o Sindicato de Jornalistas Franceses, para a Associação de Repórteres de Guerra franceses, mas ninguém sabia de nada. E em Itália passou-se exatamente a mesma coisa: escrevi para as revistas onde ele publicou fotografias ou artigos e não sabem de nada. Escrevi para a editora [que publicou as obras do fotógrafo] e nada. Escrevi para a câmara municipal da terra dele, para os serviços do turismo, cultura da terra dele e de várias cidades ali à volta, a pedir informações sobre ele. Fui à internet e tirei uma lista de todas as paróquias da província de Verona, escrevi a todos os padres e nada, nada, nada”. As respostas — porque houve quase sempre resposta — nunca trouxeram pistas à investigação do tenente-coronel.
“Alguma coisa tinha de haver, mas nada, nem aqui nem lá fora”, diz António Neves. Nessa busca incessante por informações sobre o homem que levou o Exército a criar o Regimento de Comandos, António Neves chegou apenas a uma prova oficial clara de que as autoridades civis portuguesas sabiam da sua existência.
Num documento da PIDE, com data de 1963, o chefe da secção da cidade angolana de Carmona escreveu ao Comando-Geral a dizer: “O jornalista Cesare Dante Vacchi, de nacionalidade italiana, e a jornalista Anne Dominique, de nacionalidade francesa, solicitam uma prorrogação do visto de permanência por mais de 30 dias. Aguardo instruções”, retrata, de memória, António Neves. “Este documento atesta que estes dois indivíduos estavam lá”, sublinha o tenente-coronel. Foi a única referência explícita que encontrou em três anos de investigação.
Uma noite, em Luanda, Dante Vacchi e Vieira Pereira foram à “boîte” do hotel “mais luxuoso” da cidade.”Eu ia fardado, ele ia com umas calcinhas e uma camisa. Andar de gravata, naquela altura, era uma coisa essencial. À entrada, dizem-lhe que não pode entrar. ‘Não posso entrar porquê?’, perguntou Vacchi ao porteiro. ‘Porque não tem gravata’, respondeu-lhe o porteiro. ‘E de laço?’. De laço já podia entrar”, recorda o antigo miliciano. “Ele baixou-se, desapertou os sapatos, tirou um atacador, fez-lhe um laço que pôs ao pescoço e perguntou: ‘E agora, já está?’ Passou pelo porteiro e entrou”.
“Encontrámo-nos muitas vezes em Lisboa”, recorda Vieira Pereira. Com o tempo, o jornalista italiano e o oficial miliciano — que já tinha deixado a realidade militar e estava a tirar o curso de Direito na Clássica de Lisboa — mantiveram uma relação de “amizade”, ainda que o contacto fosse sendo cada vez menos regular. Mas mesmo de Vieira Pereira é difícil obter mais do que algumas informações vagas sobre a segunda passagem de Dante Vacchi por Lisboa. “Ele vivia cá, não sei do que vivia, mas estava no último andar de um belíssimo prédio, do lado direito de quem está virado para a Fonte Luminosa”.
De política, nunca falavam. “Ele não dizia mal nem dizia bem [do Estado Novo], não falávamos disso da mesma maneira que não falávamos da guerra”, diz Vieira Pereira. A vida pessoal também não era assunto entre os dois, nos espaçados encontros na capital. Uma eventual ligação de Vacchi aos serviços secretos é assunto nebuloso. Aqui, Vieira Pereira limita-se a referir a ligação do italiano às milícias do fascismo de Mussolini.
Do percurso do jornalista, ficaram, ainda, algumas obras assinadas por Cesare Dante Vacchi. Em Portugal foram três livros: Angola 61-63, um álbum fotográfico de militares; Penteados de Angola, precisamente com imagens dos penteados que encontrou nas mulheres com que se cruzou em Angola; e, em 1967, um livro sobre as margens do Porto vinhateiro, chamado Porto.
Em 1967 seria também publicada, na revista portuguesa Eva do Natal, uma reportagem sobre a pesca do bacalhau, que Vacchi fez em conjunto com a companheira de viagem a Angola, Anne Dominique. O casal embarcou no navio-hospital Gil Eanes, que prestava apoio à frota bacalhoeira, e esteve nos mares do norte a fazer uma reportagem que não agradou ao regime, por trazer a público as difíceis condições de trabalho — “a escravatura”, refere Vieira Pereira — em que se trabalhava no alto-mar.
Há ainda um outro livro, Os Jesuítas em Liberdade, publicado em França e na Alemanha muito mais tarde, já em 1990. E, como prova do perfil eclético do italiano, sobram duas reportagens. Um desses trabalhos, publicado na New Look francesa, fala sobre uma expedição ao Tibete. Dante Vacchi acompanhou uma equipa de cientistas que percorreu o país à procura do Ieti, o Abominável Homem das Neves. O outro retrata uma travessia do deserto do Saara, feita por Vacchi numa scooter italiana da mítica marca Vespa.
Comandante de milícias na Itália ocupada
Filho de uma professora primária e de um eletricista dos caminhos-de-ferro italianos, Dante Vacchi nasceu em 1925. Aos 15 anos, apresentava-se como voluntário no Exército italiano. Mas a experiência de guerra mais marcante viria mais tarde quando Vacchi respondeu ao apelo de Mussolini e formou uma milícia para combater a presença das tropas aliadas (norte-americanos, britânicos e soviéticos) no sul de Itália. O grupo comandado pelo italiano ficou conhecido pelo nome “Os sombras“.
“Eu sei isto porque, mais tarde, no fim da guerra [a II Guerra Mundial], ele foi preso e julgado em tribunal”, explica António Neves. Condenado a pena de prisão, Vacchi beneficiou de uma amnistia para cumprir apenas algumas meses da pena.
Só depois começou a sua carreira como jornalista/fotógrafo, na mesma altura em que casou com uma franco-marroquina, de quem teve dois filhos — um rapaz e uma rapariga. Mas essas relações familiares não perduraram. “Foi considerado personna non grata pela família, pelas ligações durante a guerra aos fascistas. Toda a família, incluindo os pais de Vacchi, mudou-se da aldeia natal para uma vila”. António Neves conta que todos os familiares do italiano, com exceção de uma irmã (que terá mais de 90 anos), já morreram. O único sobrinho de quem conseguiu o contacto não sabe nada do tio.
Cesare Dante Vacchi morreu em 1994, em Itália.