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David Bruno: finalmente vale a pena ser português, baby

O cantor romântico 2.0, o observador único da espécie portuguesa, um Camões que rima com o tinto para a merenda. David Bruno está de volta com o terceiro álbum, "RaiaShopping".

Não era suposto ter sido assim – o que estava previsto era algo maior, mais grandioso, épico, mesmo: apanharmos os dois de manhã um comboio até à Régua, o David levava uma chouriça e um tinto para a merenda, passeava-se pela região, ele contava histórias sobre RaiaShopping, o seu terceiro álbum a solo, que é editado este sábado, 1 de agosto, almoçávamos e depois voltávamos de comboio e dávamos conta da merenda.

E se não atingimos este grau de epicidade que poderia, por exemplo, ter proporcionado lindas fotos do maior poeta português desde Luís Vaz de Camões, entre vinhas, com chouriças ao pescoço, foi por minha culpa, minha tão grande culpa: demasiadas coisas para fazer e uma total impossibilidade de agendar tudo isto levou a que os leitores estejam agora privados de uma maravilhosa sessão de fotografias e de uma conversa no local onde a ação de RaiaShopping começa.

Não se chama a alguém “o maior poeta português desde Luís Vaz de Camões” sem que estejamos dispostos a encetar uma guerra contra a academia ou, então, a provocar ligeiramente. Em abono da minha proposição recordo que David Bruno é o criador dos seguintes versos:

“N gosto k me mentem
Tu sabes k n gosto k me mentem”

Mas é, também, e particularmente nos seus discos a solo, um extraordinário observador da espécie portuguesa, mormente o romântico safado que trata todas as mulheres por baby, o sabido que conhece o restaurante com a melhor santola do país, que tem garrafa de whiskey nas boîtes, dos homens que fazem desfalques, dos chicos-espertos – este é, de certa forma, um mundo que está a morrer e que Bruno evoca, com uma mesura extraordinária nas palavras, nas suas letras.

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Quem é David Bruno, o artista que junta Marante, samples e Vila Nova de Gaia?

Uma breve sinopse de David Bruno (para aqueles que desconhecem que Bruno e Chico da Ladra são os dois autores mais entusiasmantes da língua portuguesa dos últimos anos) diria que ele é o produtor por trás dos admiráveis Conjunto Corona e que em 2018 se apresentou a solo, em nome próprio, com Último Tango em Mafamude (uma freguesia de Gaia), em que prestava homenagem à sua terra, recorrendo para tal a uma forma específica de fazer canções: samples que pareciam saídos do soft-porno dos anos 80, solos de guitarra manhosos, intros longuíssimas, versos escassos mas precisos como:

“Alfa Romeu e Julieta
Meto uma primeira e lá vou eu
Canidelo é já ali em baixo
Baby, relaxa e sente o som”

Talvez nem toda a gente perceba o humor contido nestes simples versos, mas nós explicamos: este é o fim-de-semana dos pobres, o passeio dos tristes, detalhado com aquele pormenor delicioso do “meto uma primeira e lá vou” e rematado com o “Baby, relaxa e sente o som”, dito por alguém que imaginamos ser um pintas a dirigir-se à sua babe.

O ano passado houve Miramar Confidencial, em que os samples de soft-porno (digo eu, que não sei o que ele samplou) davam lugar ao que podia ser a banda-sonora para uma série tipo “Miami Vice”, com mais baixo e mais sons sintetizados. O conceito permanecia o de um cantor romântico (David é devoto de Toy e Marante) mas o subtexto, a história contada naquelas faixas, é a de um homem que faz cambalachos por amor.

Faltam dois pormenores, nesta bio: a personagem David Bruno auto-define-se como um cantor romântico 2.0; e tão importantes como as canções são os vídeos que Bruno realiza para as mesmas. A arte de Bruno precisa desse complemento visual e a quem não acredita deixamos aqui o vídeo de “Aparthotel Céu Azul”, onde se rima “Curassã” com “codeã”:

Tudo isto, arrisco ao telefone (que acabou por ser o pobre meio de substituição da nossa aventura pelo interior) revela uma espécie de romantismo pelo nosso povo, tantas vezes esquecido – o povo que, num interlúdio do novo disco, diz sonhar ser camionista.

“Há um amor enorme, eu amo estas pessoas, estas personagens. De certa maneira cresci com isso mas enquanto estava a crescer não via nada de especial nelas. Mas é engraçado: houve um ano em que estive em Espanha e viajei bastante pelo mundo – e foi aí que descobri o quão carismático o português é. Os portugueses são muito, muito engraçados. Divirto-me só de sair à rua e observar-nos. Sendo que eu não me rio ‘de’, rio-me ‘com’”. Esse português, Bruno resume-o numa frase perfeita: “O português sabe sempre como se faz. E se o português não souber como se faz, pensa que sabe”.

David Bruno, o cantor romântico, surgiu “porque não tinha lugar nos outros projetos [de David]. Tive uma necessidade de relatar um certo lado da cultura portuguesa – o Conjunto Corona retrata um lado gangster, guna, e o tipo de personagens que surge nos meus discos é um tipo de pessoa mais comum, que eu vejo mais, nos bares, nos restaurantes.”

Bruno sempre quis fazer um disco sobre o interior, o interior de onde a sua família vem, mas nunca houve exatamente uma data, um plano, como nunca (aliás) houve na sua carreira. O que desta vez houve foi a Covid.

Durante dois discos, o retrato sociológico de David Bruno esteve confiando “a uma portugalidade mais suburbana”, mas em Raiashopping ele atirou-se a “um universo mais rural, mais bruto”. Há uma razão muito simples para este salto geográfico (para nós) inesperado: “Os meus álbuns são limitados por Gaia porque cresci em Gaia e só falo do que tenho propriedade para falar. Mas sou o primeiro da minha família que nasce em Gaia, o resto da família vem de Freixedo do Torrão, no concelho de Figueira de Castelo Rodrigo”.

Por vezes, quando uma família se muda do interior para o litoral, as raízes perdem-se, mas não no caso de David Bruno, que em garoto passava as férias em Freixedo do Torrão: “Eu no Porto só tenho os meus pais e eles trabalhavam muito, de modo que em férias ia recambiado lá para cima – e fui batizado lá em cima. Também ia para França – o mês de julho era passado em Paris e agosto na aldeia”.

Empreiteiros caloteiros e synth-pop: David Bruno regressou e trouxe os anos 80 com ele

Não admira que sempre tenha tido “muitas histórias dali para contar”, até porque vem de uma família de contadores de histórias – inclusive, em “Café Central”, um cruzamento da banda-sonora de “Miami Vicee com GNR e um temaço, ele homenageia a avó Maria e as suas histórias:

“Café com cheirinho no café central
E jogo uma sueca com o meu primo Paul’
Banquinho à lareira com a avó Maria
Histórias de lobisomens e bruxaria”

O refrão (“Perde paga no café central” repetido até à exaustão) não é apenas um grande refrão; é um lindo momento de poesia nostálgica de um Portugal menos sofisticado.

Pelo atrás enunciado fica claro que este RaiaShopping é um disco diferente daqueles a que David Bruno nos habituou: menos urbano, ainda com humor, mas um humor menos sarcástico, talvez mais caloroso, e menos homogéneo sonicamente, como ele próprio reconhece: “Neste não há um universo sónico”, começa por explicar. “Nos outros primeiros fiz os instrumentais e escolhi samples. E neste fiz primeiro as letras e fui à procura daquilo que se enquadrasse na música”.

[“Festa da Espuma”, o primeiro single de “RaiaShopping”:]

É um disco “mais diverso”, mas tem “na mesma um lado minucioso e é coerente com o que foi feito antes”. Por diverso entenda-se haver lugar para guitarras wah-wah em Praliné, e uma espécie de tecno-xunga no que esperamos venha a ser o hit deste verão, “Festa da espuma”, ou até alguma inesperada doçura em “Doucement”, cuja letra merece ser transcrita:

“Écoute bien, viens doucement
Faites atencion avec le camiã
Porque eles bêm todos em contra-mã”

Estas rimas forçadas, estes erros, estão por todo o lado em RaiaShopping, e culminam numa das raras letras longas de David Bruno – que diz ser “mais difícil fazer uma letra curta, dizer o essencial em 4 compassos e agarrar o ouvinte com muito pouco”. Mas aqui interessava enunciar – e qualquer português reconhece este tipo de português, esta figura dos anos 80:

“Stop na fronteira
Vou ao Gildo comprar uma sapateira
Atestar a bagageira de jamon
Duas dúzias de volumes da Winstôn

Stop na fronteira
Dois jerricans de sin plomo 98
Escupetas e camisetas
Vinte contos cambiados em pesetas”

"Os portugueses são muito, muito engraçados. Divirto-me só de sair à rua e observar-nos. Sendo que eu não me rio 'de', rio-me 'com'”

Isto era um clássico português, uma referência “àquela pancada do tuga de ir a Espanha comprar caramelos. Porquê? Não sei, mas sei que atestavam a bagageira”. Bruno tem memórias muito claras de todos os elementos referenciados na canção: “A galeria Gildo”, por exemplo, “funcionava como supermercado antes de o ser”; hoje, conta Bruno, “pertence ao Carrefour”. E até o tabaco Winston lhe merece uma referência de época: “Era muito contrabandeado na altura”.

Bruno sempre quis fazer um disco sobre o interior, o interior de onde a sua família vem, mas nunca houve exatamente uma data, um plano, como nunca (aliás) houve na sua carreira. O que desta vez houve foi a Covid: “Primeiro surgiu o Último tango, depois o Miramar Confidencial – e depois veio a Covid, que deu um empurrão a essa ideia de fazer um disco sobre a raia. E pus-me a escrever: primeiro vieram as letras e só depois a música”.

É curioso pensar que de alguma forma Bruno fez full circle: começou a ouvir música porque o seu “pai comprava muitos discos, e quando [Bruno] era pequeno passava muito tempo a impingir[-lhe] música”. Entre as muitas coisas que o Bruno Srénior mostrava a Bruno Júnior estavam os discos da mítica Motown, que mais tarde o júnior reconhecia nos discos de hip-hop. A partir daí, com ferramentas arcaicas como o Virtual DJ, começou a fazer faixas em casa, “anos a fazer sem editar”. Isto, diz, pode ter sido uma vantagem: “Hoje, com as redes sociais, sentes-te muito tentado a mostrar logo. Eu pude errar em sossego”.

O que este (de dia) pacato diretor comercial de uma empresa que constrói sites está a fazer, em cada uma destas iterações da sua criatividade, é “manusear Portugal”.

“Cara de Chewbacca”, de PZ, terá sido a primeira faixa de Bruno a chegar a um número grande de pessoas, depois vieram os Corona (que merecem um culto maior que o que têm) e finalmente a obra a solo. O que este (de dia) pacato diretor comercial de uma empresa que constrói sites está a fazer, em cada uma destas iterações da sua criatividade, é “manusear Portugal”.

E é por isso que lhe é tão importante fazer o que lhe dá na real gana, a começar pelo método de edição: os discos de David Bruno são CD-Rs ripados, e tão importante quanto a música são os vídeos que a acompanham, numa espécie de arte total de fancaria. Já agora, o disco pode ser visto/ouvido aqui, a partir deste sábado, primeiro de agosto. É que tudo, incluindo os vídeos, fazem parte do que no fundo é uma peça de teatro esculpida com precisão sobre isto de ser tuga. Sendo que no caso é tudo mais íntimo, se pensarmos que “50% das imagens são VHSs da minha família, filmadas na aldeia e na época”.

Depois de três discos de David Bruno em três anos, o artista pondera agora dedicar-se a fazer parcerias e a retomar Corona. E é por isso que convém fixarmos as palavras que o artista tem para nos dar agora. Assim sendo, e caso faça férias e regresse a casa de carro, só temos um conselho a dar-lhe:

“Écoute bien, viens doucement
Faites atenciion avec le camiã
Porque eles bêm tolos em contra-mã”

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