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David E. Kelley: "O dinheiro não faz a boa televisão"

Criou séries como "Boston Legal", "Picket Fences" ou "Ally McBeal". Agora adaptou "Big Little Lies" para a HBO, que se estreia domingo. Em entrevista, fala sobre o que mudou em 30 anos de televisão.

Estreia-se de domingo para segunda, às 02h de dia 19 (TV Series), mas terá depois transmissão regular à segunda feira à noite (22h45). E, convenhamos, tem tudo para funcionar ao fim do primeiro dia da semana. Numa descrição rápida: “Big Little Lies”, a nova minissérie da HBO, é uma espécie de “Donas de Casa Desesperadas” mas com mais pinta e um crime feito à medida para tramar umas quantas vidas. É uma das produções mais esperadas deste início de ano e conta a história de três mulheres da alta sociedade californiana cujos segredos podem rapidamente tornar-se coisa pública e destruir a boa vida que procuram manter sob o clima ameno de Monterey.

A série é baseada no livro com o mesmo título de Liane Moriarty e tem tanto de novela como de thriller. Na verdade, era esse o grande objetivo desta adaptação de David E. Kelley, um dos argumentistas e autores com mais currículo na televisão americana. “Chicago Hope”, “Boston Legal”, “Picket Fences” e “Ally McBeal”? Tudo dele, tudo com sucesso, o que nem sempre aconteceu noutras produções com a mesma assinatura.

Falámos com Kelley ao telefone, que assume, sem qualquer dúvida: há 30 anos, quando começou, a televisão não era bem assim. Foi mudando, como também fez a América, que tem em “Big Little Lies” um espelho para algumas situações — ainda que os dias, por agora, sejam complicados. É David E. Kelley quem o diz, até porque foi dele a primeira pergunta:

https://www.youtube.com/watch?v=HHoVYCzcDn4

Olá David, bom dia.
Bom dia. Como está o tempo por aí?

Está bom, está sol.
Pois… As coisas estão meio tempestuosas aqui nos EUA e assim se devem manter durante muito tempo.

Não está a falar do tempo, pois não?
Também estou a falar do tempo. Mas sim, estou a referir-me ao país no geral. Mas enfim, não falemos sobre isso. Falemos sobre televisão

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Muito bem. Está prestes a estrear uma nova série de sua autoria, “Big Little Lies”. É a primeira que faz para a HBO. É muito diferente escrever para um canal de cabo?
É muito, muito diferente. E é também muito melhor. Há muito mais liberdade, acho que essa é a principal e a maior diferença. Não há qualquer tipo de limitação face ao conteúdo, esse problema não existe. E além disso não há interrupções com anúncios. Essas interrupções não são novas, existem desde sempre, mas nos últimos dez anos tornou-se muito difícil lidar com elas.

Porque são mais?
Muito mais. Quando comecei nisto, os episódios tinham quatro partes. E tínhamos uns 48 minutos limpos para contar uma história. Hoje, há menos de 41 minutos úteis em cada hora. Quem vê um episódio está constantemente a entrar e a sair da história. E quem a escreve tem que estar preparado para segmentos de sete e oito minutos, com pausas sucessivas. Costumo chamar a isto “televisão interrompida”. Aquela dinâmica que conta uma história em modo crescente, em que a trama vai escalando, é cada vez mais difícil com esta estrutura quebrada. Estamos a competir com anúncios. Podia ser um desafio estimulante mas não é, é um desafio que não traz nada de criativo e de estimulante à escrita para televisão. Ao contrário, na HBO, por exemplo, temos uma hora inteira, do princípio ao fim. Isso atrai mais e melhor talento.

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No elenco?
Sobretudo. Os atores querem fazer cada vez mais séries e querem fazê-las com canais por cabo como. E estou a falar de estrelas de Hollywood. Começámos tudo isto com a Reese Witherspoon e a Nicole Kidman, duas das mais talentosas atrizes da atualidade, que queriam muito trabalhar neste modelo. Se isto fosse uma produção de um dos grandes canais de broadcast [NBC, CBS, ABC ou Fox, por exemplo, canais em sinal aberto nos EUA], duvido muito que elas quisessem participar.

As questões financeiras não se colocam?
Claro que sim, mas há coisas mais importantes. O dinheiro não faz a boa televisão. Há a confiança na criatividade. No cabo, isso tem muito mais prioridade. E as pessoas acreditam que se um produto for bem feito, as pessoas vão querer ver. Isso não pode ser subestimado. Muitos canais de televisão começam por olhar para os números, para os gráficos, para as relações que se estabelecem entre espectadores e dados demográficos. E isso é depois usado para criar um programa ou uma série específica para um tipo de público ou uma parte do mundo. Uma fórmula que é tudo menos criativa, a série transforma-se num produto de marketing, não serve para contar uma boa história.

"O cinema está cada vez mais virado para os blockbusters, efeitos especiais, grandes produções. E tem cada vez menos tempo e espaço para as personagens. As séries de televisão têm isso, têm mais tempo e espaço."

Mas não são os números que mantêm um programa no ar?
Não há uma ciência exata sobre isso. Nem sei se é possível estudar ao detalhe o que resulta ou não. Mas sei que as audiências nem sempre garantem a continuidade de uma série. Quem pensa que existe uma fórmula mágica vai ficar muito desiludido quando descobrir a verdade. Os falhanços são fáceis de explicar. Mas os sucessos, na maioria das vezes, resultam de um conjunto de fatores que nem sempre se repetem.

Em “Big Little Lies”, esses fatores estão reunidos? Vai dizer-me que sim, não vai?
Claro que vou. Mas explico. Começa tudo no início, ou seja, no livro que gerou a série: é notável. É uma extraordinária obra de entretenimento, com uma história de crime pelo meio. Mas esse mistério também nos dá excelentes momentos feitos de relações que queremos conhecer melhor. Claro que não é fácil manter sempre o mesmo tom entre estes diferentes ambientes, por isso é que grandes atores fazem a diferença. Isso e o realizador, Jean Marc Valée. É uma série muito coesa e isso é difícil de conseguir.

Mas por partir de um livro, por se tratar de uma adaptação, o trabalho não está em parte facilitado?
Estaria se existisse um livro de estilo sobre adaptações de livros à televisão. Se há, não o conheço. Ainda assim, uma coisa é certa: porque gostei tanto do livro, as decisões foram fáceis. As personagens estavam bem definidas, a trama também. Talvez a decisão difícil tenha sido escolher o que não incluir na história. Porque é impossível manter tudo. Acho que a chave para uma boa adaptação é fazer com que quem vê esteja sempre à espera do que vai acontecer a seguir. Não queremos que ninguém pense que isto é apenas entretenimento para encosto no sofá. Ou seja, quisemos manter os aspetos mais ligados à comédia que o livro já tinha mas a tensão dramática foi o mais importante.

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O elenco de “Big Little Lies” junta Reese Witherspoon, Nicole Kidman, Laura Dern, Shailene Woodley, Zoe Kravitz, Alexander Skarsgard, Adam Scott… Porque é que a televisão está a atrair cada vez mais estrelas de Hollywood?
O cinema está cada vez mais virado para os blockbusters, efeitos especiais, grandes produções. E tem cada vez menos tempo e espaço para as personagens. As séries de televisão têm isso, têm mais tempo e espaço, torna-se possível desenvolver personagens e enredos. Esta história, por exemplo, seria muito difícil transformar num filme de duas horas. Tem muitas personagens, com muito para contar, isto só podia ser feito em televisão. E tinha que ser num canal por cabo. Por isso é que é uma produção tão sedutora. Foi possível contar uma história geral com pequenos arcos narrativos entregues a cada personagem e que têm a duração de um episódio.

Estas personagens e estas histórias podem ter eco na realidade americana ou é totalmente ficção?
Quando apresentamos o mundo onde tudo isto se passa, parece um mundo distante e exagerado, de algum forma superficial. As pessoas são ricas, a vista é incrível, as escolas públicas são as melhores… é uma forma sedutora de apresentar um cenário e pode levar a que as pessoas pensem “isto não é a vida real, isto é um bom sítio para passar férias”. Depois, à medida que focamos as pessoas, mostramos problemas mais próximos da realidade, coisas mais sérias. Parece-me que as pessoas poderão querer ver a série pela ideia de fuga à realidade mas à medida que os episódios são revelados, vão perceber que isto não é assim tão irreal. E ao fim das sete horas da série, muitos vão descobrir que conhecem pessoas iguais a estas. E vão ficar tristes por dizer adeus a personagens que de repente se tornaram parte da família. Pelo menos é que isso espero.

O elenco de “Big Little Lies” e David E. Kelley, o segundo a contar da direita

Já passaram 30 anos desde que começou a escrever para televisão. Esse currículo não lhe dá segurança quando é hora de estrear uma série nova?
Por ter história neste meio não quer dizer que possa fazer tudo o que quero, como quero, e muito menos significa que vá ter sucesso. Em tudo o que fiz, tentei sempre fazer o melhor e preparar-me para o pior. É uma boa regra para a vida e é uma regra para a televisão. Mas é bom saber que tenho alguma liberdade para poder fazer mais do que cumprir prazos. Fazer 22 episódios numa temporada? É um sprint demasiado intenso, não sei se o volto a repetir.

Nestes 30 anos, que séries mais gostou de fazer?
É difícil escolher entre filhos… tenho sempre especial apreço em relação às séries que misturam tons, como esta nova faz, aliás. Aquelas que vão à comédia e ao drama, que juntam coisas que fazem parte da vida real. É sério e absurdo, é divertido e dramático. Nesse sentido, parece-me que as melhores que fiz foram “Picket Fences”, “Ally McBeal” e “Boston Legal”.

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