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MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

"Deixem o Pimba em Paz": uma lição de vida em (pelo menos) 15 cantigas

Bruno Nogueira, Manuela Azevedo e companhia regressam aos palcos e os palcos regressam com eles. Hugo van der Ding explica porque é que devemos dar-lhes ouvidos como se fossem guias espirituais.

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Se os brilhantes Bruno Nogueira, Manuela Azevedo, Filipe Melo et al nos provaram em Deixem o Pimba em Paz que quinze canções desse género com outros arranjos se transformam em temas a que o povo ocasionalmente dá em chamar “eruditos”, irei aqui demonstrar que, alinhadas pela ordem certa, temos Proust não em sete, mas em quinze volumes.

Parem um bocadinho e reclinem-se para trás para absorver o que acabei de dizer. Pausa para choque. Já está? Ou querem fumar mais um cigarro? Mais um copo de whisky?

Muito bem, agora que já tiveram o vosso momento, está na altura de mostrar que o coração que batia dentro do peito de Jane Austen é da mesma cor que o de Mónica Sintra. Que Ágata pode não ser nome de carteira da Hermès, mas não lhe corre menos amor no sangue que nas veias de Grace Kelly.

Debrucei-me sobre os 15 temas que estão editadas em disco, mas as noites de segunda e terça, 1 e 2 de junho, no Campo Pequeno, em Lisboa, podem trazer surpresas. De qualquer maneira, será sempre assim: poesia em todo o lado, como gritam as paredes das nossas ruas.

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Da origem do Homem

“Porque não tem talo o nabo” (Leonel Nunes)

Através de “Porque não tem talo o nabo” é-nos apresentada a personagem masculina. Chamar-lhe-emos O Narrador, um narrador sem nome, como em Em Busca do Tempo Perdido. Este nosso Narrador é um homem na idade dos porquês, da descoberta das abelhas e das flores. Poderemos dizer que já vê a chama sem ainda se ter queimado. Tal como Mrs. Dalloway no romance homónimo de Virginia Woolf saiu para comprar flores (“Mrs. Dalloway said she would buy the flowers herself”, logo na frase de abertura), o Narrador “quando vou à praça”, só “penso na origem da hortaliça”. Mas é mais específico. Outras dúvidas o assaltam. “E porque a couve tem talo, e o bacalhau tem rabo, se o feijão verde tem fio, porque não tem talo o nabo?” Para acrescentar, logo a seguir:

“Se a banana tem cacho, toda a uva tem que tê-lo. Já pensei muitas vezes porque não tem talo o grelo?”

Não isento de alguma masculinidade tóxica, o nosso Narrador está ainda na fase da mulher-mercadoria, da mulher-objeto, da mulher-vegetal. Mas tem sede de ser alguém melhor. “Explique cá pra mim, quem souber de agricultura”.

Citando Karl Marx, mas corrigindo Simone de Beauvoir: “Não se nasce homem, tornamo-nos homens”.

Dos despertares

“Pito Mau” (Quim Barreiros)

Seguimos o despertar da sexualidade do Narrador. Onde antes tínhamos vegetais, abundam agora animais. Numa análise meramente morfológica, poderemos dizer que é um patamar acima. O contexto familiar para que nos transporta “fui brincar prá casa da minha avozinha, deu-me muitos beijos comi a sopinha” é logo estilhaçado com a visão horrenda de um pequeno pinto que neste poema leva o nome de “pito”.

“Mas havia um pito que era muito mau, deu muitas bicadas nos tomates do quintal, os tomates com um pau foram atrás do pito, bateram-lhe tanto que o pito dava gritos”.

Com a inocência perdida e a infância destruída, o Narrador sente pela primeira vez prazer no castigo. “Bonito, bonito, são os tomates a bater no pito”. E nasce aqui a associação, tão comum nos homens e em algumas mulheres, da violência com o amor. Ainda é latente, como sempre o é nesses doces anos do despertar da sexualidade com os vegetais e os animais da quinta. Mas a semente lá está.

Citando Orwell, mas corrigindo Mahatma Gandhi: “As pessoas dormem descansadas à noite na cama porque existem homens prontos a cometer atos de violência por elas”.

Dos bichos

“Bichos da Fazenda” (Quim Barreiros)

Aqui, todo o ambiente é bucólico. Como um passeio pelo jardim em Du côté de chez Swann (Do Lado de Swann, conforme tradução de Pedro Tamen para a edição portuguesa do primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, Ed. Relógio d’Água, Lisboa, 2003), somos levados pela mão do Narrador a uma viagem por uma fazenda. A certa altura, e como encontrasse uma menina, diz-lhe: “Como é que vais? Que prazer, dá cá um beijo! E a família lá em casa? Há muito que eu não os vejo!”. A sua preocupação parece sincera, mas as palavras saem-lhe já da boca de um homem que deixou de ser um menino.

“Conta-me como é que vai a égua da tua mãe e o cavalo do teu pai, a porca da tua irmã, o porco do teu cunhado, a vaca da tua prima que eu vi na feira de gado, o burro do teu avô, a mula da tua avó, a cabra da tua tia que berrava quando fugia”.

Mas há neste double entendre uma inocência que comove. Os animais são o seu mundo, e a antropomorfização é o seu primeiro e genuíno gesto de amor e de conquista.

Citando Platão, mas corrigindo Søren Kierkegaard: “Ao toque do amor, toda a gente se torna poeta”.

Poesia em todo o lado, como gritam as paredes das nossas ruas e como cantam estes dois

Do nascimento de Vénus

“A Padaria” (Quim Barreiros)

Chegamos ao divisor de águas. Em toda a narrativa há um antes de “Padaria” e um depois de “Padaria”. O nosso herói abandona o território familiar e protetor da quinta, para descobrir finalmente o corpo feminino. O que dantes via na parte de trás de uma cabra ou num molho de grelos, vê-o agora nas formas de uma mulher. De uma padeira ainda para mais e não inocentemente. Uma mulher que faz pão, o alimento primordial. E ele deleita-se com os prazeres do pão.

“Teu papo seco tão fofinho, tão quentinho, só o cheiro dá prazer, e o cacete vem durinho, estaladiço, toda a gente quer comer. O teu casqueiro untadinho com manteiga é comer até fartar! Ai que regueifa tão gostosa, apetitosa, toda a malta quer papar!”.

Este fenómeno, a mulher-pão, é mais antigo que as pirâmides de Gizé. Aliás, é tão antigo como, uma vez que foi precisamente esta antiga civilização que inventou o pão. Alguns dos mais belos poemas inscritos nos maravilhosos templos egípcios comparam a mulher a um pão chato e comprido, que na sua linguagem é representado por uma flor de duas pétalas. É também nas paredes de uma pirâmide que vemos a primeira referência a sanduíche para representar uma posição sexual entre três pessoas.

Citando Miguel de Cervantes Saavedra, mas corrigindo Santo Agostinho: “Todas as tristezas sabem melhor com pão”.

Do amor

“Garagem da vizinha” (Quim Barreiros)

Findo o longo período de iniciação sexual do Narrador, ainda sem a mácula de rejeição, sem a dor do ciúme, sem o peso da posse, entramos finalmente no amor. E o nosso sujeito poético vai encontrá-lo onde muitas vezes ele sói estar, mesmo diante dos nossos olhos. Neste caso numa vizinha, e mais concretamente na sua garagem. Vai ser na “Garagem da vizinha” que o Narrador põe o carro, tira o carro, à hora que ele quiser:

“Que garagem apertadinha, que doçura de mulher. Tiro cedo e ponho à noite, e às vezes à tardinha, estava até mudando o óleo na garagem da vizinha”.

O amor deixa de ser apenas uma pulsão sexual por uma galinha ou um bacalhau. Ele vai vibrar, “como um brilhante que, partindo à luz, explode em sete cores, revelando então os sete mil amores”, como cantou Tom Jobim. Roubando a imagem ao poeta, o carro encontra assim a sua primeira garagem.

Citando Freud, mas corrigindo Magritte: “Às vezes um charuto é apenas um charuto”.

De um fogo que arde sem se ver

“Ninguém, ninguém” (Marco Paulo)

Todos sabemos que os primeiros amores não foram feitos para durar. São a porta para um mundo imenso que há-de vir. Nem guardamos para sempre a fronha da almofada que secou as nossas primeiras lágrimas. O Narrador amou, mas o amor acaba, ainda que «não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure», como nos ensina Vinicius de Moraes entre uma bebedeira e outra. E o coração refaz-se. As vizinhas, com e sem garagem, tornam-se ternas memórias quando se acende algures outra chama, como nos conta “Ninguém, ninguém”. Atente-se:

“Quem nos viu já foi contar que me encontrou com novo amor sem saber nada. Vão falando porque é fácil inventar, todos inventam por aí. Acertaram sem saber que uma paixão anda agora dentro do meu coração. Desta vez podem dizer seja o que for, mas isto agora é mesmo amor”.

É sempre. É o que nos move. E “ninguém, ninguém é mais forte que o amor”. Ou será?

Citando Lorde Byron, mas corrigindo Patti Smith: “Sim, o amor é a verdadeira luz vinda do céu, uma centelha desse fogo imortal partilhado pelos anjos”.

Bruno Nogueira durante o ensaio para a imprensa do espetáculo "Deixem o Pimba em Paz" no teatro São Luiz, onde irá estrear amanhã, Lisboa, 2 de julho 2015.  MANUEL DE ALMEIDA / LUSA

Bruno Nogueira lembra-nos que está na altura de mostrar que o coração que batia dentro do peito de Jane Austen é da mesma cor que o de Mónica Sintra

MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Da cópula

“A cabritinha” (Quim Barreiros)

Chegamos ao apogeu sexual do Narrador. Oh, como pode ser bela a cópula com alguém que se ama! Achou a sua cabritinha, que veio preencher as suas necessidades de criança:

“Quando eu nasci a minha mãe não tinha leite. Fui criado como um bezerro enjeitado, mamei em vacas, em tudo que tinha peito. Cresci assim desse jeito, fiquei mal-habituado”.

Depois da mulher-vegetal, da mulher-galinha e da mulher-pão, descobre agora a mulher-mãe. Sob a forma de uma cabra. Os melhores autores clássicos latinos ergueriam a sua taça de ambrósia para brindar ao eufemismo. E dariam um grande banquete. E comeriam como javardos. E depois vomitaram para voltar a comer. E acabariam a comer-se uns aos outros e aos criados, como era moda em Roma e noutras províncias do Império. Possivelmente também na Ibéria, mas não temos fontes suficientemente fidedignas para sabê-lo. E é aos clássicos, mais precisamente às Metamorfoses de Ovídio (ano 8 d.C.), que o Narrador vai buscar quase ipsis verbis este verso: «Hoje sou homem e arranjei uma cabritinha, e passo o dia a mamar nos peitinhos da fofinha”.

Citando Zsa Zsa Gabor, mas corrigindo Yves Saint Laurent: “Um homem está incompleto até casar. Depois, está acabado”.

A espuma dos dias

“Azar na Praia” (Nel Monteiro)

Paixão, sabemo-lo bem, vem do grego πάθος (pathos), que significa “sofrimento”. E é nessa montanha-russa de emoções que se veem os amantes, antes que as cuecas espalhadas pelo chão do quarto, ou o traque a ver televisão, ou o rolo de papel higiénico posto ao contrário, e outras pequenezes quotidianas, os arranque de lá como um palhaço arrancado da boca de um tigre que escapou do circo. “Azar na Praia” fala-nos desses tempos idílicos, em que tudo é felicidade: “Banhar-nos à praia, fomos tu e eu”. O mar aqui como o elemento que une os amantes. E até as desgraças se tornam uma aventura:

“Mas que grande bronca nos aconteceu. A minha camisa, o vestido teu, quando à noitinha nada apareceu”.

As contrariedades, porém, esvanecem-se com gargalhadas inteiras e limpas como o dia inicial. “Muito envergonhados saímos dali. Eu em tronco nu, tu em biquíni”. É disto que são feitas as memórias dos amores. “Não tinha dinheiro, carro também não, viemos a pé, fizemos serão”. São livres, são belos, são jovens, o sexo é sem tabus. Foram à praia, sim. E voltaram «com as perninhas todas à mostra e os marmelinhos quase de fora». O resto do mundo que se dane.

Citando Sophia de Mello Breyner Andresen, mas corrigindo Madame de Pompadour: “Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar.”

Da queda do Homem

“Na minha cama com ela” (Mónica Sintra)

O amor existe, o amor é belo, mas a serpente está sempre à espreita. E desta vez apareceu, sinuosa e traiçoeira, “Na minha cama com ela”. Eis o momento em que se descobre a traição. A mulher traída tinha dado a maçã e acabou por ser trocada por uma salada de frutas. Não foi só uma traição do coração, mas uma traição do espaço, do seu universo particular. “Na minha cama com ela, tu e ela no meu quarto”. Já ao entrar em casa, tinha encontrado “pelo chão roupa espalhada e algumas peças de cetim”.

É aqui que se apercebe do que está escrito na parede: foi trocada por uma mulher mais feminina, ou, pelo menos, de uma condição social superior. A roupa de baixo em cetim faz-lhe picar ainda mais na pele o algodão ordinário das suas cuecas de feira. Sentimos repulsa pelo Narrador e lembramos a tragédia grega Medeia, de Eurípides (ano 431 a. C.), também ela trocada por uma mulher mais nova, e uma princesa. E, para acrescentar insulto à injúria, “mesmo em frente ao meu retrato”. Que não se sabe ser um óleo ou uma banal e vulgar Kodak, deixa-se apenas adivinhar. Mas há pior. Os dois amantes estavam, “tu e ela na loucura, perdido nos braços dela, muito mais que uma aventura”. Fazendo, inevitavelmente, coisas que ela provavelmente não faz, como talvez sexo anal ou sexo oral, ou ambas as práticas simultaneamente. Nunca o saberemos. O desespero é total.

“Hoje quero esquecer esse quadro, mas não posso. Terei até morrer os dois nos lençóis que eram nossos”.

Tem “o desgosto tatuado eternamente desde então, e cada vez está mais amargo o dissabor dessa traição”. E o que faz esta mulher traída? “Selei a porta desse quarto, mas tenho ainda essa visão”. Uma das imagens mais pungentes da literatura portuguesa: dois amantes, uma traição, mesmo em frente ao seu retrato. O que começou numa garagem, acaba assim, na cama de num quarto.

Citando Martinho Lutero, mas corrigindo Mata Hari: “Somos responsáveis por aquilo que dizemos, mas também por aquilo que não dizemos”.

Da queda de um anjo

“Não és homem para mim” (Romana)

A conclusão é inevitável para a mulher traída. “Não és homem para mim” traz-nos toda a dureza da revolta.

“Eu sou boa de mais pra ti, eu sei. És menos eu sou mais, és mal e eu bem. Eu sou uma rosa em flor e tu espinho que ela dá. Tu és a minha dor, pior não há”.

E ataca-o depois onde dói mais, na sua masculinidade. “Apenas vês em mim uma fonte de prazer. Prazer que eu fingi muitas vezes também ter”. Ouch! Sem querer pôr o ónus na mulher traída, eis a génese de todos os males, a mentira, o logro. Revelando a natureza fingida de muitos dos seus orgasmos, onde antes mentia para protegê-lo, diz agora a verdade para magoá-lo.

Citando Irmã Lúcia, mas corrigindo Robespierre: “Só eu sei o que vi”.

Da Fénix

“Sozinha” (Ágata)

Depois da raiva vem a superação. “Sozinha” fala-nos da mulher que não precisa de homens. E, provavelmente, já nem gosta. É uma mistura entre “I Will Survive”, o êxito de 1978 da artista norte-americana Gloria Gaynor, e “Lusitana Paixão”, da cantora Dulce Pontes, que nos representou no Festival da Canção, ficando em 8.º lugar (entre 22 países participantes), com 62 pontos. “Não resolvas aparecer”, avisa ela. Mesmo que não seja verdade, percebemos que é importante para si acreditar em tal.

“Eu estou quase a conseguir adormecer sem estares aqui, aquecer a minha cama mesmo sem o teu calor. Estou a aprender a sorrir e a sonhar depois de ti, desses sonhos de uma vida que por ti quase acabou”.

Provavelmente com uma boa dose de barbitúricos e vinho barato. É uma confissão suicida que quase lhe escapa da boca, quase inconsciente. Não a usa como chantagem, como outras mulheres deixadas. E “estou prestes a vencer o meu receio de ficar só, e começar do zero não me assusta como outrora”. Uma vida nova, um novo amor, a tela em branco. “Sem ilusões, falsas quimeras”. Por oposição às quimeras verdadeiras, talvez. A fúria é total, qual Cleópatra partindo jarras nas histórias do Astérix. Mas é desses cacos que ressurgirá, “porque desta vez eu vou encarar-te frente a frente e dizer-te vai-te embora”.

Citando José Régio, mas corrigindo Janis Joplin: “Não sei para onde vou. Sei que não vou por aí!”

Toda a cidade ardia

“Comunhão de bens” (Ágata)

Lembra o que disse Oscar Wilde, que a maior estratégia de uma mulher é a capitulação total. E aqui, vemos a citação do famigerado homossexual irlandês em todo o seu esplendor. Há ainda uma vaga tentativa de usar um filho como arma de arremesso, mas percebe-se que também esse filho-ideia ou essa ideia de filho pertence já à espuma dos dias.

“Não me leves a coisa mais querida, que nos pertence em partes iguais. Nosso filho a quem eu dei a vida e é de mim que ele precisa mais”.

Está ferida e quer ferir. “Sou fera ferida, no corpo, na alma e no coração”, como canta Bethânia, essa furiosa lírica. Mas sentirá mesmo isto? Ou será mais um passinho doentio neste tango dos corações partidos? Ela está decidida, e até o dinheiro, aquilo que provavelmente sempre mais a apaixonara nele, perdeu a sua capacidade de sedução. São as ramificações mais mesquinhas do final de uma relação. Um grande amor reduzido aos aspetos logísticos, às coisas sem nenhuma importância: as joias, o carro, a casa, as contas do banco, as crianças. Numa palavra: nada.

Citando Madame Castafiore, mas corrigindo Faulkner: “Capitão! As minhas joias!”

Com esta rapaziada aprendemos que Ágata pode não ser nome de carteira da Hermès, mas não lhe corre menos amor no sangue que nas veias de Grace Kelly

Do arrependimento

“24 Rosas” (José Malhoa)

O foco volta para o Narrador. Provavelmente, trocado também pela mulher pela qual trocou a sua, tenta timidamente um reencontro, um reacender de chama. E fá-lo, como os homens mais infantis, com flores. Neste caso com “24 Rosas”. Entra como um cordeiro: “Se tu andas ocupada com mil coisas, perdoa-me se eu te interrompi”. Outro clássico dos homens, esta abordagem passivo-agressiva, este pedido de desculpa que não é um pedido de desculpa. E porquê vinte e quatro rosas? Ele explica:

“Hoje mando-te estas 24 Rosas, as horas que por dia, penso em ti!”

Não são, pois, rosas o que ele manda. São vinte e quatro espinhos, um por cada hora do dia. O sujeito poético pega no significado da rosa (o amor) e perverte-o para um castigo. E diz-lhe onde as há-de pôr: “Põe água fresca numa jarra, dentro do teu quarto e junto à cama”. É a única altura em que aflora o motivo do seu arrependimento, a cama onde a traição se consumou.

Citando Spinoza, mas corrigindo Shakespeare: “Uma rosa com o mesmo nome tem um perfume muito menos doce”.

O Jardim das delícias

“Som de Cristal” (Marante)

Derrotado e só, o Narrador vai, em “Som de Cristal”, parar a um desses bares onde pululam mulheres de mau passado. Vai beber, afogar-se em frustração e whiskey contrafeito. Mas nesse cabaré, “a casa noturna, boîte falada, lugar de má fama, com as portas abertas durante a noite, entra quem quiser”, vê entrar pela porta a silhueta de alguém que já amou.

“Porém nessa noite, sem que eu esperasse, entrou uma dama. Fiquei abismado, porque se tratava de minha mulher”.

É o fechar de um ciclo. O cão mordendo o seu próprio rabo. “Ela não quis mais levar a vida de mulher honrada. Se na verdade não adiantou nada ser mulher direita conforme ela era, ela decidiu abandonar o papel de esposa para viver entre as mariposas que fazem ponto naquele lugar”.

Citando Coco Chanel, mas corrigindo Santa Teresa de Ávila: “Para puta, puta e meia”.

Do fim

“Telegrama”

Chegados a esta parte de todas as histórias de desamor, acreditaríamos que cada um seguiria o seu caminho. Ele para umas camas, e ela para outras camas, e a pagar. Mas “Telegrama” traz-nos um verdadeiro plot twist! O Narrador, homem destruído pelos ferros com que matou, regressa às origens para procurar na mãe a única mulher capaz de consolá-lo. Mas este Peter Pan, este menino-homem “vai num táxi em louca corrida” para o colo da progenitora.

“E com os olhos quase rasos de água, ao chauffeur assim lhe dizia: Anda, chega primeiro que a morte, corre! Oh que dor forte me dá”.

É o pânico que fala, o terror de que a mãe morra antes que ele lá chegue. Abandonado por todas as mulheres, não quer, não pode, qual Édipo, perder também aquela. O taxista entra aqui como agente do destino, que o sujeito poético interpela. Mas “o carro tanto correu que voou, talvez perseguido pela má sorte, e lá longe uma curva encontrou e os dois tiveram logo a morte”. Ele e o seu destino.

Citando Rita Lee, mas corrigindo Jesus Cristo: “Se Dios quisiera um dia eu morro bem velha”.

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