Clint Eastwood, Nuri Bilge Ceylan, Pedro Almodóvar, Martin Scorsese ou Jafar Panahi estão entre os cineastas que fizeram os melhores filmes vistos em 2019 (e há uma animação no grupo), selecionados por Eurico de Barros, crítico de cinema do Observador, no seu balanço de fim de ano. Sinal dos tempos: dois deles passaram apenas na Netflix, em Portugal bem como noutros países.

“O Cavalheiro com Arma”

de David Lowery

Já lá vão 60 anos desde que Robert Redford fez o seu primeiro papel no cinema. E escolheu interpretar um assaltante de bancos septuagenário, discreto e cavalheiresco para se despedir das fitas. Passado no início dos anos 80, quando o mundo ainda andava mais devagar e havia tempo para as pessoas se compreenderem melhor umas às outras, “O Cavalheiro com Arma” é um filme belíssimo e humaníssimo, onde tudo está no lugar exato, na proporção devida e no lugar certo, sem fífias nem exageros. Tal e qual como a interpretação de Redford. Que saudades vamos ter dele.

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“Correio de Droga”

de Clint Eastwood

Baseando-se na história real de um nonagenário veterano de guerra e cidadão exemplar que entregava droga para um cartel mexicano, Clint Eastwood realiza e interpreta “Correio de Droga” com a sobriedade clássica que lhe é conhecida, e um consumado sentido da geometria narrativa, da parcimónia expressiva e da gestão emocional. É um filme sobre a velhice e as suas indignidades, sobre um homem solitário e deslumbrado com o dinheiro que recebe por uma atividade criminosa e que usa para tentar reconciliar-se com a família que alienou. E é um filme moral, mas nunca moralista.

“A Pereira Brava”

de Nuri Bilge Ceylan

O realizador turco  autor de “Longínquo” e “Climas” dá aqui continuidade a um cinema que junta a mais pura beleza visual, um superior sentido plástico e o gosto pela contemplação, e a preocupação com os problemas, conflitos e dilemas da existência humana e das relações entre as pessoas, aqui concretizados na história de um universitário recém-formado que volta à vila natal, enquanto tenta editar o primeiro livro e resolver problemas de família. E Ceylan é um daqueles raros cineastas que consegue pegar na mais banal das situações, como um beijo entre um homem e uma mulher sob uma árvore batida pelo vento, e filmá-la como se fosse nova, e captar as mais impalpáveis movimentações da natureza.

“Três Rostos”

de Jafar Panahi

Mais um filme feito fora do radar das autoridades iranianas, mais um filme onde Jafar Panahi é um dos intérpretes principais. Desta vez, o realizador mete-se num carro com uma famosa atriz sua amiga, para irem descobrir se uma rapariga se suicidou ou não, no interior do país. Uma jornada que Panahi usa para voltar a esbater a linha entre realidade e ficção e falar da situação das mulheres no Irão ou do abandono em que vivem as populações de sítios remotos. E ainda para filmar duas atrizes e uma aspirante a sê-lo, cada qual representando uma época da história recente do Irão, e do cinema iraniano no passado, no presente e no futuro. “Três Rostos” é um “road movie” político, intimista e cinéfilo.

“Era Uma Vez Em… Hollywood”

de Quentin Tarantino

Há bastante tempo que Quentin Tarantino não fazia um filme tão bom. No coração de “Era Uma Vez Em… Hollywood”  bate uma amizade entre dois homens à prova de qualquer fatalidade, a amizade entre Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), uma vedeta da televisão que não consegue fazer a agulha para o cinema, e Cliff Booth (Brad Pitt), o seu fiel “duplo”, assistente e amigo como irmão. Tarantino passeia a sua cinefilia enciclopédica e pontilhista e o seu conhecimento da cultura e da música “pop”, recria a Los Angeles de 1969 com um detalhe de maníaco, exibe a sua execração dos “hippies” e dos zelotas da saúde (em nenhum filme deste ano se fuma tanto como neste) e arranja um final alternativo para uma das maiores tragédias da história Hollywood.

“Dor e Glória”

de Pedro Almodóvar

O título não é rigoroso. Há muito mais dor do que glória nesta fita parcialmente autobiográfica onde Pedro Almodóvar põe Antonio Banderas, o seu ator de eleição, a interpretar um realizador, Salvador Mallo, o seu “alter ego”, que vive em conforto e semi-reclusão no seu apartamento de Madrid, julga ter deixado para trás os seus tempos de glória e não consegue sequer considerar voltar a fazer um filme. Salvador recorda a sua infância pobre na província, a sua queridíssima e dedicadíssima mãe, a primeira vez que viu um filme e sentiu desejo carnal, amores antigos e glórias passadas. “Dor e Glória” é um filme outonal, introspetivo,  e comovente, sem por isso ser indulgente, narcisista ou pingão.

“Parasitas”

de Bong Joon-ho

Uma família é pobre, vive de esquemas e trabalhos ocasionais e mora numa cave imunda. A outra família é rica, vive desafogadamente e mora numa vivenda construída por um famoso arquiteto. Graças à mentira e ao desenrascanço, a família pobre consegue infiltrar-se em casa da rica e tornar-se-lhe indispensável. Mas uma noite em que os patrões vão de férias, a família chupista têm uma gigantesca surpresa. Drama de classes, comédia negra satírica, “thriller” de costela social, Raio-X em formato cinematográfico da sociedade sul-coreana contemporânea, “Parasitas” é um diabolicamente brilhante, imprevisível, divertido e amargo, confirmando que Bong Joon-ho é um dos maiores realizadores a trabalhar hoje na Coreia do Sul.

“O Irlandês”

de Martin Scorsese

Em “O Irlandês”, Martin Scorsese regressa à sua pele de Claude Lévi-Strauss de uma tribo chamada Máfia, para contar a história de um “gangster” irlandês ao longo de décadas, durante as quais este esteve, direta ou indiretamente, envolvido em acontecimentos como o desastre da Baía dos Porcos em Cuba ou o assassinato do líder sindicalista Jimmy Hoffa. Mas se “O Irlandês” é o filme do homem que nos deu “Tudo Bons Rapazes” e “Casino”, é também o do homem que fez “A Última Tentação de Cristo” e “Silêncio”. Há vários assassínios, mas também muito sentimento de culpa, remorso, agonia moral e arrependimento. Com Robert De Niro, Al Pacino e um Joe Pesci no registo oposto ao que nos habituou, “O Irlandês” é uma longa e grave elegia por uma geração de “gangsters” extinta, e pelo filme de mafiosos tal como Scorsese o cultivou, definiu e codificou.

“Marriage Story”

de Noah Baumbach

Como a arte vai beber muito à vida, Noah Baumbach foi inspirar-se no seu divórcio da atriz Jennifer Jason Leigh para esta história de um casal de artistas (ele, encenador, ela atriz) que se quer separar a bem, mas acaba por protagonizar um divórcio dolorosamente litigioso, quando os advogados da especialidade entram em cena. Baumbach não escolhe um lado nem nos convida ou convence a fazê-lo: dá o mesmo tempo de antena a marido e mulher, mostrando a visão e as razões de cada um. Adam Driver e Scarlett Johansson são extraordinários de verdade de comportamento e emoções e de visceralidade de sentimentos, nesta fita que opõe não só marido e mulher como também Nova Iorque e Los Angeles, e o teatro “off  Broadway” e Hollywood.

“A Ovelha Choné: O Filme — A Quinta Contra-Ataca”

de Will Becher e Richard Phelan

A segunda longa-metragem da ovelha vedeta da britânica Aardman, a casa de Wallace e Gromit e de “A Fuga das Galinhas”, é uma maravilha de técnica, sentido de humor e génio cómico em jato contínuo e vários níveis, que casa a animação de volumes fotograma a fotograma tradicional e os modernos efeitos digitais, sem que fique uma costura à mostra, para, em simultâneo, homenagear e parodiar o cinema (e alguma televisão) de ficção científica pós-“Star Wars”. E sempre fiel, da primeiro à última imagem, aos princípios da comédia muda clássica que animam as histórias da Ovelha Choné e dos seus comparsas ovinos, desde o primeiro episódio da série de televisão. São os mais hilariantes Encontros Iméééééééediatos de 3º Grau do ano.