Albano Jerónimo em “Vikings” ou Nuno Lopes na Netflix são feitos do Passaporte, programa de Patrícia Vasconcelos que desde 2016 tem levado atores portugueses a integrar produções internacionais. São dois casos de sucesso dos vários elencados no site sob esse mesmo desígnio. “Já não tenho de provar nada”, diz Vasconcelos ao final do primeiro dia da edição deste ano, que aconteceu entre 28 de junho e 2 de julho. “Já passei essa fase”. A fase em que tinha de chatear os colegas diretores de casting para não se ficassem por Espanha e viessem a Portugal desbravar terreno e descobrir talento. A fase em que tinha de recorrer a casos excepcionais para sublinhar a qualidade dos atores portugueses.
Com Alba Baptista e Daniela Melchior a conquistar Hollywood e, no streaming, o fenómeno “Rabo de Peixe” a criar lastro, a permeabilidade das fronteiras no mercado audiovisual tem-se tornado cada vez mais evidente – ao que não é alheia a explosão da utilização de self-tapes (interpretações gravadas pelos atores em vídeo) pós-pandemia. Pode isso pôr em questão a pertinência de um evento como este? À oitava edição, a fundadora do Passaporte não crê. “Como é que tanto talento fica confinado num país? Não pode”, repete.
Este ano, o programa organizado em parceria com a Academia Portuguesa de Cinema selecionou 16 atores: Ana Sofia Martins, Ângelo Rodrigues, Bárbara Branco, Beatriz Godinho, Carlota Crespo, David Medeiros, Ema Sofia Fonseca, Filipe Cates, Joana Santos, José Condessa, Leonor Vasconcelos, Mariana Cardoso, Nuno Nolasco, Raquel Rocha Vieira, Rui Maria Pêgo e Virgílio Castelo. Dos 202 candidatos, apenas estes puderam conhecer os diretores de casting convidados, alguns repetentes, como a norte-americana Cindy Tolan, responsável pelo casting último filme de Steven Spielberg, “The Fabelmans”(2022), outros presentes pela primeira vez, como Kate Rhodes James, diretora de casting inglesa que tem no currículo a última obra de Ridley Scott, “Casa Gucci”(2021).
Duas dezenas de decisores do que o mundo inteiro vai ver no pequeno e grande ecrã estão reunidos num terraço no Príncipe Real, em Lisboa. Debbie Mcwilliams, casting diretor da saga James Bond, é já uma habitué. “É sempre ótimo, por isso é que estou de volta. É uma mostra brilhante de atores portugueses. Não importa muito se os selecionamos logo ou não. Conhecemo-los e guardamo-los na cabeça para algo que surja”, diz.
São raros os que viajam até Lisboa com uma ideia concreta de um papel que precisam de preencher. A expressão mais usada é: “mente aberta”. “Estive cá no ano passado e foi incrível. Os atores têm muito talento. Houve uma em particular que achei fantástica e tenho andado a pensar nela todo o ano”, confidencia ao Observador Cindy Tolan (“The Fabelmans” (2022), “West Side Story” (2021), “The Batman” (2022)). “O nome dela é Inês. Acho-a muito talentosa, mesmo uma super estrela. Estou entusiasmada por vê-la de novo”.
Os encontros entre atores e diretores de casting são, muitas vezes, fugazes. O que causa impacto, afinal? A diretora de casting norte-americana, que começou a carreira no teatro, diz que procura “técnica casada com uma nuance fílmica”. Menos codificado é outro dos requisitos: “competências linguísticas”. É algo que não parece ser um problema para os atores portugueses. “É soberbo. Zero sotaque. Parece tão fácil, é inacreditável”, descreve. Foi o que também impressionou Kate Rhodes James, atualmente a trabalhar no filme “Gladiador 2”, de Ridley Scott. “Muitos atores espanhóis e italianos não conseguem [falar sem sotaque]”, afirma a diretora de casting. “E os franceses… vão sempre soar franceses”, brinca. Apesar de estar pela primeira vez em Lisboa, Kate Rhodes James admite que já fez audições a “vários atores portugueses” no passado. Fê-lo para a série da HBO “House of the Dragon” (2022), ou, mais recentemente, para a adaptação em série da saga “Alien” para a FX. “Conseguimos um ator português muito famoso para fazer uma self-tape. Conheceu o realizador, fizemos Zoom e tudo. Foi uma pena não ter conseguido, mas foi por pouco. Deixou uma ótima impressão no realizador”, garante.
Este “por pouco” é suficiente para entusiasmar a amostra de talentos da representação nacional, ainda que seja o “sim” que todos ambicionam. Leonor Vasconcelos, com apenas 25 anos, sabe já bem que “o não não diz nada a nosso respeito”, e que é essencial “tentar ao máximo despessoalizar”. “Independentemente de ficar com o trabalho, é sempre uma oportunidade de mostrar o trabalho a um casting director e a um realizador, que pode propor mais tarde para outra coisa”, diz ao Observador, por telefone. A jovem atriz, que participa no premiado díptico de filmes de João Canijo, “Mal Viver” e “Viver Mal” (2023), foi uma das selecionadas para a edição deste ano e tem um objetivo claro: “quero ter uma carreira internacional”.
Fez quase toda a sua formação fora, em Nova Iorque e Londres, mas foram os últimos quatro dias em Lisboa que a aproximaram “do que antes estava longe”. “O que a Patrícia e o Passaporte me ofereceram foi a visão no plano concreto da minha imaginação da possibilidade de isso acontecer, real. Estas pessoas vieram aqui ao nosso encontro”, comenta, depois de todos os workshops, conversas e showcases. “Foram quatro dos dias mais felizes da minha vida”, confessa.
Também “ainda a digerir tudo isto” está Ana Sofia Martins, 36, conhecida do grande público primeiro como manequim e, mais tarde, como atriz, ao protagonizar a novela da TVI “A Única Mulher”(2015-2017) – a primeira e até hoje única vez em que uma novela portuguesa teve uma mulher negra como protagonista. “Temos sempre expectativas, mas nunca esperei que fosse uma experiência tão enriquecedora e esclarecedora, não só sobre a nossa profissão enquanto atores cá, em Portugal, mas sobre a profissão de um diretor de casting e a diferença que pode fazer na nossa carreira e na nossa vida”, sublinha.
Não lhe sai do pensamento um workshop que fez por estes dias com o agente irlandês Richard Cook, “Keeping Up With The Changing Marketplace”. “Às vezes como portugueses temos o fado dentro de nós, um certo queixume. Temos a tendência de querer ter uma carreira internacional não dando valor àquilo que nós fazemos cá também. Fez-nos ver que se nós e a quem compete investirmos mais na nossa cultura também podemos ser uma referência para os outros”, constata. “Foi um reality check“.
Para a atriz o sonho da internacionalização também não é novo. “É não me querer limitar a estar aqui. Sei que tenho características físicas que podem não ajudar a conseguir papéis cá. Vamos ser muito realistas, ver atores negros a fazer filmes e séries cá em Portugal é raríssimo, raríssimo. E eu sou um caso até das que não me posso queixar muito porque fiz televisão durante muito tempo”, comenta. “Não estou a explorar todo o meu potencial cá. Se ficar à espera que me batam à porta estou tramada. Preferi eu dar esse passo”. Já se tinha inscrito “várias vezes” no Passaporte, admite, até então sucesso. “São muitas candidaturas, eu percebo. O segredo é não desistir”.
Caso distinto é o do ator Virgílio Castelo, 70, a prova de que quem escolhe mostrar o talento português quer fazê-lo dos mais novos aos mais velhos. “No caso dos atores, enquanto houver saúde há trabalho. Tanto podem precisar de um miúdo de 20 anos como de um homem de 70, depende das personagens que vão aparecendo”, constata o ator. “Embora neste momento em Portugal na nossa ficção haja pouco trabalho para pessoas mais velhas, no resto do mundo isso não é assim”, reflete. “Basta ver o streaming ou os canais tradicionais, e vemos o que se passa na ficção americana, inglesa, francesa, brasileira, está cheio de velhos por todo o lado. O que me parece natural, porque se a maior parte das populações são pessoas com alguma idade não faz muito sentido estar a fazer coisas com pessoas muito mais jovens. Em Portugal ainda há um bocadinho esse equívoco”, critica.
Ao longo dos 50 anos de carreira, o ator já participou em produções internacionais, pontualmente, mas “pelas vias clássicas”. “Porque alguém me viu num filme, numa novela. Mas não no sentido de eu me disponibilizar, fazer uma self-tape e ver se alguma coisa me acontece. Isso vai começar agora”, diz. Virgílio Castelo espera fazer um caminho fora das fronteiras portuguesas, numa fase da vida em que tem esse bem precioso: o tempo.
Explica: “Fui um pai tardio, a última vez aos 56, e as minhas filhas mais novas ainda estavam até agora numa idade em que ainda precisavam que eu estivesse muito tempo por aqui, perto delas. Agora já estão a entrar numa fase de alguma independência, já posso libertá-las um pouco mais da minha presença. É essa a razão principal, agora tenho tempo”.
“Quero fazer um Passaporte no norte”
Desde a primeira edição do programa que Patrícia Vasconcelos não se compromete com a seguinte. No ano passado, a mais conhecida diretora de casting portuguesa criticou a falta de apoios financeiros, em particular do Turismo de Portugal, e pôs em causa a continuidade do projeto. “Depois lá me disseram: ‘não podes parar, tem de ser!’ Lá me resolveram algumas questões e me convenceram a fazer mais uma [edição]. Este ano tenho de ser menos crítica, porque a verdade é que o Ministério da Cultura, através do Fundo de Fomento [Cultural], se chegou à frente e nos entregou uma verba para não termos de ir a concurso”, admite. A este apoio juntaram-se os da Câmara Municipal de Lisboa e da Fundação GDA. Para Patrícia Vasconcelos, o “orçamento mínimo” para fazer uma edição ronda os 80 mil euros.
Já sobre o Turismo de Portugal “continua num deserto”, classifica. “Já desisti. Seis anos seguidos [a abordá-los] chega. Chega a uma altura em que tenho de pôr as minhas energias num sítio onde possa eventualmente ter mais sucesso”.
“Estão três casting directors aqui que vieram cinco dias mais cedo porque quiseram ir ao Porto”, nota ao Observador. “Por acaso conheço o Rui Moreira e liguei-lhe [para os receber]. Desde a primeira edição que há sempre um casting diretor no mínimo que quer passar pelo Porto”. O desvio de rota poderá passar a ser mais do que uma casualidade para alguns? “Não tenha dúvidas que quero fazer um passaporte no norte”, responde questionada sobre a possibilidade de uma edição na invicta. “Aliás, a semana passada pensei: ok, acho que deveria fazer uma edição no Porto. E não tem a ver com conhecer o Rui Moreira. É mais profundo do que isso”, explica. “Se calhar os atores do norte só para terem de se deslocar, e ter de ficar cinco dias em Lisboa [não se candidatam]… Porque não fazer uma edição só para os atores do norte? Acho que fazia sentido. Faço uma edição um bocadinho mais pequenina. Se calhar não são 20 casting directors, são só cinco ou seis. Há atores extraordinários que se calhar nunca se candidataram na vida.”