Tenha sido por coincidência, tenha sido propositado, é obra a estreia de “Mal Viver” e “Viver Mal” ter sido apontada para tão perto do Dia da Mãe. É que esta dupla de filmes de João Canijo (o primeiro recebeu o Urso de Prata — Prémio do Júri do Festival de Berlim) passada no mesmo local (um hotel familiar do Norte, algo descuidado e em dificuldades financeiras) e no mesmo espaço de tempo (um fim-de-semana), contém a maior e a mais heterogénea coleção de mães de pesadelo de que tenho memória no cinema. Mães sufocantes, mães secas de amor, mães descaradamente amorais, mães incapazes de o ser, mães intoxicantes, é só escolher.

Os dois filmes funcionam como verso e reverso. A ação principal de “Mal Viver” é o plano secundário de “Viver Mal”, e vice-versa. E além de unidade de espaço e de tempo, têm também a juntá-los a forte cola de uma mesma visão da família enquanto lugar de infelicidade, desavença e deceção, e da mãe como elemento pernicioso à existência dos filhos (quer em “Mal Viver”, quer em “Viver Mal”, o pai é uma figura ausente, desaparecida ou apenas mencionada de passagem), mesmo quando ela protesta com veemência, ou entre lágrimas e soluços, que fez ou está a fazer tudo pelo bem deles.

[Veja o “trailer” de “Mal Viver”:]

“Mal Viver” é contado do ponto de vista das proprietárias do hotel, pondo em cena cinco mulheres de três gerações: avó (Rita Blanco), filha (Anabela Moreira) e neta (Madalena Almeida); e ainda uma sobrinha (Cleia Almeida), que parece ser a única empregada do estabelecimento, mais a “chef”, que tem uma relação com esta. O ambiente é de um crispado, opressivo e sorumbático desamor, de infelicidade passada de geração em geração como uma herança invisível e negra, e as relações entre elas são dominadas pela desilusão, pela frustração e pelo azedume. Não há uma réstia de redenção, uma suspeita de reconciliação. É o deserto das afinidades familiares e o hotel surge como uma prisão a que as mulheres estão confinadas e a fazer a vida negra umas às outras. 

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Esta “overdose” de negativismo tem o seu preço. “Mal Viver” cede ao peso da reiteração da desgraceira coletiva, partilhada, assumida e resignada, isto malgrado as interpretações de um verismo irrepreensível (a labuta longa, aturada e próxima de João Canijo com a sua “família” de atrizes e atores dá sempre bons frutos), a realização a régua e esquadro e o realismo “atmosférico” e deliberadamente desconcertante do trabalho de som e da montagem. As duas horas do filme parecem o dobro, as figuras da avó, da mãe e da neta acabam por ser mais estereótipos bisonhos, biliosos e angustiados da disfuncionalidade consanguínea, do que personagens de carne, osso e coração, e a tragédia é anunciada muito antes de chegar. Nos filmes, o abuso da desgraça é tão arriscado como o exagero da felicidade.

[Veja o “trailer” de “Viver Má”:]

Para fazer “Viver Mal”, que adota o ponto de vista dos hóspedes do hotel, o realizador foi colher alguma inspiração a três peças de Strindberg. O filme funciona em tripla de totalitarismo maternal, em versões “soft” e “hard”. Temos a mãe distante mas sempre presente e massacrante por via telefónica, da personagem de Nuno Lopes, um gabiru que namora uma “influencer” jovem e tolinha, à qual serve também de fotógrafo; a mãe de “boas famílias” mas escabrosa (Leonor Silveira, perfeita numa dondoca monstruosa) que engana a filha submissa com o enteado inescrupuloso; e a mãe-galinha sonsa e manipuladora (soberba Beatriz Batarda) que só quer o melhor para a filha, lésbica e aspirante a atriz, e tudo faz para que ela acabe com a namorada, um empecilho à carreira (e ao seu ascendente sobre a rapariga)

Menos carregado emocionalmente, e menos concentrado no circuito fechado da desdita familiar obsessiva, com protagonistas mais variados e credíveis, logo com mais linhas de história para seguir e mais pontos de interesse humano e dramático, e propondo um maior sortido de conflitualidade, “Viver Mal” é um filme mais vigoroso, vivo e cativante, menos pesado, empolado e doentio do que “Mal Viver”. E em que nos envolvemos com as personagens e interessamos pela sua sorte, em vez de as querermos ver rapidamente pelas costas, como sucede com as daquele. O hotel é mais recompensador vivido do lado dos clientes do que do das donas. Num Tripadvisor cinematográfico, “Viver Mal” pontuaria mais alto do que “Mal Viver”.