O mais provável é que nunca se venha a saber ao certo o que se passou. Sabe-se a data: 4 de agosto de 1992. Sabe-se o local: a casa da atriz Mia Farrow, no Connecticut. Debate-se o resto. Sabe-se, contudo, mais uma coisa. E há quase tanto tempo. Os indícios recolhidos durante as investigações, incluindo os que logo em 1993 levaram ao veredicto do Supremo Tribunal do Estado de Nova Iorque, sugeriam um comportamento sexual inadequado da parte de Woody Allen. Um facto que a maior parte de nós, durante todos estes anos, optou por ignorar.
Com estreia marcada para este domingo nos EUA e segunda-feira em Portugal, a série documental da HBO “Allen v. Farrow” revisita um dos maiores escândalos das últimas décadas: as acusações contra Woody Allen por alegado abuso sexual da filha adotiva, Dylan Farrow, então com sete anos. Na nossa memória coletiva, a história entrelaça-se com outra, na altura bem mais bombástica, a do relacionamento secreto do realizador de 56 anos com a filha adotiva de Mia Farrow, Soon-Yi Previn, de 21. Farrow e Allen namoravam há mais de uma década. Tinham três filhos juntos; dois adotados, um biológico. Nunca chegaram a morar na mesma casa. É confuso, sim. Sempre foi.
A primeira reação a um documentário deste género é de ceticismo. O que poderá acrescentar? Ainda o ano passado Allen lançou a sua autobiografia, A Propósito de Nada (Edições 70). Antes disso, em 2014, Dylan fizera-se ouvir pela primeira vez, com duas cartas abertas, uma enviada ao New York Times, outra ao Los Angeles Times. Desde a década de 1990 que o caso tem sido dissecado em jornais, revistas, programas de televisão. Haveria alguma informação que ainda não tivesse chegado à Internet? Ao fim dos quatro episódios de cerca de uma hora cada, a resposta é inequívoca: muita.
[o trailer de “Allen v. Farrow”:]
https://www.youtube.com/watch?v=IuKO9pxpOiQ
“Allen v. Farrow” distingue-se pelo volume. De tempo, de informação, de acesso. Durante cerca de três anos, os documentaristas Amy Ziering e Kirby Dick gravaram em segredo entrevistas com o clã Farrow e com o seu círculo íntimo. Ouviram testemunhas do caso, especialistas, investigadores. Puderam consultar documentos inéditos – 60 caixotes, dizem – desde registos de tribunal a relatórios da polícia. Dylan terá hesitado em colaborar. Eles argumentaram com os anos dedicados a investigar alegados crimes de agressão sexual e que culminaram nos filmes “Hunting Ground”, sobre abusos nos campus universitários, e “Epidemic of Rape”, dedicado às Forças Armadas. Até que ela lhes abriu as portas do castelo. A casa onde cresceu e onde tudo terá acontecido, os álbuns de família, as horas e horas de vídeos caseiros, incluindo alguns momentos sublimes e uma das peças mais perturbante do puzzle: as imagens, até agora só exibidas em tribunal, em que uma menina de sete anos conta à mãe o que pai lhe fez. Woody, Soon-Yi e Moses Farrow, o outro filho adoptado e que permanece do lado do pai, recusaram-se a prestar declarações. Allen nega tudo até hoje.
A série segue uma lógica cronológica. O tom é sóbrio e contido. Não podia ser de outra maneira. Começa como um grande épico de Hollywood, com Mia e Woody como um dos “power couples” da década de 1980, para acabar como a história dramática de uma rapariga comum, demasiado parecida com o de demasiadas outras raparigas. Pelo meio, o circo mediático. Os alegados jogos de poder e de influência. O impacto do caso no mundo dito real. E uma série de questões, desde o real valor da arte à importância do movimento #metoo.
A dada altura, sente-se falta do contraditório. Será a família Farrow tão perfeita assim? Não foi Soon-Yi que também acusou a mãe de agressão? Esta é a versão da vítima. O alegado agressor optou por não se pronunciar. Substituem-no, a espaços, excertos da versão áudio de A Propósito de Nada lidos pelo próprio. Uma solução honesta, mas débil, tal como a voz que se ouve, de um idoso hoje com 85 anos.
Woody Allen: uma vida memorável, para sempre refém de um pesadelo
A verdade é que o documentário não surpreende pelas conclusões – essas já eram conhecidas ou pelo menos alegadas – mas pelas provas materiais, pelos factos comprováveis, pelos pormenores que nem o melhor ficcionista seria capaz de imaginar. Como o do Arquivo da Universidade de Princeton, onde Allen tem vindo a depositar todo o seu espólio profissional e um investigador encontrou um padrão inquietante.
A narrativa paralela aqui não é, “como é que este homem escapou?” A questão — mais profunda, capaz de nos desassossegar, e que trará mais relevância à realização de um documentário como este, quase 30 anos depois – é, “por que razão resistimos tanto a aceitar que este homem possa ser culpado?” Estes casos “são um espelho da nossa sociedade”, defendeu Amy Ziering ao site especializado Hollywood Reporter. “A forma como estes crimes acabam sem castigo e todas as razões por que isso acontece, a forma como todos nós, até certo ponto, consciente ou inconscientemente, somos cúmplices.” É como se estas celebridades tivessem “um escudo de imunidade.”
Quando em 1992 e 1993, numa acção de contra-ataque, Allen tenta obter a custódia dos filhos em tribunal, o juiz do Supremo de Nova Iorque decide em favor da mãe, Mia Farrow. Conclui que o pai teve um comportamento inadequado, diz acreditar no que Dylan conta no vídeo e proíbe Woody de ver a filha. O realizador há-de recorrer duas vezes da sentença, e há-de perder duas vezes. Até hoje nunca deixou de acusar Farrow de ter treinado Dylan para mentir, insinuando que ela não passava de uma mulher despeitada por ter sido trocada por Soon-Yi, 26 anos mais nova. Tudo isto foi tornado público. Tal como os filmes que realizou, quase 30 desde então, muitos deles sucessos de bilheteira, e os vários tributos com que os seus pares o homenagearam, em cerimónias como as dos Óscares e dos Globos de Ouro. Farrow, por seu lado, comenta que depois do escândalo ficou quase sem trabalho.
Ainda hoje, Woody Allen é muito mais do que um realizador de filmes. O cineasta criou um universo único, uma inimitável forma de estar. Tal como explicam vários críticos e jornalistas que cobriram o caso, durante décadas aquele tipo desajeitado foi o herói de uma geração. O tom autobiográfico tornou tudo mais pessoal. De repente, um episódio, ainda por cima sórdido, ameaçava deitar tudo por terra. Roubar-nos essa parte de nós. Pior: alvitrava a possibilidade de sermos iguais a ele. Em nome de uma realidade desejada, desviámos o olhar. Terá reforçado as nossas convicções uma poderosa máquina de relações públicas e o seu desconcertante talento para a manipulação. Woody é sempre a vítima, nos filmes e fora deles.
Por trás desta ideia está outra: a convicção moralista de que más pessoas não podem fazer boa arte. Ou que temos de abdicar dessa arte quando percebemos que o autor não é boa rês. Como se devêssemos castigar-nos pelos erros dos outros. Como se nos competisse aplicar penitências divinas. Ou os artistas fossem concorrentes do reality-show taliban da perfeição. Tornou-se uma discussão recorrente, sobretudo depois do movimento #metoo e de casos como os de Bill Cosby, Louis C.K. e Michael Jackson. Até no documentário há quem defenda esta posição.
Uma escapatória comum tem sido declarar o corte radical entre a vida e a obra, o que também tem qualquer coisa, não de transubstanciação, mas de geração espontânea ou Sociedade Anónima, com Picasso e Wagner entre os exemplos mais citados de estupores geniais, que para sempre devem ser mantidos afastados das suas obras absolutamente primas.
Mais interessante – e que talvez nos permita aceitar a ideia de que Woody pode ser um escroque sem termos de nos despedir dele (nem de nós) – será reconhecer o elemento biográfico, integrá-lo e apreciá-lo como parte do conjunto. Tal como as pessoas são muitas coisas, também as obras de arte são complexas. E é nessa qualidade que devemos relacionar-nos com elas.
É inevitável pensar que “Allen v. Farrow” só se tornou possível com o movimento #metoo. Ronan Farrow, o único filho biológico dos dois, foi ele próprio autor de um dos artigos que levaram à queda do produtor Harvey Weinstein, um trabalho mais tarde galardoado com o Prémio Pulitzer. Sem darmos por isso, nos últimos anos, o mundo passou a ser um pouco menos machista, mulheres incluídas.
À luz de 2021 torna-se por isso impossível evitar uma certa perplexidade em relação à forma como, desde sempre, nos “relacionámos” com certos filmes de Woody Allen. Um em particular. Esse mesmo, “Manhattan”. Protagonizado pelo próprio realizador, anos a fio considerado a sua obra-prima, epítome acabada do que ele tinha para nos dar. Do arranque frenético à máquina de escrever à belíssima fotografia a preto e branco, do humor autodepreciativo à relação de um quarentão com uma adolescente de 17 anos. “Sou mais velho que o pai dela”, comenta com os amigos à mesa de um restaurante. Pouco depois já é ela, com a sua voz acriançada, a beber um batido por uma palhinha, que está a fazer dele uma vítima.
Uma das batalhas de Allen tem sido refutar que os seus filmes sejam autobiográficos. Entre outras razões menos aparentes, serão demasiados os casos de homens muitos mais velhos com raparigas muito mais novas. Se há casos – raros – em que a biografia pouco acrescenta, na maior parte será fundamental para um entendimento mais completo – incluindo percebermos que só a boa arte é poderosa ao ponto de nos causar repulsa. Se seremos capazes de aguentar o estômago, já é outra conversa.